Em entrevista à Renascença e ao Público, o médico patologista Jorge Soares, presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, alerta para a "fadiga" que leva tanto os médicos como os políticos a terem dificuldade em fazer as melhores escolhas. Sublinha que em Portugal a "imunização pela doença está a superar a imunização vacinal" e que é preciso "arranjar uma maneira de inverter isto".
Carlos Robalo Cordeiro, diretor do Serviço de Pneumologia do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, disse esta semana que os profissionais de saúde estão em sofrimento ético. O que pode aconselhar a estes profissionais?
Temos a tempestade sobre nós e estamos a recolher aos abrigos, numa situação de fadiga emocional e física extremas. Julgo que está agora a faltar-nos alguma lucidez na cadeia de comando. O que aconselhava aos profissionais de saúde é um apelo à resiliência, pois todos precisamos deles.
O chamado “sofrimento ético” significa que os profissionais estão a não conseguir chegar às solicitações a que deviam atender. É de tal maneira a dispersão pelo número de casos que estão permanentemente a entrar e alguma a incapacidade da organização da rede de escoamento desses casos que isso confere alguma dificuldade em tomar decisões, em decidir o que é que é bem e o que não é bem.
Quando fala em falta de lucidez na cadeia de comando, está a falar da cadeia de comando sanitária, política, em todas?
Em todas. Em situações de grande nebulosidade ninguém é lúcido. Estamos com a tempestade em cima e isso retira alguma capacidade, sobretudo se não há alguma programação antecipada. Temos uma qualidade que é sermos optimistas por natureza e achamos sempre que as coisas nunca vão correr muito mal e como tal temos o defeito muito mau de não programarmos situações de guerra ou de tempestade.
Não nos preparámos, portanto.
Se nos tivéssemos preparado, estávamos neste momento com uma situação bem mais tranquila. Quando desconfinámos, devíamos ter previsto uma segunda vaga e as instituições de saúde deviam estar a ter uma orientação do que fazer em determinadas circunstâncias.
Devíamos ter feito acordos com os privados em tempo oportuno e não é agora em tempo de tempestade. Essa preparação é como se prepara uma guerra.
Temos de preparar o cenário A, o cenário B, o cenário C. Um responsável por um grande hospital na periferia de Lisboa dizia que não estamos a funcionar em rede, estamos a gerir o Continente como se fosse uma mercearia de bairro.
Quando fala em decidir bem, acha que estão a ser feitas escolhas que não são as certas ao estabelecer prioridades nos doentes a tratar?
As escolhas são aquelas que no momento as pessoas conseguem, com a lucidez possível, fazer. Em situações de sobrecarga, cometem-se sempre erros de decisão, isso é natural. Porque é que estão a morrer tantos doentes agora? Porque temos mais doentes, mas também porque antes tínhamos mais tempo, mais espaço, mais diálogo entre os profissionais, mais hierarquia de comando técnico local. Agora, há necessariamente uma deterioração da qualidade do atendimento e do tratamento.
Já comparou a pandemia a uma guerra. Nas guerras, há sempre danos colaterais. Isto devia ser mais bem explicado aos cidadãos?
Tudo deve ser mais bem explicado aos cidadãos. Esta é uma das questões de valor ético fundamental. Dispor de informação clara e transparente e adaptada a cada grupo social assegura a confiabilidade dos cidadãos e é um critério para haver uma adoção fácil de medidas de confinamento e outras. É uma forma de promover a responsabilidade individual. Precisamos de reforçar a intervenção cidadã. Os cidadãos precisam de estar mais conscientes.
No início da pandemia, disse ao Público que “a compreensão e a confiabilidade são factores muito importantes para que as pessoas se comportem de maneira esperada e socialmente correcta”. O que falhou a este nível? É por isso que agora não cumprem o confinamento? Mereceram o puxão de orelhas do Presidente da República?
O que disse no princípio está agora a replicar-se. É como as réplicas dos sismos.
No início, estávamos a ter uma comunicação errada, excessivamente maternalista, longa, entediante, diária. E, de repente, desapareceu. Ao início, morria um doente as pessoas apresentavam as condolências daquele caso com um ar condoído, agora morrem 200 doentes e não temos nada para dizer às pessoas.
O primeiro-ministro já disse que parece que estamos anestesiados pelas mortes. O “estamos” é um plural que ele tem de explicar a quem se aplica.
Temos é de perceber porque estão a morrer tantos doentes e acho que é porque não estamos a dar aos profissionais as condições para eles poderem decidir técnica e cientificamente a forma mais apropriada de atender os doentes.
A falta de informação, factor que não reforça a intervenção cidadã – e numa questão como esta as questões comportamentais são absolutamente críticas. Os políticos não podem puxar as orelhas às pessoas, se também têm uma imensa contradição naquilo que dizem e naquilo que fazem.
Têm dado sinais contraditórios?
Sim. Proximidades excessivas não são um bom sinal para quem depois tem de propor confinamento e levar as pessoas a adoptá-lo.
A campanha eleitoral faz parte desses sinais?
Sim, completamente. Mas nem sei se isto é campanha eleitoral: um candidato que aparece num sítio com três pessoas e com as televisões atrás; um que faz um jantar com 180 sem distância, o que é que isto é? Isto são arremedos de campanhas, são caricaturas. Devíamos ter sido mais assertivos. Campanha eleitoral não faz sentido.
A Ordem dos Enfermeiros disponibilizou uma “declaração de exclusão de responsabilidade” a todos os enfermeiros para acautelar eventuais acções disciplinares, civis ou mesmo criminais dos doentes a seu cargo, nas circunstâncias que se vivem com a pandemia de Covid-19. Concorda com este tipo de soluções?
A Ordem dos Médicos também já o fez. Há da parte de diferentes entidades uma gestão política das suas próprias agendas. O momento não é para isso. Nenhum familiar vai accionar um processo por mau atendimento a um enfermeiro ou a um médico, quando eles estão... Veja, basta olhar para as imagens que nós vemos.
Esta quinta-feira os ministros da Saúde da UE discutem o certificado europeu de vacinas. Isto será mesmo preciso?
Certificado para quê? Para que serve? Se é para uma questão de viajar, lembro que já há países que não admitem pessoas sem a vacinação contra a febre amarela.
Nem me parece que isso seja um problema crítico, a menos que me expliquem, para os ministros se estarem a preocupar. Aí está outro exemplo de alguma falta de lucidez. A fadiga também conduz a falta de lucidez.
Como viu os critérios definidos pelo Governo português para a vacinação?
O Governo entendeu não ouvir o CNECV, como aconteceu com o Governo alemão ou o francês, logo em maio. Aqui chegados, é porque o Governo não precisou de incorporar critérios éticos ou então já os tinha ele próprio. Uma vez iniciado o processo, o importante é confiarmos nele.
Tenho muita coisa de que discordar, mas neste momento temos de confiar [no Governo] e nas autoridades e nas pessoas que estão a tomar conta do processo.
Agora, os critérios não foram explicitados. Mas é o momento de fazermos o discurso de acreditar porque a vacinação é a solução que temos para o problema. A imunização pela doença está a superar a imunização vacinal e temos de arranjar uma maneira de inverter isto. Já nos chegam vozes muito perigosas e uma delas é a Alemanha estar a comprar vacinas fora do contexto e da solidariedade europeia.
Estamos a demorar muito na tomada de decisões? O Governo primeiro quis esperar por uma reunião do Infarmed para decidir o confinamento. Agora, fala-se em fecho de escolas, mas só para a semana é que vão decidir sobre isso.
Tenho acompanhado as reuniões da Infarmed e parecem-me uma reunião de apresentação de resultados e deve ser muito difícil para um político entender o que se está ali a dizer. Não há uma síntese. Parece um congresso. Cada um explica o que aconteceu na sua área de trabalho e depois? O primeiro-ministro deve pedir aos especialistas que apontem caminhos. Depois, pode seguir ou não. Assim estas reuniões são pouco úteis, assim como aquela peregrinação depois dos responsáveis de cada partido. Se vão ali para ouvir, não sei porque é que estão ali depois num desfile! É um cansaço!