Quando uma coisa pode correr mal, corre pior. Esta espécie de lei de Murphy melhorada aplica-se, com justeza, ao ministro da Administração Interna. Foi o caso das golas, do SEF, do SIRESP. Para cúmulo, acresce um acidente em plena A6, em carro de serviço, provocando uma vítima mortal. Aqui nada seria da responsabilidade do ministro a menos que este tenha incentivado o condutor ou tomado conhecimento, e permitido, o uso indevido de excesso de velocidade, sem cuidar da sinalização obrigatória para esses casos.
Nesta última hipótese Eduardo Cabrita deveria, na hora, ter apresentado o pedido de demissão, porque responde pela segurança rodoviária e poderia ser considerado coautor moral de crime por negligência. Fora isso, caiu-lhe em cima mais um berbicacho do qual é cada vez mais difícil sair. Quem sabe, desta, é mesmo ele a próxima “vítima”.
Cabrita só seria visado se tivesse existido negligência e ele próprio consentido na infração direta ou indiretamente com expressões do tipo: “ande lá com isso mais depressa, que eu estou atrasado… ou, olhe que é para estarmos em Lisboa às tantas…”. Isto, por si só, já bastaria para retirar boa parte de uma eventual culpa ao condutor e, dado que morreu um homem, configurar a coautoria de um crime de negligência grosseira (digo eu, que não sou jurista, e estou só a pensar alto como o povo!). Mas se foi isto que aconteceu, e justifica o peso de quinze dias de silêncio, quanto mais rápida surgir a remodelação melhor.
Dou contudo, ao ministro, o benefício da dúvida. Num caso desses seria ele o primeiro a assumir o facto demitindo-se. Por obrigação cívico-moral e também política, uma vez que tutela uma pasta que nunca lhe permitiria compactuar com um comportamento de um subordinado que colocasse a segurança nas estradas em risco.
Cabrita é um sobrevivente nato. Sabe-se que resistiu à distribuição de golas para combate aos fogos, feitas de material inflamável; à morte por espancamento de um estrangeiro à guarda do Estado, por inspetores do SEF, em pleno aeroporto; e pôs em risco a renegociação do principal sistema de comunicações em caso de catástrofe. Todavia, devido a um azarado acidente de automóvel, o ministro não teria, desta vez, maneira de permanecer no Governo por mais que Costa tentasse salvar o amigo.
Uma coisa é certa, a absoluta fidelidade de Eduardo Cabrita ao chefe do Governo pode ajudar a explicar o porquê da sua manifesta incompetência em dossiers tão graves. Neste último caso, o que mais espanta é a “lata” que tem demonstrado, não dando a mais leve explicação, ser muito superior ao seu azar.
Cumprindo o código de conduta ministerial imposto por Costa (já glosado em artigo anterior) Eduardo Cabrita remeteu-se de imediato ao silêncio (1º princípio - não se comentam notícias desagradáveis). Depois, perante a onda de notícias que começava a crescer, desvalorizou os fatos, descredibilizando a comunicação social, acusando-a de estar a fazer “um caso” com base em informações falsas (2º princípio).
No comunicado, que o seu ministério foi forçado a emitir, já no dia seguinte, tentou também, de uma penada alijar a água do capote deixando, no ar, a dúvida sobre se a culpa do atropelamento não seria da vítima (ou, no mínimo, da empresa onde trabalhava…) porque estando a realizar obras de manutenção, no lado direito da via, estas não estavam devidamente sinalizadas (3º princípio – adotar como postura oficial uma infinita desvergonha).
O comunicado aproveitava ainda para esclarecer uma meia verdade (como dizia o poeta, para “a mentira ser segura e atingir, profundidade”): como não tinha existido nenhum despiste, seguindo o carro na via esquerda de onde nunca tinha saído, os jornais estavam simplesmente a efabular sobre o que desconheciam. Mas, nada de aproveitar para explicar o que e como se passara.
A tentativa de encerrar o caso, subvalorizando-o e chutando para canto a responsabilidade direta ou indireta sobre ele, acabou a virar o feitiço contra o feiticeiro. Existiam seguradoras e empresas envolvidas e vieram à liça limpar o seu bom nome.
A Brisa emitiu, no mesmo dia, outro comunicado, desmentindo o emanado dos serviços do ministro e garantindo que a sua subcontratada tinha cumprido “todas as normas de segurança” alertando os condutores para os trabalhos em curso.
Além disso, em nome da seguradora da empresa subcontratante, o advogado da família da vítima contra-atacou nos meios de comunicação social, garantindo que o trabalhador colhido também envergava o fato de trabalho completo (calças e colete laranja e amarelo refletor) sinalizando devidamente a sua presença.
O causídico aproveitou a exposição mediática para levantar uma dúvida: sem despiste e tendo ocorrido o embate “tão próximo do separador central”, porque viajaria o carro de Estado na via esquerda (reservada a ultrapassagens) se existia pouco trânsito além de excelente visibilidade? Acrescentou ainda, de forma quase perversa, que tudo era fácil comprovar com as devidas peritagens e o seu escritório já tinha sido contactado pela seguradora do carro oficial indiciando desinteresse pela discussão de atribuição da culpa e mostrando total disponibilidade para o necessário acordo de compensação à família.
Ficou ainda a saber-se que o trabalhador, sendo o responsável pela equipa, era o mais experiente entre os participantes. A dramaticidade aumentou quando se soube que Nuno Santos tinha pouco mais de 40 anos, era casado e deixava duas filhas sem o principal sustento da família.
Os jornais não se calaram. O CM fez umas contas elementares entre a hora da entrada na portagem e a hora do acidente e concluiu que o carro viajava à média de 200 km por hora, sem identificação de “emergência”, uma luz que autoriza os carros oficiais a ultrapassar os limites impostos pelo código. Um colega da vítima falou em “velocidade louca”. Outro jornal calculou a velocidade necessária para o carro percorrer o último quilómetro: 20 segundos. O bastante para o carro se aproximar sem que visse o trabalhador colado ao separador nem a tempo deste se desviar.
Os jornalistas agarraram-se ao mais comum dos factos: qual era afinal a velocidade? (entrou em cena o 4º principio – o Governo escudou-se na desculpa habitual: está a decorrer um inquérito pelo que, até este terminar, não se pode comentar o caso). Tem sempre de se esperar pelo “tempo” da justiça.
Não bastou. Apanhado ao lado de Marcelo este “comentou/ sem comentar” bem, como habitualmente, e em poucas palavras: “o que importa é apurar a verdade dos factos. E esse apuramento deve decorrer e não deve depender se ia A, B, ou C, a conduzir, ao lado do condutor ou atrás. O que for apurado é apurado”. Estava dado o recado que também respondia às notícias do dia (ordens superiores teriam impedido que a equipa da GNR procedesse às perícias habituais …).
Marcelo disse apenas o óbvio: não toleraria nenhum abuso de poder e exigia justiça igual para todos. Depois, quase desafiou o ministro a pronunciar-se, autorizando-o expressamente a esclarecer o que quisesse. Não quis. (princípio 5º do código de conduta – insiste-se no silêncio até que passe o nervoso jornalístico e os media dediquem a sua atenção ao caso seguinte).
Depois, foi o habitual. Passados três dias e já a reboque da polémica instalada, Rui Rio exige não a demissão do ministro mas do próprio António Costa. Para isso o PSD tinha descoberto um novo pormenor (gravíssimo!): o automóvel não tinha registo. A intervenção teve o mérito de forçar o MAI a um novo comunicado circunscrito ao fato de se tratar de uma viatura apreendida e, por isso, com uma simples autorização de marcha até 2023.
Quanto ao que interessava (velocidade, resultados da eventual autópsia, número de ocupantes do veículo, realização ou não do habitual teste de alcoolémia ao condutor etc…etc…? Nicles!
O inquérito parece que pode durar uns meses. Aterrou, ao que se sabe, no DCIAP de Évora e por lá andará, juntando-se à demais papelada. As seguradoras entrarão em acordo e esperemos que a soma seja suficientemente alta para não nos fazer a todos corar de vergonha.
Para vergonha já basta a história rocambolesca contada no Expresso em torno dos meios de socorro acionados, ao que parece, 11 minutos depois e enviados pelo 112 para o local do acidente: os bombeiros perdem-se a caminho, avisado o CODU de Lisboa segue uma VMER do hospital de Évora, mas no sentido contrário ao do acidente. Por ironia os primeiros socorros a chegar virão numa viatura do INEM, sem médico a bordo e que dá pelo nome de “Suporte imediato de Vida”. Isto para registar o estado da vítima que terá eventualmente sofrido morte imediata. O médico haveria de chegar já com uma hora de atraso face à hora do acidente. Mas, descansemos porque, sobre a demora da chegada de meios de socorro, também está já a decorrer um outro inquérito. Que não será alvo de comentários até que um dia se finde ou se fine.
Parece que nada disto tem a ver, mas asseguro-vos que são casos, como este, a justificar o “definhamento” de todo o país de que falava o saudoso professor Ernâni Lopes. Atrasos, manhas, falta de clareza, delongas desnecessárias, perguntas que não se fazem e outras que se perdem sem respostas, medo de dizer a verdade, medo da sombra e do próprio medo. Inquéritos para tudo e para nada, responsabilidades que prescrevem e passam, de fininho, entre os pingos da chuva que escorre no molhado.
A má qualidade destas elites. Gente incapaz de dar a cara e sair da penumbra do terreno pantanoso de que poucos ousam fugir (como Guterres) e onde, para uns, os pormenores de um acidente estão escarrapachados nos jornais do dia seguinte e, para “os outros”, passados quase duas semanas ainda se espera que a vaga passe e os media se esqueçam do nome da vítima: Nuno Santos. Um português como os outros. Eles e nós. O ponto de encontro das fadigas pandémicas onde bebem todas as ditaduras.