Os “vistos Gold” voltaram a estar sob polémica por causa da invasão da Ucrânia. Mas a ideia não é acabar com esta forma de aquisição do direito de residência a troco de investimentos avultados, antes apertar a malha, de forma a reduzir o risco de a União Europeia ser uma lavandaria de dinheiro sujo, nomeadamente para os oligarcas russos.
Até ao final do ano, a Comissão Europeia deverá apresentar iniciativas legislativas, de modo a que as regras sejam semelhantes nos 19 Estados da UE, entre os quais Portugal, que têm os chamados “vistos Gold”.
A eurodeputada eleita pelo PS Margarida Marques explica que a ideia é “criar um sistema tão blindado quanto possível para evitar situações de branqueamento de capitais e que ponham em causa a segurança dos Estados-membros da União Europeia”.
O Parlamento Europeu pediu ao executivo comunitário que crie uma série de regras, “a começar pela proibição do investimento exclusivo em imobiliário, quando muito uma pequena parte”.
A antiga secretária de Estado dos Assuntos Europeus explica que se pretende também que “os investimentos que entram através dos ‘vistos Gold’ passem a ter de ser autorizados por todos os Estados-membros e não só pelo país de destino, que acabe a extensão do visto aos familiares, que os requerentes passem a ser investigados, quer no seu passado criminal quer no financeiro, e passam a receber visitas de inspetores no país de destino”.
Outra novidade é que “os países que têm ‘vistos Gold’ passam a ter de fazer um relatório anual a apresentar às autoridades comunitárias sobre todas as autorizações de residência deferidas e todas as rejeitadas”.
De acordo com o executivo comunitário, 19 dos 27 Estados-membros da União Europeia oferecem um modelo de ‘vistos Gold’, permitindo a residência e a circulação no Espaço Shengen, a troco de investimento, com valores situados entre os 60 mil euros na Letónia e um milhão e 250 mil euros nos Países Baixos.
Entre 2011 e 2019, 132 mil estrangeiros extracomunitários terão beneficiado destes programas, com valores de investimento no conjunto dos países da União Europeia que atingem mais de 21 mil milhões de euros.
Milhões em investimento
Em Portugal, desde 2012, já entraram mais de 5.600 milhões de euros de investimento estrangeiro ao abrigo das autorizações de residência conhecidas como “vistos Gold”. É, sobretudo, dinheiro chinês e brasileiro (em segundo lugar). Mas há ainda investidores de outros países, entre os quais da Rússia.
Segundo dados do Serviço de Estrangeiros Fronteiras (SEF), em nove anos, cidadãos russos investiram mais de 227 milhões de euros em Portugal, ao abrigo dos 431 “vistos Gold” concedidos, sete dos quais já neste ano.
Pedro Filipe Soares, líder da bancada do Bloco de Esquerda, reconhece que são muitos milhões, mas há que saber o impacto que tiveram na economia.
“Falta em Portugal um estudo, à semelhança do que foi feito no Reino Unido, no qual se concluiu que a economia não beneficiou da existência de ‘vistos Gold’ e, por outro lado, as desigualdades e os problemas sociais foram agudizados”.
O deputado bloquista defende que pelo menos uma parte do que foi a conclusão do estudo britânico é possível ver em Portugal também. “Quando olhamos para as grandes cidades, vemos que o efeito dos ‘vistos Gold’ foi ajudar na especulação imobiliária, na criação de uma bolha do preço da habitação que tem afastado as pessoas das cidades e que tem tido um peso enorme no direito à habitação”.
Logo na semana de início da legislatura, o Bloco de Esquerda entregou na Assembleia da República uma iniciativa legislativa com vista a acabar com a possibilidade de cidadãos de países terceiros poderem adquirir o direito de residência em Portugal a troco investimentos avultados, o que, segundo o líder da bancada, “é revelador da importância que o partido dá à questão.
Pedro Filipe Soares lembra que, já antes, o BE tentou acabar com um mecanismo que “considera uma indecência porque concede direitos de cidadania, a troco de dinheiro” e acrescenta que, antes da invasão da Ucrânia e de toda a polémica em torno dos oligarcas russos, “já sabíamos que a origem do dinheiro eram negócios sujos, dinheiro proveniente de corrupção e de branqueamento”.
O problema não está na nacionalidade
Susana Coroado, presidente da Associação Transparência e Integridade não é tão radical e não defende a extinção do mecanismo. Mas espera que se aproveite a polémica sobre a origem do dinheiro russo que tem entrado na Europa pela porta dos “vistos Gold” para o repensar.
Defende, no entanto, que não há um problema de nacionalidades. “Nós não temos um problema com os cidadãos russos ou com cidadãos chineses, em particular. Temos contra o programa em si e os riscos que traz. E nessa medida eu espero que, a reboque destas sanções e desta guerra que trouxe esta questão do dinheiro sujo que entra na Europa – desta vez com oligarcas russos, amanhã com qualquer outro país – se faça a avaliação do programa”.
São mecanismos em que tem reinado a falta de transparência. Susana Coroado denuncia que pode haver casos de cidadãos de países terceiros a quem foi autorizada a residência com base em passaportes comprados.
“Há ‘vistos Gold’ que são atribuídos em Portugal a cidadãos de umas ilhas minúsculas nas Caraíbas, Saint Kitts and Nevis, onde se vendem passaportes dourados. Dificilmente as pessoas que se candidataram aqui aos ‘vistos Gold’ são pessoas de Saint Kitts and Nevis. Possivelmente, já foi alguém que comprou um passaporte lá”.
SEF não renova autorizações
No Em Nome da Lei deste sábado participaram também duas advogadas habituadas a tratar de processos de aquisição de residência para investimento em Portugal.
A advogada Irina Akmetova denuncia que “o SEF não está a renovar as autorizações de residência a todos os russos que vieram para Portugal ao abrigo dos ‘vistos Gold’”.
A cidadã portuguesa de origem russa lembra que as recomendações da Comissão Europeia são apenas para não ser renovada a autorização de residência aos oligarcas que constem da lista de sanções da UE, mas o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras aplica a medida indiscriminadamente.
“É uma situação terrível para muitas destas pessoas que vivem em Portugal. Não só a concessão dos ‘vistos Gold’ é suspensa, como a sua prorrogação. Eu tenho casos dramáticos de pessoas que têm a sua vida enraizada em Portugal há três ou quatro anos e que neste momento, por não terem título de residência válido, têm as suas vidas empatadas. Não conseguem sair de Portugal ou sair da Rússia para virem para cá, apesar de terem por lei o direito de residir em Portugal”, descreve.
A advogada garante que “nenhuma das 200 famílias em cujos processos de aquisição do direito de residência tem trabalhado tem qualquer ligação aos oligarcas russos ou é próximo do regime”. Diz que os cidadãos russos que são seus clientes investiram em Portugal “para dar um futuro melhor aos filhos” e que fugiram de Putin, sendo contra a guerra.
No entanto, estão a ser alvo de sanções em Portugal. “Todas as pessoas de nacionalidade russa estão a ser castigadas injustamente. Dos meus clientes, não conheço um único que seja a favor da guerra. Nós temos estas conversas permanentemente. São essas pessoas que fugiram do regime de Putin para se enraizar na Europa e estão a ser alvo de uma injustiça, de uma violação dos Direitos Humanos na Europa, à qual eu, como cidadã portuguesa, não posso ficar indiferente”, lamenta.
Também a avogada Maria Cabral de Azevedo, que tem trabalhado em processos de aquisição de residência por cidadãos de países terceiros a troco de investimento avultado, admite que é uma incógnita o que vai acontecer aos cidadãos russos que já obtiveram autorização de residência para viver em Portugal. São vidas em suspenso.
“O que vai acontecer aos cidadãos russos que atualmente vivem em Portugal é uma incógnita para todos. Toda a gente discute efetivamente o que lhes vai acontecer. As autorizações de residência vão de facto ser revogadas? Não sabemos. A verdade é que não há ninguém que saiba neste momento. O próprio SEF não sabe o que vai fazer a estas pessoas. A única coisa que sabem é que os processos que entrem de cidadãos russos ficam suspensos e não serão analisados”, afirma à Renascença.
A antiga Secretária de Estado dos Assuntos Europeus e agora eurodeputada eleita pelo PS, Margarida Marques, diz que “é um erro misturar sanções e ‘vistos Gold’”. Portugal apenas pode aplicar sanções a quem conste da lista da União Europeia, sublinha.
“Uma questão tem de ser separada da outra. Uma são os ‘vistos Gold’ como questão política, que tem de ser resolvida no contexto europeu de forma a ficar com regras muito claras – e aí, evidentemente, estão todos os cidadãos de países terceiros, independentemente da sua nacionalidade – outra questão são as sanções aos oligarcas russos ou aqueles que têm uma ligação com Putin e estão na lista dos sucessivos pacotes que a União Europeia tem aprovado. Portugal não tem um regime de sanções nacionais. Tem pois apenas aplicado as sanções aos cidadãos que constam da lista de cidadãos russos”, defende.