Uma imagem vale mais do que mil palavras. Diz o aforismo e há momentos em que percebemos o quanto ele é válido.
A encenação funcionou em pleno: coloca-se um orador sanguíneo a fazer um retrato apocalíptico da situação do país e do mundo, as massas vão ao rubro, aplaudem, gritam, confirmam os seus medos e fantasmas de que o país está perdido.
Faz-se uma pequena pausa e irrompe na sala o célebre “We are the champions” dos Queen, ensurdecedor. Ao fundo do palco, por entre uma luz que ofusca, surge uma silhueta. Uma silhueta inconfundível que avança lentamente em direcção à audiência. O homem providencial aí está! O homem que vem da luz para salvar o país mergulhado nas trevas!
Se fosse em Portugal diríamos que é a moderna encenação do mito sebastianista. Mas Donald Trump não é português, nem emergiu do nevoeiro. No entanto, a avaliar pela generalidade dos discursos da primeira noite da convenção republicana, em Cleveland, o mito sebastianista assenta-lhe em pleno. Ele projecta a imagem do líder messiânico que vem salvar o país, porque o país está perdido, no dizer dos oradores que ocuparam o “prime time” televisivo.
Curiosamente, Trump subiu ao palco para apresentar a única oradora que fez um discurso pela positiva – a sua mulher, Melania Trump, a vedeta da noite. Um gesto que encerrou em si duas surpresas. A primeira é que quebrou a tradição de só aparecer na convenção no último dia para ser consagrado candidato e fazer o discurso de aceitação. A segunda – mais surpreendente ainda – é que pisou o palco e não fez nenhum discurso.
Conhecida que é a sua tendência para falar sem limite de tempo e monopolizar as atenções, era grande a curiosidade para ver quanto tempo Trump tomaria a palavra antes de a ceder à mulher. Para surpresa geral, demorou talvez um minuto a apresentar e a passar a palavra a Melania. E no fim da intervenção dela nem sequer se aproximou do microfone.
Ao contrário do que sucedeu no sábado passado, na apresentação em Nova Iorque de Mike Pence como candidato a vice-presidente, em que Trump falou 28 minutos antes de ceder a palavra ao protagonista do dia, desta vez o multimilionário soube conter-se.
Discurso plagiado?
E a convenção parece ter ganho com isso, já que Melania, disfarçando o nervosismo, fez a intervenção mais serena da noite, falou da sua génese familiar na Eslovénia, donde é natural, dos valores que lhe foram incutidos pelos pais, da sua paixão pela América e das qualidades do marido, naturalmente.
Um homem “determinado”, que “não desiste”, “não deixa cair ninguém”, que “é duro, mas também gentil, leal, dedicado à família”. Um líder que “resolve as coisas” e que procura a “inclusão e não a divisão”, que “representará todos os americanos e não só alguns”.
Esta tónica na unidade esteve presente mais do que uma vez. Logo no início, elogiou os candidatos rivais que disputaram as primárias, “todos merecem respeito”. E no final disse que a campanha de Trump se tinha transformado num movimento e apelou explicitamente à unidade em torno dele. Antecipou ainda o que será a sua ocupação principal caso se torne primeira dama – as crianças e as mulheres, com uma forte aposta na educação.
Em pleno “prime time” televisivo, sobretudo à hora a que as televisões abertas estão também a transmitir a convenção, Melania terá atingido os objectivos partidários: chegar a um público que presta pouca atenção à política, falando-lhe mais de qualidades humanas e de valores positivos do que de política no sentido estrito.
Segundo os organizadores da convenção, a intervenção terá sido preparada pelos especialistas com a oradora durante cinco a seis semanas. Os ensaios e o teleponto fizeram o resto.
Mas nem por isso primou pela originalidade. Pouco depois de acabar, já alguém tinha detectado similitudes enormes com o discurso que Michèle Obama fez na convenção de 2008 quando o marido foi nomeado candidato oficial do Partido Democrático à Casa Branca. Há de facto parágrafos completos que correspondem quase palavra a palavra ao que disse a actual primeira dama há oito anos. Uma “coincidência” que dará ainda certamente muito que falar nos próximos dias…
Giuliani apocalíptico
Mas se Melania foi serena, os oradores anteriores foram o oposto. O antigo “mayor” de Nova Iorque, Rudolph Giuliani, fez um discurso num tom inflamado, quase apocalíptico, sobre os alegados perigos que ameaçam a América. Garantiu que “a vasta maioria dos americanos não se sente segura”, “teme por si, pelos filhos, pelos netos, pelos polícias que são mortos”.
Reclamando os louros de ter transformado Nova Iorque de “capital do crime” na “grande cidade mais segura” do país, partiu para fortes ataques à política externa da administração Obama, citando o acordo nuclear com o Irão e os acontecimentos de Benghazi, na Líbia, como exemplos do favorecimento ao terrorismo. No caso de Benghazi, acusou Hillary Clinton de ter mentido ao Congresso e de ser responsável pelo caos na Líbia. E no caso do Irão acusou Obama de estar a dar dinheiro a Teerão para “financiar o terrorismo”.
Neste contexto, disse que era preciso chamar as coisas pelos nomes e que a América está ameaçada pelo “terrorismo islâmico extremista”, ligando essa ameaça aos refugiados sírios que chegaram à Europa e “querem vir para a América para nos matar”.
Aliás, a associação entre terrorismo/insegurança e imigração/refugiados foi uma constante desta primeira noite da convenção, cujo tema era justamente “segurança, terrorismo, imigração”. As intervenções sobre segurança e terrorismo foram intercaladas por outras em que cidadãos anónimos se queixavam de terem sido vítimas de imigrantes ilegais. Uma associação perversa, típica dos discursos xenófobos.
Quem também não hesitou em declarar o “colapso do sistema de segurança” americano foi o “sheriff” David Clarke, de Milwaukee County, no estado do Wisconsin. Segundo ele, as recentes mortes de vários agentes da polícia provam esse colapso e o movimento Black Lives Matter (as vidas dos negros contam), que surgiu na sequência do assassinato de vários negros por violência policial, transcende a lei e significa a ”anarquia”. O “sheriff”, que é negro, começou a intervenção a proclamar que “Blue Lives Matter”, numa alusão aos polícias que foram assassinados nas duas últimas semanas em Dallas e em Baton Rouge. O pavilhão explodiu em concordância.
Acusação a Hillary
Um momento emotivo foi o da intervenção de Patricia Smith, mãe de um dos operacionais que morreram em Benghazi, em Setembro de 2012, quando milícias líbias atacaram o consulado americano na cidade. Profundamente ressentida com a forma como a tragédia foi gerida em Washington, Patricia responsabilizou “pessoalmente” Hillary Clinton pelo sucedido.
Pouco antes tinha subido ao palco Anthony Sabato, um homem multifacetado. Além de actor de novelas (soap operas), foi a estrela de um concurso chamado “My Anthony”, em que as concorrentes competiam entre si para conseguirem ser suas namoradas. O poder de atracção de Anthony talvez venha dos tempos em que foi modelo da roupa interior feita por Calvin Klein. Ou talvez dos tempos em que era um ávido condutor de carros de corrida.
E o que disse Anthony à convenção? Contou a sua história de vida, disse que a mãe era originária da Checoslováquia, tinha conhecido o pai em Itália, casaram e vieram para a América. “Vi o socialismo e não o quero para os meus filhos”, garantiu.
Os delegados ficaram sem perceber onde terá Anthony visto o socialismo. A mãe deixou a Checoslováquia e só conheceu o pai em Itália, depois vieram para a América, onde Anthony se fez homem, actor, vedeta de concursos, modelo de roupa interior e condutor de carros de corrida. Os delegados ficaram sem perceber, mas nem por isso lhe regatearam aplausos.