“Eu gostava hoje de ser o autor e não o ministro”. É o pedido prévio de Luís Filipe Castro Mendes para a entrevista concedida à Renascença, sobre o seu novo livro, “Poemas Reunidos”.
Editado pela Assírio e Alvim, o livro reúne a obra poética escrita desde 1985. Em funções como ministro da Cultura desde abril de 2016, o poeta confessa ter hoje menos disponibilidade para escrever.
Numa conversa em que fala da crise no mundo da edição e do trabalho dos pequenos editores, Castro Mendes aponta a importância da literatura no ensino do português. O ministro que tutela a comunicação social critica o “espaço do livro na imprensa”, diz que “diminuiu brutalmente. Está confinado”
O livro "Poemas Reunidos" que acaba de lançar pela Assírio e Alvim é uma antologia de todo o seu trabalho poético.
Não lhe chamaria antologia. São poemas reunidos. É evidente que há uma escolha. Há poemas que foram eliminados, mas, no essencial, penso que está aqui o meu percurso poético desde 1985 até hoje. Chamei-lhe "Poemas Reunidos" porque "poesia completa" dá um ar de finitude e eu gostaria ainda de escrever mais e publicar mais livros.
A política dá-lhe tempo para isso?
O problema não é tempo, é mais disponibilidade interior. Já estive tão ocupado como agora e tinha disponibilidade para escrever. Leio, continuo a ler e estou atento ao que se publica e escreve, mas não tenho tido a disponibilidade interior para escrever e organizar os meus textos.
Como é que foi o trabalho de laboratório de preparação desta nova edição da sua poesia?
Quando pegamos em tudo o que escrevemos e olhamos para trás, há umas coisas de que gostamos, outras de que gostamos menos. Há umas coisas com que nos continuamos a identificar, há outras coisas com que nos identificamos menos. Tudo aquilo faz parte do nosso percurso. Talvez fosse uma traição ao leitor não publicar mesmo aquela parte do nosso percurso que não nos dá hoje tanta satisfação. Fiz uma escolha, eliminei e modifiquei algumas coisas. Mudei a ordem de alguns poemas, criei ciclos um pouco diferentes, mas sem introduzir mudanças por respeito pela pessoa que eu era no momento em que publiquei aqueles textos.
Parece que teve a tentação de reescrever os poemas. Já não é o mesmo poeta?
Nunca somos os mesmos. Há muitos temas comuns. Aliás, hoje pego no livro, leio e vejo que há muitos temas, citações, palavras que ocorrem muitas vezes e que são temas obsessivos.
Por exemplo?
Há um verso do Jorge de Sena "É ser-se humano, passo a passo, mais" [A Morte, O Espaço, A Eternidade]. Há o Camilo Pessanha "Conchas, Pedrinhas, Pedacinhos de ossos" [Vénus]. Essa é uma citação que persegue algumas obsessões pessoais. Eu leio este livro e vejo perfeitamente o meu percurso interior e de vida. Aliás, há ali poemas relacionados com a experiência de vida no estrangeiro, no Brasil, na Índia e em vários países. Tudo tem a ver comigo. Ás vezes posso gostar menos de algumas formulações, mas penso que, se as fiz na altura, não melhora, não vale a pena. Ficaram como estão. Aquilo que eu espero é ter leitores e que alguns poemas lhes digam alguma coisa ou lhes abram alguma porta e criem alguma imaginação. O poeta Paul Éluard dizia que “poeta é aquele que inspira e não aquele que é inspirado”. É verdade, o poeta é, sobretudo, aquele que cria no leitor um estimulo, uma reação. É isso que todos procuramos quando escrevemos.
Já escreveu, durante os anos da crise financeira, sobre essa temática no livro "A Misericórdia dos Mercados". Que temas contaminam hoje a sua poesia?
Todos. Eu respondo à vida com poemas. Quando fui para a Índia tinha a ideia de escrever qualquer coisa sobre a Índia. Depois percebi que a melhor maneira que tinha de traduzir a minha relação e descoberta da Índia era através dos poemas e escrevi o livro, "Lendas da Índia". "A Misericórdia dos Mercados" foi um livro que surgiu da reação a uma política que nos considerava parasitas. Há um momento em que o discurso do Governo diz "vocês funcionários, trabalhadores são parasitas". Havia até a expressão "regabofe". Realmente em alguns poemas de "A Misericórdia dos Mercados" eu reajo a esse discurso que era extremamente agressivo em relação a uma classe a que eu pertenço que é a dos funcionários públicos e que era extremamente agressiva em relação aos trabalhadores. Já o "Ulisses Regressa a Casa", o meu último livro tem mais que ver com expectativa do regresso, uma vez que eu terminava a minha carreira diplomática no estrangeiro e ia voltar. Não previa de maneira nenhuma que seria convidado para estas funções que desempenho hoje. O livro foi publicado e lançado em fevereiro de 2016, três meses antes de ser convidado para o Governo. Não fazia a menor ideia. É o livro da perplexidade de alguém que terminou um ciclo da vida no estrangeiro e que tem uma carga de experiências que traz consigo e que vem reencontrar o seu país.
E como reencontrou o seu país?
Reencontrei de uma maneira que para mim foi motivadora. As funções que desempenho levaram-me a conhecer melhor o que se faz no país e o estado da cultura no nosso país. Se por um lado é verdade que da crise e da resposta que o anterior Governo deu à crise financeira resultaram grandes danos e desastres para a cultura, também pude ver a extraordinária capacidade de afirmação, iniciativa, resistência e resiliência que os artistas foram capazes de ter e de manter as suas estruturas e atividade e lutar contra as limitações e contingências. Vi também a extraordinária atividade dos poderes locais, da sociedade civil. É diferente de há 30 anos para quem vive a maior parte do tempo fora do país. É uma surpresa, o interior. Existe hoje uma capacidade de atuação e iniciativa da parte das regiões do interior e dos municípios que é muito diferente da que existia há vinte ou trinta anos.
Isso ajuda-o nas suas funções enquanto ministro da Cultura, sobretudo devido à escassez de meios financeiros para o apoio à cultura?
Penso que se complementam. O Estado não pode abdicar da sua função, mas as autarquias são também Estado e têm revelado capacidade para desempenhar essa função. Mas estamos a desviar-nos do livro. Eu gostava hoje de ser autor e não ministro.
Quem são para si hoje os leitores de poesia? Diz-se que há poucos?
Há muito mais leitores de poesia do que se pensa. As edições de poesia vendem melhor do que, em comparação relativa, por exemplo em França. Temos menos leitores comparativamente, claro, em números absolutos. Temos boas edições e bons leitores de poesia por exemplo em Espanha. Mas o que se passa é que há uma crise da edição e claro que os poetas não são os "best-sellers". É claro que na edição também temos que ter critérios. Temos pequenos editores que fazem um trabalho notável... a Língua Morta, a Abysmo. Fazem um trabalho importante e publicam autores importantes de poesia, mas não têm a distribuição que deveriam ter. Temos editoras como a minha, a Assírio e Alvim que tem uma boa escolha de poetas e que publica não só a obra de autores consagrados, mas também obras de autores mais novos. O Daniel Jonas tem publicado na Assírio e na Língua Morta e é, para mim, um dos poetas dos mais interessantes da geração mais nova. Penso que temos pequenos editores que têm dificuldade de distribuição e deveríamos ter uma melhor distribuição.
É preciso outro protagonismo para o livro?
Temos uma escassez na imprensa. O espaço do livro diminuiu brutalmente. O espaço para os livros, as recensões, as criticas está hoje muito arrumado. Existe, mas está muito confinado se comparamos com o que se escrevia há dez ou quinze anos sobre livros. O espaço é muito menor e é dividido com o entretenimento, com música e outras formas artísticas. O livro está confinado. É uma observação que faço sobretudo quanto aos meios escritos. Há muito menos espaço para o livro.
E a promoção da leitura, nomeadamente, da poesia?
Acho que há um bom trabalho na divulgação da poesia e na educação para a poesia. Não é difícil. Há uma coisa fundamental na poesia que é o ritmo e apanhar os ritmos da linguagem faz-se através da poesia. O ato de decorar poesia que alguns veem mal, mas que eu acho que é valioso, dá um conhecimento dos valores rítmico e musicais da linguagem que é insubstituível. Penso que o que é preciso valorizar no ensino da língua, o literário e o poético porque a língua não é apenas um meio de comunicação objetivo. Há um valor na língua e na elaboração na língua de capacidade, ambiguidade, critica, de contravenção. Não podemos reduzir o ensino da língua à capacidade de ler um texto das instruções ou um manual para funcionar com uma maquina. A leitura literária abre outras capacidades e outra valorização. Por isso, no ensino do português a literatura nunca pode ser esquecida.