Há vários anos que a Igreja Católica permite a ordenação de homens casados ao sacerdócio quando se trata de padres anglicanos, ou de outras confissões, que pedem para entrar em comunhão com Roma. Este é o caso da esmagadora maioria do clero ex-anglicano. São excepções à regra do celibato que existe na Igreja Latina, uma vez que em muitas das igrejas católicas de rito oriental a norma é a ordenação de homens casados.
Keith Newton é o responsável pela estrutura canónica criada por Bento XVI para acolher ex-anglicanos que queriam tornar-se católicos, mantendo todavia algum do seu património litúrgico e espiritual.
O sacerdote esteve recentemente em Portugal para o lançamento da tese do padre João Vergamota, sobre o "Anglicanorum Coetibus", o documento com que Bento XVI criou os ordinariatos para ex-anglicanos. Em conversa com a Renascença falou do estado actual do Ordinariato de Nossa Senhora de Walsingham, das expectativas para o futuro e do contributo que os padres ex-anglicanos, como ele, podem dar à Igreja Católica.
As normas do ordinariato, promulgadas pela Santa Sé, dizem que o ordinário pode “peticionar o Pontífice Romano (…) para a admissão de homens casados à ordem de presbítero, caso a caso, de acordo com critérios objectivos, aprovados pela Santa Sé”. Que critérios são esses?
De momento não existem. Foi ordenado um homem casado que não tinha sido antes padre anglicano e isso é porque quando o "Anglicanorum Coetibus" [documento de Bento XVI que cria os ordinariatos] foi publicado ele já estava no último ano de seminário e já era casado, pai de dois filhos. Por isso pedimos autorização a Roma e o Papa Bento XVI assinou a dispensa, permitindo a sua ordenação.
Mas foi o único caso. Ainda não temos os critérios e penso que de momento não é provável que venhamos a ter, mas isso ainda consta das normas.
Acredita que haverá espaço para padres casados no futuro do ordinariato?
Para dizer a verdade, não sei a resposta. É verdade que o clero casado faz parte do património anglicano, isso é claro para todos. Mas penso que se permitíssemos que houvesse clero casado numa parte da Igreja latina – de que o ordinariato faz parte – isso levantaria toda uma série de questões, para as quais ela ainda não está preparada.
O Santo Padre já falou de abrir a discussão sobre esta questão. Penso que se isso acontecer nós teremos um contributo a fazer. Mas não acho que nos caiba a nós abrir o debate.
A questão do celibato é uma das que mais divide a Igreja Católica e normalmente as opiniões dividem-se entre conservadores pró-celibato e liberais, que defendem a ordenação de homens casados. Neste debate você e outros padres ex-anglicanos representam uma anomalia, pois tendem a ser mais conservadores, ou tradicionalistas, mas são exemplos de como é possível exercer o ministério e ao mesmo tempo ter uma família. Como é que é encontrar-se nessa posição?
É um bocado estranho. Não me parece que os padres de tendência mais tradicionalista consideram isto uma dificuldade. Eles sabem que se trata de uma excepção pastoral, é a Igreja a abrir os seus braços às pessoas que querem estar em comunhão mas estavam numa posição teologicamente difícil. A Igreja tem sido acolhedora e generosa e penso que muitos padres alinharam com isso e tornaram-se nossos amigos e apoiantes. Mas não me parece que eles queiram que levantemos a questão do clero casado.
A minha mulher apresenta-se como a esposa do monsenhor, o que é um bocado estranho.
O ordinariato foi uma criação de Bento XVI. Quando o Papa Francisco foi eleito soube-se que ele teria dito ao então arcebispo anglicano de Buenos Aires que não concordava com a ideia. Que ambiente é que vos chega de Roma actualmente?
Esses comentários foram feitos em privado e o arcebispo anglicano, Greg Venables, ficou muito embaraçado por terem sido tornados públicos. Sei porque falei com ele.
É preciso compreender que o Papa Francisco é argentino e a Igreja Anglicana na Argentina é extremamente evangélica, por isso ele teria encontrado no arcebispo Venables um aliado em questões morais como o casamento homossexual, aborto e sexualidade em geral.
Teria sido bem diferente se ele fosse arcebispo de Nova Iorque e tivesse visto o que é a Igreja Episcopal [ramo americano da Igreja Anglicana]. Quando uma pessoa se torna Papa tem de passar a ter uma visão mais alargada das coisas, por isso penso que ele agora nos compreende um bocadinho melhor. Espero que sim. Mas nunca nos tratou mal.
Durante este pontificado foram feitas alterações às normas, reconhecendo um bocado mais a missão evangelizadora do ordinariato. Isso é uma coisa positiva, como é ter nomeado um bispo [o luso-americano Steven Lopes] para o ordinariato americano. Isso mostra que ele não é contra a ideia.
Sabemos que muitos dos anglicanos mais preocupados com o rumo do anglicanismo são os das igrejas africanas, mas não temos visto qualquer entusiasmo pelos ordinariatos em África. Porquê?
Porque as pessoas em África e algumas partes da Ásia que estão mais preocupadas com o rumo da comunhão anglicana não são de tradição anglocatólica, mas sim evangélica. Por isso, embora concordem com a Igreja em termos de moralidade, atitudes para com o casamento e sexualidade, e concordem também com o que a Igreja professa no credo, a sua eclesiologia é muito diferente. Por isso não é natural que se aproximem da Igreja Católica.
Dito isso, penso que há alguns que compreendem que a Igreja Católica poderá ser a única que, a longo prazo, defenderá a fé dos apóstolos.
Devemos esperar a criação de mais ordinariatos?
Não sei. Sei que tem havido interesse em alguns países luteranos que querem uma estrutura semelhante, para pequenos grupos de cristãos luteranos. É possível que seja criado outro ordinariato na África do Sul, ou na Índia, mas de momento não sei de nada.
No seu caso, enquanto bispo anglicano, tornar-se católico significou ser “reduzido” a padre e ainda ter cortes no seu salário. Foi fácil decidir-se pela mudança?
Ah! Isso foi fácil. A decisão foi muito fácil. Quando a constituição apostólica foi publicada não consegui ver qualquer razão para não avançar e explorar a ideia. Durante todo o meu ministério na Igreja Anglicana tinha sonhado e esperado a reunificação entre católicos e anglicanos. E depois de ter visto isso a ser frustrado tantas vezes, já não me parecia uma esperança realística.
Quando o Papa Bento XVI disse que não tínhamos de vir para a Igreja Católica apenas como indivíduos, mas que podíamos trazer connosco a nossa história e património, para enriquecer toda a Igreja Católica, já não via qualquer razão para dizer que não. O que nos estava a ser oferecido era tão incrivelmente generoso!
Houve dificuldades práticas, como por exemplo onde iríamos viver, mas a Igreja tem sido muito generosa e encontrou-nos uma casa. Tive um corte de vencimento, mas não perdi a pensão devida pelos anos de serviço na Igreja Anglicana. Nesse aspecto tive sorte, os nossos padres mais novos não têm isso.
Quando alguém vem falar comigo para saber como será fazer a transição, digo que não vai ser fácil, que poderá haver dificuldades, mas nenhum dos nossos padres ficou sem-abrigo ou passou fome. Deus providencia.
Algum dos padres que entrou para o ordinariato decidiu voltar atrás?
Não.
Teria entrado para a Igreja Católica se a sua mulher não concordasse?
Provavelmente. Mas ela teria de ter concordado, porque no dossiê que mandámos para a Santa Sé tem de constar a declaração da mulher a dizer que não se importa que sejamos ordenados padres católicos. Por isso, independentemente da sua decisão, teria tido que me dar luz verde. Uma ou duas das mulheres dos nossos padres não se tornaram católicas, por isso a decisão final seria sempre dela e fiquei encantado quando o fez, porque torna tudo mais fácil podermos rezar em conjunto, como católicos.
Penso que o facto de a minha filha já se ter tornado católica antes de nós tornou as coisas mais fáceis. Mas sim, teria tomado a decisão mesmo sem ela, mas não teria sido uma coisa tão boa.