Médicos passam "mais de metade do tempo" ao computador. Atrasos a notificar doentes devem-se a "falhas informáticas dos hospitais"
22-04-2020 - 00:02
 • Joana Gonçalves

Médicos queixam-se da burocracia que os impede de falar mais com os doentes e os obriga a repetir informação em "softwares" redundantes. O director do serviço de doenças infecciosas do hospital Curry Cabral admite mesmo atrasos nas notificações de doentes Covid-19, porque "a prioridade é o doente". “É o espelho das falhas informáticas nos hospitais”, explica um infecciologista do Hospital de Santo António, onde são seguidos mais de 600 doentes em casa, “sem plataformas para tal”.

Quantos programas informáticos são necessários para fazer o registo clínico de um doente? Em alguns hospitais, a resposta é quase uma dezena.

Entre pedidos e leitura de resultados de exames, prescrições, monitorização e registo de doenças de notificação obrigatória ou declarações de óbitos, o médico Nuno Tavares descreve o pesadelo burocrático que é o sistema de registo clínico.

O tempo que se perde no processo é “demasiado”, diz o médico do Hospital de São João. “Estamos a falar de uma carga horária diária que é extremamente dissipativa. Provavelmente, mais de metade do tempo que passamos é seguramente ao computador a inserir esse mesmo registo”, adianta.

A informação sobre um doente com suspeita de Covid-19 que entre num hospital pode passar por tantos programas informáticos quantos os passos que tiverem de ser dados no processo: registo clínico na urgência (Alert), resultados de testes (Clinidata), outros exames (jOne), registo de internamento (SClinico), prescrições de medicamentos (Glintt), monitorização depois da alta (Trace-Covid e SClinico), prescrições de medicamentos em ambulatório (PEM), registo epidemiológico (SINAVE - Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica) e óbito (SICO - Sistema de Informação dos Certificados de Óbito).

O problema não é novo e apesar de os programas informáticos variarem de hospital para hospital e até entre especialidades, Miguel Abreu, infecciologista no Hospital de Santo António, no Porto, defende que “a existência de demasiados sistemas informáticos concomitantes parece ser um problema transversal”.

“No Santo António temos vários programas em simultâneo, feitos por empresas diferentes, para a mesma coisa. Este é um problema pré-Covid”, esclarece, admitindo, contudo, que o surto do novo coronavírus veio agravar o cenário de dificuldades informáticas.

Desde a confirmação dos primeiros casos de Covid-19 em Portugal, a 2 de março, a Direção-Geral da Saúde apresenta diariamente a atualização dos números desta pandemia a nível nacional.

A informação é recolhida pelos médicos no terreno, que procedem à notificação de todos os casos nas plataformas de registo clínico, incluindo no SINAVE (Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica) e, desde o nício da fase de mitigação, a 26 de março, também no “Trace-COVID”.

“Tudo aquilo que já fiz no processo clínico estou a repetir numa plataforma [SINAVE], que tenho de enviar porque é obrigatório mas também sujeito a ter uma margem de erro maior”, defende Miguel Abreu.

A plataforma “Trace-COVID” é uma ferramenta de gestão de doentes em autocuidados e ambulatório implementada para dar suporte aos profissionais de saúde dos cuidados de saúde primários e às equipas de saúde pública e autoridades de saúde. "Esta plataforma tem as suas vantagens e os seus benefícios no seguimento dos doentes, mas é mais uma plataforma extra a somar à complexidade do sistema", adianta Nuno Tavares.


Já para o infecciologista do Hospital de Santo António, “a DGS está um pouco isolada de tudo o resto e vai emanando normas e exigindo informação sem auscultar muito quem está no terreno. Uma conferência de imprensa diária exige muita informação e quem a produz, até porque grande parte dela é eminentemente clínica, são os médicos. Ora, se nós já estamos um bocadinho atrapalhados com o volume de doentes que temos, [com este processo] gastamos ainda mais tempo, que normalmente já é pouco".

Perante este cenário, os médicos vêem-se obrigados a aumentar a carga horária. “Para fazer 30 consultas levo uma eternidade e falo menos com os doentes do que falava, mas toda a parte burocrática tenho de a manter. Isto faz com que tenha 20 minutos de uma consulta, quando estou 5 ou 3 minutos com o doente ao telefone. O que acontece é que em vez de sair às 20h saio às 22h, porque os registos têm de estar todos feitos”, explica Miguel Abreu.

Ainda assim, o infecciologista adianta que no hospital Santo António foi possível “aligeirar este processo, criando uma data de automatismos no sistema informático, através de documentos criados automaticamente e que ao fim do dia são enviados para as autoridades de saúde, neste caso a DGS e ARS Norte”.

Burocracia ou doentes? “A prioridade é observar os doentes”

Fernando Maltez, director do serviço de doenças infecciosas do hospital Curry Cabral admite, também, que o registo dos dados no SINAVE “demora algum tempo” e adianta que, à semelhança dos hospitais de São João e Santo António, só são notificados os casos confirmados.

“O risco de subnotificação existe em Portugal, como em qualquer outra parte do mundo e tem a ver com os recursos humanos disponíveis”, explica o infecciologista.

E a justificação é simples, entre o doente e a burocracia a escolha fixa-se sempre no primeiro. “A prioridade é observar os doentes e deixar para segundo lugar o preenchimento de papéis, o que muitas vezes conduz a alguns atrasos nas notificações, mas nada mais do que isso”, reitera.

A obsessão de quantificar o inquantificável

Para Miguel Abreu o problema da notificação do SINAVE é o espelho das falhas informáticas nos hospitais. “Todos os hospitais são subfinanciados, todos. E como é que conseguem financiamento? Através do Orçamento do Estado, com base numa alegada produtividade”, explica.

O problema surge quando se tentam contar doentes como quem conta maçãs. “Maçãs contam-se depressa e bem e de forma objetiva, a observação de doentes não. Eu posso ver mil doentes e ser fácil e ver um e ser muito complexo. Na obsessão de quantificar o inquantificável os administradores transformaram os sistemas informáticos em sistemas de registo de informação e os médicos passam a assumir mais uma papel - de administrativos”, esclarece.

O infecciologista aponta para uma “pressão muito forte para dar informação”.

De acordo com o médico, o hospital Santo António está a seguir, ao dia de hoje, mais de 600 doentes infetados com o novo coronavírus em casa, “sem plataformas para tal”.

“Improvisamos telefonemas, que colegas mais novos fazem sob a nossa orientação. Tudo isto é complexo. Temos cento e poucos doentes internados com Covid-19 mas depois temos mais 600 em casa e tudo isto obriga a registos”, afirma.

Para Miguel Abreu a solução passa por selecionar a informação que é mesmo essencial notificar.

Nuno Tavares vai mais longe. "Creio que há problemas estruturais que vão ser difíceis de resolver, porque a partir do momento em que começamos a adicionar plataformas umas às outras, é difícil eliminar completamente os erros do passado".