Assume que “é um bocado assustador fazer um disco e saber que a compra de discos é cada vez menor”, mas Camané não o deixa de fazer. Acaba de lançar “Horas Vazias”, um disco com 16 novos temas que aconteceu mais rápido do que imaginava. No álbum canta “Que Flor Se Abre no Peito”, o tema escrito por Pedro Abrunhosa para Carlos do Carmo, mas que o fadista não chegou a gravar antes de morrer. Há também uma homenagem ao guitarrista José Precana, e temas assinados por Vitorino, Carminho, Amélia Muge ou Jorge Palma que lhe mandou “pelo 'WhatsApp'” a música às quatro da manhã. Em entrevista ao Ensaio Geral, Camané revela ainda quem é Sebastião Cerqueira, o novo poeta que canta no primeiro disco produzido por Pedro Moreira, já sem José Mário Branco.
“Horas Vazias” é um título que nos poderia remeter para este último ano e meio de pandemia, onde houve um vazio gerado pelo confinamento, mas esta ideia de Horas Vazias no tema que canta fala do tempo que temos de dedicar ao lazer, à cultura.
Ao longo dos anos, dos discos que fui gravando, ia tirando uma frase de um poeta, uma frase que eu gostava e que fazia parte do disco para fazer o título a partir daí. Este "Horas Vazias" tem a ver com o quando nós estamos disponíveis e com espírito aberto para recebermos, para preenchermos esse vazio, alimentarmos a alma com música. Honestamente não teve muito a ver com a pandemia. Teve a ver com essa ideia de receber e disfrutar da música.
E com que espírito é que devemos receber este Horas Vazias?
Com espírito aberto, identificarmo-nos com as letras e músicas.
Este é um disco recheado de boas letras. A poesia tem sempre uma dimensão importante nos seus trabalhos. Como foi crescendo este disco? Tem aqui muitos contributos de músicos de áreas muito diferentes, como o Jorge Palma, o Pedro Abrunhosa ou a Carminho. Como é que nasceram estes originais?
Houve antes o disco do Marceneiro com os originais dele, depois o disco com o Laginha onde houve outros originais. Mas neste caso surgiu tudo muito por acaso e muito mais rápido do que estava à espera. Falou-se me fazer um disco no final do ano e acabei por o fazer antes das férias. Foi fantástico.
Como é que foram surgindo os vários autores? Por exemplo, o Pedro Abrunhosa?
No caso do Pedro Abrunhosa, foi uma música que ele tinha feito para o Carlos do Carmo, mas que o Carlos não gravou porque faleceu antes. O Pedro ligou-me a dizer que tinha um fado que gostava que eu ouvisse e gostei imenso e achei que podia passar o meu registo. Ele mandou-me a música tocada ao piano e gostei imenso da música, do poema que tinha a ver com Lisboa e uma descrição do amor e da noite de Lisboa, dessa Lisboa do Campo Grande.
E a Carminho, assina a música para uma letra de Júlio Dinis?
Foi o último tema que pensei gravar. Estava um bocado reticente e de repente percebi que a música era fantástica. Ela tinha feito a música para um poema do Júlio Dinis que é a "Nova Vénus" e gostei imenso de fazer. De uma forma intuitiva, a Carminho tinha feito com uma influência, sem ela se aperceber, do Fado de Coimbra. E de repente falei com o João Barradas e convidei-o para fazer parte do tema no acordeão.
Tem também um tema do Jorge Palma?
O Jorge Palma foi a última pessoa a compor uma música. Já na fase em que trabalhava com o José Mário Branco falávamos muito porque ele gostava muito do Jorge Palma. Eu também gosto imenso. E o Jorge Palma mandou-me a música às quatro da manhã pelo 'WhatsApp' e foi fantástico, gostei imenso de gravar o tema. O poema é lindíssimo. As coisas foram aconteceram por acaso. O tema do José Manuel Neto, por exemplo, foi uma música que estávamos no ensaio e ele mostrou-me a música. Ligamos para o João Monge e ele no dia seguinte já tinha a letra para a música. Foi incrível. No caso da Maria do Rosário Pedreira, o Mário Laginha já tinha feito uma música para aquele poema. Portanto, as coisas foram acontecendo muito rapidamente. Mais do que estava à espera.
Tem aqui também algumas colaborações novas, nomeadamente do poeta Sebastião Cerqueira que assina três letras.
Foi um encontro. O Sebastião Belford Cerqueira fez duas letras para o fado tradicional, para o Fado da Bica e para o Fado Rosa do Marceneiro. E depois aquele fantástico tema "Meu Amor" do Miguel Amaral. Foi um poeta que eu descobri por acaso. Foi a minha mulher que foi assistir a umas leituras do Jorge Silva Melo em que ele lia poemas de poetas novos e neste caso, o Sebastião. Liguei-lhe a perguntar se ele conseguia escrever letras para fados e ele disse-me que tinha feito o doutoramento em escrita para Hip-Hop. Mandei-lhe os fados e ele escreveu de uma forma incrível.
Este é um disco produzido pelo Pedro Moreira que vem do mundo do jazz. Como é que foi não trabalhar com o José Mário Branco?
A ideia foi mesmo essa, encontrar alguém que percebesse e conseguisse entender o Fado. Tem a ver com tempo e ritmo. Era ter alguém que tivesse essa sensibilidade, como tinha o Zé Mário que não era do Fado. O Pedro teve essa sensibilidade, perceber que esta é uma música diferente. A ideia não foi aproximar o Fado do Jazz. É ser Fado. É o meu registo. É o meu modo de estar, é a forma de entoar as músicas, é Fado! Foi uma coisa que o Pedro percebeu e isto é um disco de Fado.
Há uma homenagem ao guitarrista José Precana que desapareceu no último ano. Como é que surgiu "As Ilhas Afortunadas"?
É o Fado Menor, mas é o Fado Menor maior. As coisas aconteceram por acaso. Há um amigo meu que é o Gonçalo Moita, meu amigo de infância, nós nunca falamos de Fado quando eramos miúdos. Eramos vizinhos, morávamos em Oeiras. Fomos nos encontrando e por vezes já falávamos de Fado e ele mandou-me esta música no 'WhatsApp'. Normalmente o Fado Menor canta-se em quadras, mas eu cantei em quintilhas. Havia esta coisa da estilização no fado tradicional, havia muitos fadistas como a Amália ou o Carlos do Carmo que estilizavam os fados. Davam-lhes uma pequena diferença a partir do tradicional para conseguir incluir neste caso, uma quintilha, em vez de uma quadra. Então fica o Fado Menor maior. E quem toca guitarra neste tema é o José Precana, com este poema lindíssimo do Fernando Pessoa. Dediquei ao Precana e aos Açores.
Ouvir hoje um disco é cada vez mais um desafio. A venda de CD's tem vindo a cair. Os concertos tornam-se mais importantes, ou a edição do disco físico continua a ser importante?
Tem uma importância relevante. É assustador esse lado de que me está a falar, mas acho que consigo compensar. Também não ouço muito os meus discos! Não sou aquela pessoa que está sempre a ouvir-se. A minha perspetiva é quando vou para um concerto é de melhorar o que fiz no disco. O disco é uma coisa que fica registado naquele dia, e a minha ideia é sempre melhorar o que fiz, porque não gosto de me ouvir, estou sempre a ouvir os defeitos. A perspetiva de ir para o palco e cantar o disco é sempre de melhorar aquilo que fiz. É um bocado assustador fazer um disco e saber que a compra de discos é cada vez menor. Mas não deixo de o fazer e de acreditar. Na minha música há ainda gente que compra os discos nas lojas.