Caras pintadas, chapéus pontiagudos e bruxas. Abóboras e teias de aranha de papel penduradas. Os alunos e as paredes estão vestidos a rigor. Explicam-se quadrantes, graus, blocos. Discute-se a melhor forma de pôr o “drone” a transportar morangos e alfaces. Agora, “run”. Computadores e ratos em vez de lápis e cadernos. Apesar do ambiente de celebração de “Halloween”, não estamos nos Estados Unidos, mas numa sala de aula na EB1 de Santa Teresinha, no Fundão.
Uma das turmas do 3.º ano está a ter uma aula de iniciação à programação. Não há números ou equações à vista, nem fundos pretos com “frases” ilegíveis. Nos ecrãs, uma espécie de jogo parecido ao da velhinha batalha naval. Personagens: “drones”, alfaces, morangos, entre outras. O objectivo é programar as instruções para o “drone” e colocá-lo a apanhar os legumes e as frutas. As tarefas são lúdicas, mas entre um pedido e outro da monitora vão surgindo expressões mais elaboradas.
“Não se esqueçam de colocar o ‘drone’ no quadrante certo”, pede Sandra Leitão. É monitora das aulas de iniciação à programação há dois anos, desde o início do projecto no Fundão, no ano lectivo 2015/2016. Todos os alunos do 1.º ciclo do ensino público do Fundão – 900 estudantes – estão a aprender a usar a linguagem dos computadores. O Governo quer que no próximo ano lectivo a disciplina de programação e robótica seja obrigatória em todo o país.
Sandra Leitão é funcionária da autarquia do Fundão. Trabalhava na área do ambiente, mas hoje percorre as escolas do concelho e ensina as crianças do primeiro ciclo a usar a plataforma Blanc, a ferramenta desenvolvida pela “startup” Academia de Código que quer pôr miúdos e graúdos a programar.
“Nunca tinha estado ligada à educação”, começa por explicar Sandra. “É incrível ver os miúdos a evoluir nestas áreas da tecnologia, é tudo muito rápido.” Fala de sorriso aberto do que faz, acredita que as aulas que dá fazem a diferença e mudaram a forma como os miúdos olham para o computador.
“Tinham muito a ideia de que os computadores serviam para jogar”, relata, e “descobrirem que, afinal, podiam ser eles um dia a fazer os jogos, ficaram muito animados com essa possibilidade”. A partir do momento que “perceberam que havia algo por detrás”, Sandra viu neles “aquela alegria de 'vou eu criar o meu próprio jogo'.”
Um estado de euforia que, dois anos depois das primeiras aulas de programação, ainda não esmoreceu entre os miúdos. Micaela tem oito anos e não deve nada à timidez. Está vestida de bruxa, de cara pintada (afinal, é Dia das Bruxas) e entusiamo não lhe falta. “Eu gosto muito da professora e também das aulas”, diz. “Aprendemos a programar os robôs e já sabemos deslizar com eles.”
Mudar o Fundão
A turma do 3.º ano tem 17 alunos, que trabalham nos computadores aos pares. O material é novinho em folha, os portáteis de tamanho adequado aos miniutilizadores. Foi tudo fornecido pela autarquia, no âmbito do projecto desenvolvido em parceria como a Academia de Código e pioneiro a nível nacional.
O presidente da Câmara do Fundão vê na iniciativa um “investimento” não apenas nas crianças, mas também no resto da região. O projecto é uma parte fundamental da estratégia desenhada para tornar o concelho atractivo para as empresas de tecnologias da informação, explica Paulo Fernandes. Foi no contexto desse programa que a multinacional francesa Altran se instalou na região.
O programa da Academia de Código Júnior não tem apenas impacto no futuro das crianças. É também uma forma de melhorar o desempenho escolar “de um concelho rural, e ainda por cima através do ensino público”, considera o presidente da câmara.
Antes de chegar ao Fundão, a Academia de Código começou por desenvolver a ideia na capital. Em 2015, a “startup” pôs os alunos de três escolas públicas de Lisboa a programar, com o apoio da autarquia local e da Fundação Calouste Gulbenkian.
João Magalhães, 35 anos, um dos dois co-fundadores da Academia de Código, aponta os resultados obtidos na altura. “Para além de ajudar as crianças em questões de ‘problem solving’ [resolução de problemas], de estimular a criatividade e ajudar a desenvolver competências importantes nos miúdos, ajuda também ao desempenho escolar. Tivemos uma universidade a estudar o impacto das aulas e, ao fim de 12 meses, os alunos melhoraram entre 11 e 18% as notas de Matemática.”
O autarca Paulo Fernandes não tem dúvidas que o impacto nos resultados escolares dos alunos do concelho será muito semelhante. “A parte da programação, no ataque aos problemas mais estruturais que tínhamos na educação, podia ser extraordinariamente eficaz”, afirma. “Nomeadamente nas disciplinas que são sempre um problema, como é o caso da matemática e do cálculo,” explica Paulo Fernandes, que diz que as mais-valias são transversais. Traz também “benefícios ao nível do raciocínio lógico” e até para as “outras linguagens, como o português, por estranho que possa parecer”.
A programar desde pequenino
Mudamos de escola e de turma. É na EB2/3 João Franco do Fundão que cerca de 20 alunos do 4.º ano têm as aulas de programação. É ali que aprendem a programar numa sala equipada em exclusivo para a Academia de Código.
O impacto da programação ao nível da linguagem entra pelos ouvidos de quem assiste à aula: os miúdos já desenvolveram uma espécie de língua franca própria. “Agora faz ‘run’”, “arrasta para ali”, “olha os graus”, “vai buscar o bloco”. É assim que falam entre eles, a tentar encontrar a melhor forma de colocar os ‘drones’ que aparecem no ecrã a cumprir as ordens.
Martim, com nove anos, explica como se faz: “é preciso ir buscar uma peça do ‘run’ e pôr. Depois pomos outra peça dentro do ‘run’ e se quisermos mais peças, vamos buscar outras. E depois carregamos no ‘run’ e o ‘drone’ começa a fazer o que nós quisermos”. Confuso? Só para quem está de fora, porque o Martim e os colegas já tratam a plataforma por tu.
Muitos descobriram a vocação. Foi o caso de Diana, de 9 anos. “Já mostrei que sou boa a programar e a fazer aquilo que aprendi nas aulas de informática”, diz, orgulhosa. E quando for grande? Diana responde que ainda não tem certezas, depende “daquilo em que for melhor”. Mas já tem uma ideia: “Se calhar, vou trabalhar em programação.”
Baixar salários?
“Existe uma falta gigante de programadores a nível mundial. Só na Europa, os estudos da Comissão Europeia apontam para 550 mil postos de trabalho por preencher. Ou seja, existem os empregos e não exis-tem pessoas formadas para estes trabalhos”, relembra João Magalhães, da Academia de Código.
Na turma do 4.º ano, ainda não se pensa em trabalhar. Para já, programar é sinónimo de diversão e brincadeira e, para muitos, pode nunca vir a passar de “mais uma competência”.
A falta de programadores é reconhecida a nível global devido à rapidez com que as tecnologias invadiram a vida quotidiana. As empresas tecnológicas de Silicon Valley foram as primeiras a chamar à atenção para a falta de mão-de-obra. Empresas como a Google e a Facebook têm feito pressão junto da classe política dos Estados Unidos para introduzir a programação nos currículos escolares o mais cedo possível (e já o conseguiram, em alguns estados).
A iniciativa foi apoiada por muitos e criticada por outros tantos. As vozes contra alertam para o facto de que a pressão das tecnológicas para criar cada vez mais programadores tem um objectivo: baixar os custos salariais com futuros trabalhadores. Afinal, quanto mais pessoas adquirirem uma competência, menos será valorizada pelos empregadores.
Por cá, o impacto negativo que saber programar pode vir a ter no ordenado (ainda) não está na lista de prioridades. Mas, confrontado com a questão, o monitor da Academia de Código que dá aulas à turma do 4.º ano, não desvia a resposta. Hugo Rodrigues está numa posição privilegiada para responder, não fosse engenheiro informático de formação.
Pela experiência que tem tido com os alunos, o que as crianças mais gostam é de perceber “como funciona a tecnologia por detrás do utilizador”. A curiosidade dos miúdos leva-os a perguntarem como funcionam “outras coisas maiores” – como o gravador da Renascença (mais do que o microfone, os miúdos estavam interessados nos números do visor do aparelho, queriam saber “se tinha um programa lá dentro”).
Repetimos a pergunta. No futuro, vamos ser todos programadores? Hugo é contundente: claro que não. Então porque é que todas as crianças devem aprender a programar? “O objectivo não é serem todos programadores, tal como não é serem todos músicos porque têm música ou filósofos porque têm filosofia”, responde.
“Ajuda na resolução de problemas, a divisão em problemas mais pequenos, por exemplo, os algoritmos”, diz. E remata: “Programar ajuda desenvolver capacidade de organização. E isso é muito importante para todas as áreas da vida.”