Quando a democracia reinventou o 10 de Junho, em 1977, com discursos de Vergílio Ferreira, de Jorge de Sena e do presidente da República, Ramalho Eanes, quis-se relançar uma tradição, enquadrando-a num outro futuro. A velha festa republicana, que vinha do tricentenário camoniano de 1880, eclipsara-se no decurso do século XX, antes de o Estado Novo se apropriar dela como o “Dia da Raça” (portuguesa), ou seja, o dia de comemorar o Portugal imperial do Minho a Timor, e de encher uma cinzenta Praça do Comércio com o desfile dos soldados que Américo Tomás medalhava consoante os valorosos feitos nas pouco valorosas guerras do ultramar. Em 1977, a “raça” desapareceu e o feriado passou a ser o dia de Portugal, de Camões e - expressão nova - das comunidades portuguesas. O império já se finara, mas o pequeno país europeu não voltou as costas à noção e à realidade históricas da diáspora lusa, espraiada pelas quatro partidas do mundo, que fizera a identidade de Portugal desde os primórdios do século XV. Camões, o épico autor d’Os Lusíadas, ainda era - antes da maré pessoana dos anos 1980 - referência maior e central das letras portuguesas. E Portugal, a sua pátria, a pátria dos que, três anos depois da alvorada de Abril, o celebraram, celebrando o novo país democrático, era motivo de orgulho, de esperança, de devoção cívica. O passado que então se cancelava era o da ditadura de Salazar e de Marcelo Caetano, afogada nos 13 anos da insolúvel guerra de África – mas renunciar ao Estado Novo não significava apagar as raízes, as pertenças, os espaços e os símbolos de outros passados do país.
Mais de 40 anos desde esse primeiro 10 de Junho solenizado pela democracia, e quase 50 desde o golpe de Abril, o transcurso do tempo tende a rotinizar atos de celebração pública como o feriado de amanhã. O que significa ele em 2021? Podem o regime e os portugueses lembrar e homenagear Portugal, Camões e as comunidades portuguesas? Só se for mesmo amanhã, porque amanhã é 10 de Junho; caso contrário, não faltariam os críticos de tudo o que o dia significa. Na era do globalismo, do transnacionalismo, do cosmopolitismo e do multiculturalismo, um patriota ou é saudosista, ou fascista, ou populista, ou tudo isto junto. A cartilha cultural em vigor manda desdenhar das pátrias, sobretudo se, como a portuguesa, foi (e é) europeia, Ocidental, de maioria branca e católica e com um passado de expansão atlântica. Por isso mesmo, as “comunidades portuguesas” são outra realidade escorregadia, porque elas são as herdeiras (mesmo não o querendo) desses “horrendos” descobrimentos de que hoje todo o bem-pensante deve fazer ato de contrição. Sobra Camões. Mas Camões ainda é estudado nas nossas escolas, ou já o proscreveram, como opressor de africanos e asiáticos e adorador do “sanguinário” Gama? Quem é que hoje repara, ou recorda, que Os Lusíadas são uma das obras-primas literárias da humanidade e uma extraordinária narrativa poética de um país e de uma história inesquecíveis?
Num mundo de narrativas fluídas, de relativismos culturais, em que todos temos de ser cinzentos, insossos, neutrais, inclusivos, contritos, tolerantes, pós-coloniais, pós-nacionais, pós-Ocidentais e etc., e em que os radicais do multiculturalismo e das esquerdas gritam “fascista!” quando leem a palavra pátria, o 10 de Junho faz todo o sentido – faz cada vez mais sentido. Portugal é espaço, tempo, identidade e história, todos feitos de grandezas e de misérias, complexos e contraditórios, mas sempre ricos de ensinamentos para a democracia que os herdou. Nenhum presente amnésico, ditado por modas mais ou menos censórias, deve cancelar um tal legado inspirador.