A bastonária dos Contabilistas Certificados entende que é preciso um corte maior no IRS, menos taxas de IVA na energia e mais incentivos à contratação de jovens e pessoas portadoras de deficiência.
As contas para o próximo ano, incluídas no Orçamento do Estado 2023 (OE 2023), têm o mérito de apoiar o rendimento disponível mas, em entrevista à Renascença, Paula Franco lamenta que os senhorios tenham ficado de novo para trás.
A bastonária avisa ainda que a inflação estimada pelo Governo não é realista e terá de ser ajustada.
Como é que classifica este Orçamento?
Como um Orçamento que quer mostrar alguns sinais de confiança. O ministro caracterizou-o como sendo um Orçamento que pretende trazer confiança e estabilidade, nota-se que existiu essa preocupação, o que não quer dizer que seja sempre alcançada.
Há algumas situações em que teríamos uma expectativa diferente, como sempre, que ficam aquém, mas, de uma forma geral, aproximou-se ao que tem sido discutido e que se tem sugerido, nomeadamente na concertação social. Esses aspetos são positivos.
António Costa garante que o rendimento líquido disponível das famílias sobe acima da inflação. O Governo aponta para 4% no próximo ano. É otimista?
Eu acho que é muito otimista. Era ótimo se fosse assim. Eu também sou otimista e gostaria muito que essa previsão fosse realista, mas a minha convicção é que não serão esses 4% e vamos ter que fazer face a mais ajustamentos para o próximo ano.
Uma das bandeiras do Governo é a subida dos salários médios. No entanto, as simulações indicam que, depois destas alterações. só há alívio fiscal para quem não for aumentado no próximo ano. Faltou coragem nestas alterações?
Tudo é relativo, mas pelo menos há um incentivo para que as empresas aumentem os salários. Um incentivo para os aumentos acima de 5,1% e que o Estado tenta compensar, se existirem, por um ajustamento dos escalões do IRS e das taxas de retenção na fonte.
Só com a publicação das taxas é que vamos verificar isto. Os escalões sim, foram ajustados nesse sentido. Quem não for aumentado já vai ter algum benefício pela própria mexida dos escalões e das taxas, mas também quem for aumentado tem garantido o próprio aumento em si.
Portanto, esses comentários não são diretos porque vai haver um aumento e, por si só, já vai representar mais dinheiro no bolso dos portugueses.
A redução das taxas de retenção compensa esse aumento?
Se calhar poderia ser maior para que o impacto fosse maior. Mas não deixa de ser algo sentido nos bolsos portugueses.
Outra pergunta que podemos fazer é se esse aumento do dinheiro que vai chegar aos bolsos dos portugueses, se vai ou não compensar o aumento dos preços dos bens?
Aí já temos muitos pontos de interrogação. Agora, o Estado também não tem que compensar tudo. Todos os aumentos que não desequilibrassem as contas públicas nunca seriam suficientes.
Uma área onde não há alterações é nas deduções das despesas familiares nem nos benefícios. Foi uma oportunidade perdida ou este não é o ano para mexer nestas áreas?
Não se mexe diretamente, mas mexe-se indiretamente, porque se o aumento do IAS for efetivamente dos tais 8%, também há o ajustamento de algumas das deduções. Quanto às restantes, acho que aqui apostou-se mais na redução da taxa e não no aumento das deduções.
Porque estão isentos, os mais desfavorecidos não têm apoios à inflação pelos impostos. Restam as outras medidas. São suficientes para falar de um Orçamento equilibrado?
O mínimo de existência foi uma das grandes alterações neste Orçamento de Estado a nível de IRS. O mínimo de existência tem uma incidência muito importante para os rendimentos mais baixos.
Havia uma fórmula direta que acompanhava os salários mínimos, que não pagavam qualquer tipo de imposto pela garantia desse mínimo de existência. A fórmula mudou, permitindo acompanhar os salários até 1.000 € mensais. Portanto, há aqui uma grande diferença entre o salário mínimo e os 1.000 € mensais, que vão ficar abrangidos, desde que estes aumentos tenham a ver com o trabalho dependente e com reformas, vão ficar abrangidos pelo não pagamento de impostos, o que é significativo para as famílias com menor rendimento.
No entanto, ao separar o mínimo de existência do salário mínimo, os salários mais baixos arriscam agora passar a pagar IRS?
O que se fala é que com a evolução nos próximos anos, pode o salário mínimo ficar sujeito a imposto. Não agora para 2023.
Este Orçamento já tem o mérito de corrigir os erros no mínimo de existência. Há mais erros do género ainda por resolver?
Há sempre erros, há sempre injustiças no cálculo dos impostos que poderiam ser mexidas. Por exemplo, as matérias em relação aos deficientes e quem tem um grau de deficiência estão aquém daquilo que deveriam existir, porque existem muitas limitações em termos de trabalho e os incentivos fiscais poderiam mitigar essas questões.
Na inclusão acho que se poderia ter ido mais além mas, lá está, neste momento estamos a debater a falta de trabalhadores e a retenção de trabalhadores em Portugal e o foco foi muito nessa medida.
Há alguns incentivos à contratação.
As medidas dos jovens, com o aumento dos benefícios, de alguma forma podem ajudar. Aqui podia-se ter ido muito mais além. Só até aos 26 anos é pouco, devia ir até aos 30. Claro que já há uma medida que abrange os 30 anos, quando se faz um doutoramento, mas são situações pontuais.
Devia ser transversal, temos de reter o talento até aos 30 anos, porque nos primeiros anos de trabalho até é normal que os jovens fiquem em Portugal e depois, quando têm já alguma experiência, é que vão para outros países. Há quem vá logo, claro, e também é preciso reter.
Para os pensionistas, o Governo deixou cair a aplicação da fórmula de atualização à inflação, mas o ministro das Finanças já garantiu que há possibilidade de acertos nos aumentos. Ainda assim, os pensionistas podem ficar tranquilos?
É uma questão que não está ainda clara, é uma das situações em que vamos ver o que acontece. O mesmo se passa em relação à generalidade dos trabalhadores.
Acho que todos os aumentos e todos os incentivos não vão ser suficientes para fazer face, não à taxa de inflação prevista, mas ao verdadeiro cabaz de compras dos portugueses e, claramente, muitos portugueses vão ter algumas dificuldades.
Na habitação não há apoios diretos a quem está a pagar a casa ao banco, o Governo apenas permite que alguns paguem menos IRS mensalmente, mas o imposto devido é acertado no final do ano. Podemos chamar-lhe uma medida cosmética?
É uma medida que é cosmética, mas pode ter algum impacto. As taxas de retenção na fonte, que no fundo é aquilo que se aplica ao nosso salário mensal e que permite que fique o dinheiro disponível no nosso bolso, se a taxa de retenção for superior, ficamos com menos dinheiro, se for inferior, ficamos com mais dinheiro. Depois fazemos o acerto no fim do ano em função da taxa final. Mas, por via das deduções -- e os empréstimos ainda têm deduções -- o valor que pagamos no final do ano é diminuído por via desses empréstimos. Mas isso até hoje não estava refletido nas taxas de retenção.
O que se quer aqui fazer -- e não posso deixar de elogiar apesar de para nós, contabilistas certificados, ser mais complicado e complexo de aplicar, mas pode ter um impacto direto realmente no dinheiro disponível dos portugueses -- o que está previsto na norma é que se os trabalhadores tiverem um empréstimo à habitação e comunicarem à entidade empregadora, aplica-se no processamento do seu salário a taxa imediatamente anterior.
Isto pode significar mais dinheiro disponível e não afetará as contas finais, que já estariam influenciadas por essa mesma dedução.
E o procedimento da medida não é complicado também para o trabalhador? Podia ser facilitado?
As tabelas de retenção na fonte são feitas em função das características dos trabalhadores, se são casados, se têm filhos, por isso é difícil agir mensalmente nessa mesma retenção na fonte, sem ter em conta determinadas particularidades. É complexo, obriga o trabalhador a dar essa informação à entidade patronal, o que é complicado e eu não sei se vão querer comunicar à entidade patronal que têm um empréstimo à habitação para terem menos imposto.
É uma situação do foro pessoal mas é a única forma de termos aqui uma medida direta na retenção na fonte e saber onde é que se vai diferenciar. A alternativa seria uma descida mais generalizada das taxas todas.
Muitos questionam porque não se foi mais longe na dedução dos juros? Não seria mais fácil?
A dedução de juros só não existe para os empréstimos mais recentes, por isso é que o efeito na taxa final acaba por ficar mais garantido com esta redução da retenção. Por causa desse efeito dos juros e da dedução.
Claro que o efeito que se poderia ter era uma medida que, em primeiro lugar, ia buscar os últimos empréstimos e esses já entrariam para abater os tais juros. Outra questão era aumentar a dedução desses mesmos juros, só que isso não ia influenciar no próprio mês do recebimento da remuneração.
Ainda assim, acho que era a única medida possível para influenciar a retenção na fonte no momento, porque todas as outras mudanças só se vão refletir em 2024 e esta é imediata, em janeiro.
Nas rendas está fixado um teto de 2% para os aumentos, os senhorios vão ser compensados via IRS e IRC, e uma das contestações é que a compensação só chegará no ano seguinte. Reclamam ainda que é orçamentada uma verba em 2023 para entregar em 2024. Têm razão?
Os senhorios têm. Aliás, no Orçamento do Estado não vem a medida ainda, diz que vai existir, mas ela não está plasmada no Orçamento do Estado, vamos ver qual será a medida para compensar os senhorios dessa matéria.
2% de aumento é, de facto, pouco para fazer face às condicionantes que os próprios senhorios têm, mas nós já estamos habituados, há muitos anos que os senhorios são sempre condicionados ou penalizados nestas situações. Eu só tenho algum receio que estas matérias venham agravar o problema do arrendamento e o problema da falta de habitações, por exemplo, para estudantes e para arrendamentos normais. Isto não tem sido tido em conta, porque estas compensações que se fazem nunca são suficientes e há que olhar para esta política toda de arrendamentos com outra visão, porque já percebemos que a visão que existiu até agora não teve resultados positivos.
Há cada vez menos casas a serem arrendadas e há cada vez mais senhorios a fugirem do arrendamento e, portanto, acho que é importante olhar para esta matéria de forma estrutural.
Por omissão, o Orçamento deixa em aberto o descongelamento das rendas antigas, anteriores 1990, é a melhor altura para acabar com este período de transição que estava em vigor?
O congelamento hoje já é bastante relativo, as idades e as mortes de muitos arrendatários veio resolver muito desses problemas. Estamos a falar de uma medida já com muitos anos. Mas depois há muitos condicionalismos, face às idades envolvidas.
Alguma vez tinha que existir essa libertação, digamos assim, desses condicionalismos. Mas não creio que tenha um impacto assim tão direto.
Em relação à fatura da eletricidade, o Governo mantém as diferentes taxas de IVA. Devia simplificar esta tributação e aliviar de forma mais direta as despesas das famílias?
Eu acho que sim. Acho que os escalões em que se aplica uma taxa reduzida não é suficientemente abrangente e torna mais complicado toda a sua aplicação, por isso devia ser mais transversal.
Em relação às empresas... O corte transversal do IRC, que chegou a ser anunciado pelo ministro da Economia, tinha sido mais favorável às empresas?
Eu sou uma defensora da descida das taxas de IRC, não acho que representem uma receita tão significativa para a receita do Estado e podem incentivar muito a melhores comportamentos da parte empresarial.
Claro que aqui as políticas e as formas podem ser muitas. O IRC acabou por descer por via do aumento da matéria coletável dos 50.000 €, que passam a ficar abrangidos pelos 17%. Na prática, o IRC desce diretamente.
Poder-se-ia ter ido além.
As empresas estão a ser prejudicadas por uma falta de coordenação entre a economia e as finanças?
Não, de todo. Acho que é normal. Mau era se o ministro da Economia não se preocupasse e focasse nas empresas e o ministro das Finanças não se preocupasse no equilíbrio entre a receita e a despesa.
O incentivo no IRC para o aumento dos salários, tendo em conta que quase metade das empresas não paga imposto e que uma parte já terá decidido subir os salários, qual poderá ser o verdadeiro impacto desta medida?
É uma medida incentivadora. As empresas, independentemente de terem este incentivo, iam ver-se na necessidade de aumentar salários. Esta medida vem ajudar a que, aumentando os salários, as empresas diminuam um pouco o seu IRC. Faz com que exista algum equilíbrio neste ano em que estas transformações têm que existir.
As empresas têm que aumentar salários e sabemos que têm que o fazer para que os portugueses consigam fazer face ao aumento dos preços dos bens, mas as empresas vão ter que aumentar os seus preços por este aumento de salários e pelas outras condicionantes todas.
Estas medidas de majoração e de ajudas à descida do IRC podem mitigar um bocadinho o impacto no aumento dos preços. Se aumento salários numa empresa, vou ter que ir buscar esse dinheiro a algum lado. Se não tenho rentabilidade, vou refletir nos meus serviços e nos meus produtos. Onde é que isso se vai refletir? No bolso dos portugueses.
Há outra medida em destaque para as empresas, a dedução dos prejuízos nos anos futuros. Tem sido criticada, nomeadamente por subsidiar, por um lado, os bancos e as grandes empresas e, por outro, as empresas pouco rentáveis. Concorda com estas críticas?
Vejo esta medida como uma medida muito positiva. Primeiro, a dedução dos prejuízos fiscais não deixa de ser uma questão legítima das empresas, é uma dinâmica que deve ser respeitada. Nós temos assistido ao longo dos últimos anos a variadíssimas variações em número de anos de dedução: já foi quatro, já foi seis, agora é 12. E isto leva a um "complicómetro", a que as empresas tenham que ter um quadro enorme para saber os anos em que podem deduzir.
De uma vez por toda esta simplificação era necessária e inclusivamente vai de encontro aos outros países da União Europeia, a política geralmente utilizada em todos os países é a de não haver limite para as deduções. Existem prejuízos e eu vou poder deduzir. A lógica tem que ser essa.
Estas críticas são injustas?
Eu não concordo. Percebo que seja discutível.
Há uma questão muito relevante, que se tem desvalorizado. Esta permissão da dedução dos prejuízos fiscais sem limite vai permitir, inclusivamente, que os capitais próprios das empresas melhorem.
Porquê? Porque as empresas, podendo recuperar prejuízos fiscais sem limitação, vão ter que os reconhecer nos seus ativos e nos seus capitais próprios, melhorando os resultados, em termos de balanço. Claro que isto só se aplica às grandes empresas, que aplicam impostos diferidos, e era bom que se aplicasse transversalmente também às pequenas e médias empresas, porque iria melhorar muito os balanços das empresas.
A 'Windfall Tax', a taxa para os lucros inesperados, foi anunciada apenas para as energéticas. Concorda com esta taxa e a forma como vai ser aplicada?
Por princípio, não concordo com a tributação de lucros excessivos. Mas, aqui nas energias, alguma coisa tinha que se fazer. Se efetivamente estamos a assistir a um aumento desmesurado do preço da energia, muito com especulação de mercados e devido à fórmula que é feita do ponto de vista da aquisição dos preços, em que muitas delas acabam por ter 95% às vezes de lucro, com base naquilo que conseguiram comprar em termos de mercado da energia, alguma coisa tem que ser feita.
O que falta neste Orçamento?
Faltam mais incentivos. Já houve muitos para os jovens, continuo a dizer que a retenção de talentos é fundamental. Gostava de ver as medidas dos jovens alargadas, que fosse mais transversal e até aos 30 anos e que não fosse condicionada ao fim do ciclo de estudos. As empresas hoje em dia têm cada vez mais dificuldades em contratar jovens, é uma situação que tem que ser olhada de forma mais eficaz.
Também gostaria de ter visto uma redução mais significativa das taxas de IRS. Claramente, os impostos em Portugal, a nível daquilo que é o trabalho dependente e as pensões, estão muito elevados, acho que se poderia ter ido um bocadinho mais além.
Acho que a rentabilidade das empresas e a receita do Estado está bastante equilibrada. É claro que é preciso haver prudência e, portanto, percebo que algumas medidas tenham que ter essa prudência, porque rapidamente se descontrolam e depois o Estado também não consegue ajudar quando é preciso. Ainda assim, nas famílias, acho que se poderia ter ido muito mais além.