Foi um Donald Trump mais civilizado do que habitualmente aquele que na quinta-feira à noite encerrou a convenção republicana em Cleveland. Não foi mais moderado nem mudou os tópicos do discurso, mas percebeu-se que havia nele uma preocupação em parecer mais presidenciável, certamente numa tentativa de conquistar sectores eleitorais mais distantes.
Registemos algumas diferenças. Antes de mais, este foi seguramente o discurso mais longo que fez na campanha e talvez na sua vida. Trump falou durante uma hora e quinze minutos e, mais importante, manteve-se fiel ao teleponto e ao guião que lá estava escrito. Nem sempre, mas quase sempre. Houve momentos em que se percebeu que regressava ao improviso porque repetia temas, encadeava-os de forma caótica, como é seu timbre. Foi, aliás, o discurso mais longo da história das convenções republicanas.
Depois, evitou insultar os adversários. Nunca chamou “desonesta” a Hillary Clinton, como é habitual. Evitou pronunciar o seu nome, optando quase sempre pela expressão “a minha opositora”. E num daqueles momentos em que a multidão recomeçou a gritar “Prendam-na! Prendam-na!”, como tinha feito nas noites anteriores, fez um gesto de ligeiro desagrado com tais gritos. E, quando eles acabaram, sugeriu antes que se gritasse “derrotem-na”.
Foi, porém, o próprio Trump que motivou tal reacção da plateia quando se aproximou mais do seu estilo abrasivo ao referir-se à questão dos emails de Hillary. Classificou as palavras do director do FBI, que acusou Clinton de “negligência grave”, como brandas, porque ela cometeu “crimes terríveis”, “crimes terríveis”, repetiu.
Uma outra diferença foi a referência ao movimento gay e à comunidade LGBT. A propósito do massacre na discoteca de Orlando, em que morreram 49 pessoas, Trump disse que protegeria também aquela comunidade e ouviu aplausos da assistência. Aí, confessou que tinha sido bonito ouvir aplaudir a comunidade LGBT numa convenção republicana.
O caso não era para menos porque, de facto, era a primeira vez que tal sucedia. Como tinha sido a primeira vez que um homossexual tinha usado da palavra numa convenção do GOP, poucas horas antes. Este é mais um dos aspectos em que Trump não alinha pela agenda conservadora republicana e vai à procura de votos junto de sectores que, por razões óbvias, estão muito afastados do partido.
E as diferenças ficam por aqui. Mas elas correspondem aparentemente a uma preocupação da campanha em atenuar a agressividade transmitida para todo o país nestes quatro dias de convenção. Trump surgiu assim como mais disciplinado, capaz de falar mais de uma hora obedecendo (quase sempre) ao guião pré-definido, atenuando o estilo extravagante e projectando uma imagem mais presidenciável.
Quanto à substância do discurso, não houve diferenças. Os mesmos temas de sempre, mas agora com promessas de soluções “rápidas” para os problemas que o país enfrenta. E que na sua opinião são muitos, mas não o assustam porque “ninguém conhece o sistema tão bem como eu, por isso posso repará-lo sozinho”.
O que acabará depressa
Se for eleito, Trump acabará “depressa” com o terrorismo, com a imigração ilegal, com o contrabando, com o tráfico de droga, com a violência contra a polícia, com o crime nas cidades, com os acordos comerciais que prejudicam o país, com a manipulação da moeda pela China, com a batota nas regras da Organização Mundial de Comércio, com os impostos altos, com o défice comercial, com a dívida do país, com a regulação excessiva, com as restrições na produção energética, com o Obamacare, com as dívidas dos estudantes que entram no superior, com a pobreza entre as crianças negras, com…
E como? Isso é um segredo que ficou por desvendar. Embora nalguns casos haja umas ideias. Por exemplo, o muro na fronteira com o México é uma delas. A suspensão da imigração e a autorização apenas daqueles que “apoiem os nossos valores e amem o nosso povo” é outra. Contratar a melhor intelligence para “acabar depressa com os bárbaros do ISIS” parece ser outra ideia.
Mas Trump está sobretudo preocupado em “restaurar a paz” na América, porque ele é o “candidato da lei e da ordem”. Traçou um quadro devastador do crime nas cidades e, como já é habitual, associou a questão da segurança à imigração. Citou três casos de pessoas assassinadas por imigrantes ilegais, mas não citou nenhum outro caso de crime entre os milhares que ocorrem todos os anos praticados por americanos.
Colocou um acento tónico na questão da segurança, cavalgando a onda de choque no país com as recentes mortes de agentes policiais. “Sou o candidato da lei e da ordem”, repetiu vezes sem conta, considerando que “atacar um polícia é atacar todos os americanos”, mas não fez uma única referência às mortes de negros vitimados por violência policial.
Refira-se que as estatísticas oficiais comprovam que a criminalidade tem baixado nos EUA, mas a campanha de Trump faz crer que nunca houve tanta insegurança no país.
A associação sistemática entre segurança, criminalidade, terrorismo e imigração passou a ser um mantra dos seus discursos. E a agenda da convenção obedeceu plenamente a essa lógica, típica da xenofobia.
No domínio da economia, garantiu que baixaria os impostos e simplificaria o sistema, denunciaria o NAFTA (acordo de comércio livre com o Canadá e o México), não assinaria o acordo com os países do Pacífico (TPP), traria os empregos de regresso à América, abriria uma guerra comercial com a China, e, qual keynesiano, lançaria um programa de reconstrução das infraestruturas do país que “estão ao nível do terceiro mundo”. Além de regressar à exploração do carvão e produção de aço.
Demagogias à parte, Trump encerrou a convenção em clima de apoteose. E com uma ideia de belo efeito. Disse que um dos slogans de Hillary Clinton era “Estou com ela”, mas que o dele é diferente: “Estou convosco”, lutarei por vós e ganharei por vós.
Depois de três dias atribulados – dois deles por conta do plágio do discurso da mulher e da forma desastrada como foi gerido, e o outro por conta de Ted Cruz – esta última noite foi a única pacífica em Cleveland. Que, contudo, não bastou para dar a imagem de unidade do Partido Republicano que os responsáveis da campanha ambicionavam. As divisões continuam a ser profundas, o que ficou demonstrado por algumas presenças no pavilhão, mas sobretudo por muitas ausências.
Chantagem aos aliados
O discurso de encerramento da convenção não foi, contudo, a declaração mais importante do dia de Donald Trump. Na quinta-feira, o “New York Times” publicou uma entrevista com o candidato em que ele pôs condições aos países aliados da NATO para garantir a sua segurança.
Ameaçou não proteger aqueles países que não paguem aquilo que considera a parte justa da sua defesa. E disse-o explicitamente em resposta a uma pergunta sobre a hipótese de a Rússia invadir um dos países bálticos, explicando que iria em seu auxílio depois de verificar se o país em causa tinha cumprido “as suas obrigações para connosco”.
Nunca até hoje algum candidato presidencial americano ou algum responsável de um país da NATO tinha posto em xeque a aplicação do artigo 5º da Aliança, ou tinha condicionado a sua aplicação a qualquer factor, muito menos de carácter económico.
O artigo 5º estipula que um ataque a um membro da Aliança é um ataque a todos e a única vez que foi invocado até hoje foi no 11 de Setembro, quando os EUA foram atacados pela Al-Qaeda. É considerado o artigo mais importante do tratado e e é ele que justifica a existência do pacto do Atlântico.
Não é a primeira vez que Trump afirma que vai exigir uma distribuição mais equitativa das despesas da NATO. O entendimento entre os aliados é que cada país deverá disponibilizar para defesa 2% do seu PIB, mas há vários países que não cumprem este acordo. Todavia, nunca tinha sido tão explícito na ideia de “chantagear” os aliados numa situação de emergência e de grande gravidade. Sobretudo se tivermos em conta que os países bálticos são justamente os que se sentem mais ameaçados pela nova ambição expansionista russa.