As
jornalistas Ana Catarina André, católica, e Sara Capelo, agnóstica, reuniram histórias de
quem vai a Fátima a pé em “Peregrinos”, o novo livro da colecção
"Retratos" da Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS).
“Peregrinos” será apresentado esta sexta-feira, 7 de Abril, a partir das 16h45, no Auditório da Renascença, em Lisboa, com a presença das autoras, de Pedro Diogo, um dos peregrinos retratados, e do padre José Tolentino Mendonça.
A conversa, moderada pelo jornalista José Pedro Frazão, terá directo vídeo no site da Renascença e será também parcialmente transmitida na antena da rádio.
A apresentação tem entrada livre, mas requer inscrição prévia no site da FFMS. As primeiras 50 inscrições recebem um exemplar de “Peregrinos”.
É preciso peregrinar para entender estas pessoas?
Sara Capelo (SC) - Creio que não, se pensarmos na nossa própria experiência. A Ana Catarina já tinha feito várias peregrinações e eu nunca fiz nenhuma. Não me parece que fosse necessário fazê-la para entender estas pessoas e o que motivou cada uma delas a peregrinar e fazer este caminho até Fátima.
Ana Catarina André (ACA) - O facto de ter peregrinado antes de escrevermos este livro ajudou-me a perceber algumas coisas. Talvez por ser também católica e por ter feito isto noutro âmbito. De certa maneira, comparei algumas coisas que as pessoas me diziam com aquilo que tinha vivido. Por isso, de certa forma, acho que ajudou.
SC - É uma perspectiva diferente da minha. Não tinha nenhuma identificação nem sequer um conhecimento sobre o que podia levar estas pessoas a Fátima. Mas, à medida que fomos falando com elas, fui ganhando este conhecimento, fui-me identificando com elas, mesmo nunca tendo caminhado como elas fazem todos os anos.
Não sendo crente, de onde veio o interesse por este tema?
SC - Estávamos a conversar sobre possibilidades de trabalhos em conjunto. Percebemos que este era o ano do centenário das aparições e que poderia haver aqui um tema muito forte. Conversando, percebemos que falar com peregrinos sobre peregrinos e sobre a experiência de ir a Fátima podia ser interessante e importante.
ACA - O ponto-chave foi a curiosidade. Olhar para estas pessoas e perceber o que as motiva, o que as leva a percorrer centenas de quilómetros para um sítio. Esta interrogação, este "porquê" foi o que nos levou a conhecer estas pessoas e, nalguns casos, a acompanhá-las e a contar estas histórias.
Há os que peregrinam pelo próprio caminho, mas, sobretudo, pelo próprio destino. Alguns deles até acumulam peregrinações a Santiago e a Fátima. Regra geral, peregrinam pelos destino, pela relação com Fátima?
ACA - No caso de Fátima, sim. A imagem de Nossa Senhora assume um papel muito importante para toda a gente e a meta é fundamental. Todas as pessoas são unânimes quando contam como é chegar a Fátima e o que ali encontram. Não só o encontro com Deus, mas também um encontro consigo mesmas, muitas vezes é uma reconciliação com feridas e dores que levam para o caminho e que, de certa forma, ficam ali resolvidas.
SC - Há pessoas que nos descrevem que, ao longo do caminho, é difícil. Têm muitas bolhas, dificuldades físicas, mas, quando estão na aproximação a Fátima - descrevem sobretudo uma subida, quase a chegar a Fátima -, é como se todas estas dores passassem e estivessem prontas e limpas, como se os problemas tivessem passado.
ACA - E há muito a imagem de um colo. Como se, de repente, chegassem ao santuário e houvesse ali um colo. 'Cheguei aqui e estou com Alguém que pode de certa forma ajudar-me e dar-me um consolo'. Noutros casos, as pessoas vão, simplesmente, agradecer a vida que têm.
Em quase todos os casos, há um encontro com outros peregrinos a meio da caminho, uma história que se entrelaça nas historias de cada um. Pessoas de outras nacionalidades, cujo nome nem conhecem, outros que ficaram amigos para a vida. A importância do caminho faz-se também dos encontros que vão descrevendo?
SC - Há uma palavra que muitos repetem: solidariedade. Partilham a água com alguém que precisa, trocam sapatos estragados. A solidariedade e a partilha fazem parte do caminho de todos os peregrinos com quem falámos.
ACA - Um deles, que caminha descalço, em dor e sofrimento, contou-me que estava desesperado a meio do caminho quando encontrou um desconhecido que lhe deu uma medalha e um abraço. Visivelmente emocionado, contou-me que sem esse momento de conforto não teria chegado a Fátima. Eles não se conheciam, tiveram esse diálogo a meio do caminho e, quando chegaram ao santuário, reencontraram-se. Deram um abraço enorme, esses dois desconhecidos que se ajudaram no caminho.
Em certos testemunhos do livro, encontramos uma distinção entre caminhar e peregrinar...
ACA - Para alguns, peregrinar tem a ver com a dimensão religiosa do fenómeno, com esta busca de Deus, em muitos casos não muito ligada a uma prática religiosa. Para outros casos, é mais um caminho, um acto de redenção ou purificação. A questão de Deus não é uma questão que se põe muito ali pelo meio. Lembro-me de Jaime - que não nasceu cego, mas cegou aos 50 e poucos anos - contar que o caminho foi uma forma que encontrou para se reconciliar com a vida. Ele nem sequer usa muito a palavra Deus para designar uma entidade transcendente. Aí, é mais um caminho.
Há um homem que faz um caminho de São João da Madeira a Fátima, descalço, em ombros nos últimos quilómetros. Ele coloca aos leitores a questão que muitos católicos também fazem: aquele sofrimento faz algum sentido? A que respostas chegaram?
SC - Até os próprios padres têm, por vezes, dificuldade em perceber esse sofrimento e, por isso, os interpelam. Há uma história no livro de uma senhora que é interpelada por um padre que lhe diz: "A senhora não tem necessidade disto. Deus não precisa disto.” Ela responde: "Deus não precisa, o senhor padre também não, mas não sabe o bem que me faz estar aqui a fazer este sacrifício." No caso do homem que caminha descalço até Fátima e que, ao fim de 300 quilómetros, chega com os pés em sangue - e já faz isto há mais de uma década -, é a forma de ele lidar com um sofrimento maior, da doença do filho. Ele não conseguia encontrar outra forma de lidar com este sofrimento do filho a não ser o de caminhar descalço por 300 quilómetros.
ACA - Ele próprio admite que não consegue explicar bem o sofrimento. Mas diz que o que encontra em Fátima é muito superior a esse sofrimento. Sem Fátima não teria conseguido lidar com a dor dos últimos anos e com facto de ter visto o filho passar por momentos muito graves e intensos de doença. Há aqui uma "inexplicabilidade" do sofrimento que, para algumas pessoas, as aproxima de Deus. Como alguns padres nos disseram, é também uma questão pessoal. "Quem sou eu para dizer a uma pessoa que não pode fazer isto", diziam alguns padres.
SC - Neste caso, há a consciência de que não há necessidade de caminhar descalço, deste sofrimento todo. Ainda assim, ele sente esta necessidade deste encontro com Deus, através desta forma de sacrifício.
ACA - É uma necessidade que ele encontrou para lidar com aquela situação.
Ao cabo deste livro, como é que entendem os cépticos em relação a Fátima?
SC - Este livro não pretende fazer uma reflexão sobre o fenómeno de Fátima nem sobre as aparições. É mais o relato de pessoas que vão a Fátima. Encontramos alguns, diria, cépticos. Temos a história de uma pessoa, um católico desiludido, que, ainda assim, vai a Fátima a pé, desde a Covilhã.
Os relatos parecem distinguir-se do facto de acreditarem ou não em aparições. Têm uma ligação a Fátima, independentemente da “literacia” sobre as aparições.
SC - As aparições quase não fazem parte do livro. O que interessa é relatar quem são estas pessoas e o que as motiva, muito mais do que saber se acreditam ou não nas aparições, se acreditam ou não no que aconteceu ali, há 100 anos.
ACA - É curioso que alguns deles nos tenham dito “não sei se o que aconteceu em Fátima é verdade ou não, mas Fátima tem um lugar na minha vida”. Isso é unânime entre as pessoas. Acreditem ou não, tenham mais ou menos conhecimento sobre a mensagem de Fátima e, por exemplo, do que a irmã Lúcia escreveu nas memória, isso é unânime nas pessoas que falam neste livro.