“Dizer-se ‘morre-se mal’ em Portugal e, portanto, vamos dar a eutanásia ou o suicídio assistido é um insulto à população portuguesa. O que é que os deputados estão a fazer?”. A questão é levantada pela médica portuguesa, Andreia Cunha, a exercer na Bélgica, onde a eutanásia é permitida por lei.
Acompanha com apreensão a discussão do tema em Portugal, país onde cuidados paliativos mas não são acessíveis à maior parte das pessoas. “É o mesmo que começar a construir a casa pelo telhado”, sublinha.
Nesta entrevista à Renascença, relata a sua experiência com um doente que pediu para morrer mas depois desistiu. Tudo o que precisava era de um ajuste na medicação para aliviar as dores que sentia.
Há situações na Bélgica em que jovens médicos em estágio de especialização são confrontados com situações de eutanásia? Quais as questões que isto suscita em termos deontológicos, clínicos, pessoais a jovens que ainda estão a aprender uma especialização?
Só posso falar pela minha experiência pessoal. O que suscita é não saber quando um chefe diz que tal paciente está em fim de vida e que portanto devemos dar-lhe tal ou tal medicamento… Cheguei a perguntar-me várias vezes se a dose do medicamento era justa e se os medicamentos eram os adequados para o sintoma que essa pessoa tinha.
Depois, a própria avaliação dos cuidados de fim de vida que são diversos - consoante a patologia da pessoa há uma resposta terapêutica diferente. Uma coisa que eu vi na Bélgica, e de que só me apercebi mais tarde depois de fazer cuidados paliativos na Suíça, é que praticamente só se trata de uma maneira os sintomas de fim de vida, só existe um tratamento que consiste em dar morfina e depois os calmantes. Foi praticamente só isso que eu vi na prática clínica corrente nos hospitais. A avaliação própria dos cuidados paliativos – saber se o paciente tem dores, dificuldade em respirar, náuseas – tudo isso implica um conhecimento e um tratamento bem específico. Perguntei-me várias vezes se o tratamento e ou a dose de medicamentos que estava a dar ao meu paciente eram os acertados.
Depois há a questão de não se saber identificar esses sintomas ou tratá-los correctamente, isso é bastante grave. Um médico em formação tem que aprender a fazer isso porque mais tarde vai enfrentar essas situações. Na Bélgica, não obtive essa formação de forma completa. Foi na Suíça que tive essa oportunidade.
Já depois, como médica formada, foi confrontada com pedidos de eutanásia. Houve sobretudo um caso concreto. Pode contar o que aconteceu?
Nas várias situações que vivi esse foi de facto o único caso de pedido de eutanásia no quadro legal. Um senhor já com alguma idade com uma patologia oncológica fez um pedido reiterado, constante e plenamente consciente de eutanásia. Não estava em fim de vida eminente e foi necessário um especialista em psiquiatria para atestar o discernimento. No dia em que ia ser tomada a decisão da data da eutanásia, ele encontrou-se desorientado, confuso, e o processo de eutanásia teve que parar porque ele não tinha capacidade para decidir a data da sua eutanásia.
Eu chego ao serviço nesse momento, torno-me médica tutelar daquele paciente. Passado uns dias, ele deixa de estar desorientado, volta a estar plenamente consciente e eu tenho que retomar a questão da eutanásia porque o processo já estava em curso. Tinha que lhe fazer a pergunta de como se sentia face ao pedido que tinha feito e se queria prosseguir o processo. A resposta foi espantosa, não estava à espera: “Doutora, eu não quero morrer mas quando tenho estas dores, só quero é que isto pare, termine. Aí sim, quero morrer”. Nesse momento, apercebi-me que o tratamento de analgésicos que ele estava a receber não era o adequado. Foi possível depois adaptar o tratamento ao paciente e ele pôde sair do hospital com cuidados paliativos em casa. Foi o caso mais flagrante de pedido de eutanásia que enfrentei com o processo a decorrer que acabou por retirar o pedido simplesmente porque o tratamento foi ajustado aos sintomas.
Entre a classe médica há conhecimento de abusos ou de desvios em relação à lei?
Há conhecimento sobretudo desde que em 2014 houve uma carta aberta do antigo presidente da Sociedade Belga de Cuidados Intensivos a dizer claramente que havia mais de mil eutanásias não pedidas - ou seja, ilegais, fora do quadro da lei -, que eram praticadas na Bélgica. Saiu num jornal generalista, saiu em dois jornais médicos. Não tenho problema em dizê-lo, tenho o texto comigo. É sabido, é conhecido. As autoridades não fazem nada. É complicado.
São situações que não se enquadram na lei, eutanásias praticadas fora do quadro legal?
Quando falamos de eutanásias ilegais são as que estão fora do quadro legal. O quadro legal belga prevê que um adulto, e agora um menor capaz de discernimento, possa fazer um pedido de eutanásia quando tem uma patologia incurável, e está num sofrimento constante e insuportável que não se pode tratar com a medicina. A pessoa tem que estar consciente e reiterar o pedido por diversas vezes. O que o antigo presidente da Sociedade Belga dos Cuidados Intensivos diz claramente é que muitas vezes o paciente não está consciente, não pede a eutanásia, e é abreviada a vida daquela pessoa porque a família considera que não vai haver melhoria da situação e portanto pode-se acelerar, ou o próprio médico toma essa iniciativa.
Como acompanha o debate em Portugal sobre a eutanásia?
Com bastante apreensão. Na Bélgica mas sobretudo na Suíça existem cuidados paliativos. Em Portugal, existem cuidados paliativos mas não são acessíveis à maior parte das pessoas e não sei se são eficazes.
Para mim, passar do quase nada à eutanásia/suicídio assistido sem passar pelos cuidados paliativos - que foram definidos pela Organização Mundial de Saúde, em 2002, como a maneira única de acompanhar um paciente em fim de vida e que são cuidados para o paciente e para os familiares, que não devem acelerar nem retardar a morte, que permitem a morte como processo natural -, é começar a casa pelo telhado. Não tem lógica nenhuma. Os deputados devem começar por discutir como desenvolver um sistema de cuidados paliativos em todo o país, acessível a todos os portugueses.
Dizer-se “morre-se mal” em Portugal e, portanto, vamos dar a eutanásia ou o suicídio assistido é um insulto à população portuguesa. O que é que os deputados estão a fazer? Estão a decidir a minha vida ou a minha morte?