“Em Espanha vivemos um autêntico terramoto no coração do sistema político”
10-06-2016 - 09:42

No arranque da campanha eleitoral em Espanha, o jornalista do “El Español” Daniel Basteiro faz, em entrevista à Renascença, a análise dos resultados possíveis num cenário “muito incerto”.

Passaram cinco meses desde que as eleições gerais em Espanha resultaram no Congresso dos Deputados mais fragmentado de sempre, sem que nenhum partido tenha conseguido a maioria necessária para governar.

As sucessivas negociações foram falhando até que a única solução restou apenas ao Rei Felipe IV convocar novas eleições. A campanha arranca esta sexta-feira e a ida às urnas está marcada para dia 26 de Junho.

A situação é “inédita”, diz Daniel Basteiro, jornalista político do jornal digital “El Español”, que, em entrevista à Renascença desenha os cenários possíveis. Não está excluída uma solução “à portuguesa”.

Depois destes cinco meses de impasse, o cenário político hoje está mais claro do que aquele que emergiu das eleições de 20 de Dezembro?

O cenário é muito incerto. O resultado na altura foi inédito, mas esta convocatória eleitoral também é inédita. Nunca na história de Espanha foi preciso repetir eleições. Há muitos factores de incerteza. O primeiro é o comportamento do eleitorado, como muda a atitude dos eleitores tendo que ir às urnas pela segunda vez neste contexto.

Em segundo lugar, em Espanha vivemos um autêntico terramoto no coração do sistema político e uma crise de representação. Os dois maiores partidos, o Partido Popular, de centro-direita, e o PSOE, de centro-esquerda, caíram muito em termos de apoio. Nas últimas eleições, os dois somaram 50% dos votos, um número incomumente baixo. O Podemos, um partido novo que nasceu do movimento dos 'Indignados' e da grande manifestação de 15 de Maio de 2011, poderá tornar-se na segunda força política do país, é isso que dizem as sondagens, praticamente com unanimidade, mas estamos no início da campanha e não sabemos se o Partido Socialista continuará a ser o primeiro partido da esquerda. Com estas mudanças, cria-se um tabuleiro e um sistema político que está a mudar.

Como se explica que o Unidos Podemos, que junta o Podemos e a Esquerda Unida, tenha ultrapassado o PSOE nas sondagens?

O Unidos Podemos é uma coligação de vários partidos, mas sobretudo de dois: Podemos, e os seus associados locais na Catalunha, na Galiza e na comunidade valenciana, e a Esquerda Unida. Nas últimas eleições, a soma de votas do Podemos com a Esquerda Unida já superava o PSOE, mas apresentaram-se em separado. Aprenderam a lição e consideram que se têm de apresentar juntos também para conseguir que a lei eleitoral em Espanha jogue a seu favor e não contra, como na anterior eleição. O Unidos Podemos percebeu que tem de aglutinar e concentrar todos os apoios possíveis para poder ultrapassar o PSOE em votos e evitar os efeitos perversos da lei eleitoral espanhola. Nas últimas eleições, o próprio Pablo Iglesias, na noite eleitoral, reconheceu que lhes tinha faltado uma semana e um debate eleitoral a mais e com isso teriam ultrapassado o PSOE.

O Podemos é especialista em fazer campanha, em Espanha tem conseguir ligar-se muito bem a um eleitorado jovem, com o qual o PSOE não se liga, e a sua aliança com a Esquerda Unida pode colocá-los por cima em todas as sondagens. Eles aspiram a ser a grande alternativa. Juntos, há mais probabilidade de se tornarem a primeira força da esquerda.

A esquerda ganha vantagem nas sondagens, mas parece provável uma solução "à portuguesa", um governo do PSOE com o apoio do Unidos Podemos, tendo em conta a grande tensão que se tem evidenciado entre esses partidos?

É improvável, mas não impossível. Pedro Sanchéz, líder do PSOE, uns dias depois das últimas eleições, foi a Portugal ter uma reunião com António Costa e disse que queria um governo à portuguesa. O que aconteceu foi que durante todos estes meses as negociações para esse governo foram muito difíceis. O Podemos exigiu condições muito duras e o PSOE também não vê o Podemos com bons olhos, porque o vê como alguém que quer ocupar o seu lugar, que quer roubar o seu eleitorado. Existe uma grande desconfiança mútua e culpabilização mútua. A tensão tem vindo a aumentar nas últimas semanas. Tem havido mensagens de muita violência do PSOE para o Podemos, que ignora o PSOE porque acredita que assim pode disputar com o PP o primeiro ou o segundo lugar, e o PSOE vê-se ferido no seu orgulho e traído pela esquerda e tem estado a atacar muito o partido de Pablo Iglesias. Mas o que acontecerá depois das eleições, se o Podemos e o PSOE somarem uma maioria maior do que a do centro-direita do PP e do Cidadãos, seria incompreensível se não houvesse um pacto. Mas é verdade que as condições, o clima e a confiança, não existem agora.

Não havendo sinais de uma clara maioria, significa que cada assento parlamentar vai contar para definir o cenário pós-eleitoral?

Isso é muito importante e uma das chaves do que se passou nos últimos meses em Espanha. A aritmética é imprescindível. E é muito difícil. Nas últimas eleições, não houve uma maioria clara e faltavam esses assentos para que o PP ou o PSOE pudesses entrar em acordo com um partido apenas. Além do mais existem no parlamento um conjunto de forças independentistas, nacionalistas e com esses partidos é muito difícil negociar. Para o PSOE, por exemplo, que defende a unidade de Espanha, é muito difícil.

A aritmética é fundamental. Se houver uma soma de PSOE e Podemos clara que garanta o governo, é difícil justificar perante os cidadãos que não haja acordo. O problema é que essa soma não é suficiente no parlamento actual, e o mesmo se passa com o PP e o Cidadãos. Está muito renhido. Tudo se pode decidir por uma questão de dez ou quinze assentos parlamentares.

E é possível que o PP e o PSOE pensem num bloco central ou essa hipótese está afastada?

Seria o acordo preferido pelo PP. O PP acredita que lhe cabe governar, porque foi o partido mais votado e, segundo todas as sondagens, o PP voltará a ser o partido mais votado, com muita diferença. O que o PP pede ao PSOE, que é um partido de Estado, com história, com tradição na governação de Espanha, é que deixe governar a força mais votada. O que acontece é que são partidos muito distintos e que têm rivalizado durante décadas em Espanha. O PSOE já decidiu, por escrito, formalmente, que nunca se aliará ao PP. O problema é que se nas próximas eleições tiver de se decidir entre fazer Pablo Iglesias presidente [do Governo] ou abster-se para que governe Rajoy, isso será uma posição muito dolorosa para o PSOE. Poderia dar-se uma abstenção para que governe o PP. É algo que os dirigentes não reconhecem abertamente, mas que acreditam que pode ser uma opção menos má ou melhor do que fazer presidente [do Governo] Pablo Iglesias.

E o eleitorado espanhol aceitaria Pablo Iglesias como presidente do Governo?

As sondagens dizem que não, que a sua imagem não é muito presidencial.

Mesmo chegando a um acordo entre duas ou mais forças, essa coligação teria força para durar quatro anos? É possível que o impasse continue a arrastar-se ou que um acordo alcançado não seja estável?

Isso é uma possibilidade certa. Em Espanha existem muitas medidas que são necessárias, com as quais a maioria dos políticos está de acordo, como a reforma da Constituição. Há grandes reformas pendentes em Espanha, como o sistema de pensões, o desenho territorial do Estado, são medidas de fundo e que necessitam de um grande consenso. Há muitas vozes em Espanha que consideram que o governo que sair das eleições de 26 de Junho terá de ser um governo muito executivo, a ir ao fundo do funcionamento do Estado, e que seja uma legislatura curta que depois se passe a outro governo.

Mas isso obrigará a uma mudança dos protagonistas, ou não?

Sim. Por exemplo, Pedro Sanchéz, líder do PSOE, está a ser muito questionado internamente. Há muitos socialistas que gostavam de ver outro líder, nomeadamente a presidente da Andaluzia, Susana Díaz. Pedro Sanchéz poderá ter, nestas eleições, a sua última oportunidade continuar à frente do Partido Socialista. É possível que, se não chegar a governo, e principalmente, se ficar em terceiro, e se o Unidos Podemos o superar, há vozes no partido que pedirão para que saia e que haja uma nova liderança.

No PP também não é fácil. Se o PP não tiver um bom resultado, há quem peça a sucessão de Mariano Rajoy. Agora é um partido que está aparentemente unido, porque, apesar de tudo, está a governar, e, em teoria, vai ganhar as eleições, mas no momento que Rajoy não consiga formar governo a sua liderança fica comprometida.

Nada descarta de todo que possa haver umas terceiras eleições, porque o resultado eleitoral pode ser parecido ao de 20 de Dezembro. Mas, se alguma coisa está claro, é que algo vai mexer nos partidos e provavelmente os líderes, alguns deles, terão de dar um passo atrás.

Arrisca algum cenário mais provável? O que acontece no caso de as eleições não serem, novamente, conclusivas, e de os partidos não se conseguirem entender?

Essa é a pergunta para o milhão [risos]. É uma pergunta difícil. Há uma certeza com bastante garantia, que é que o PP vai ganhar as eleições claramente. É o que dizem todas as sondagens e é muito provável que isso ocorra. Depois, o PSOE poderá perder a hegemonia da esquerda, poderá ser o terceiro partido. Há dúvidas sobre se poderá ser o terceiro partido em votos, mas ter mais assentos no Congresso dos Deputados do que o Podemos, isso é algo que é possível sob a lei eleitoral. Existe a possibilidade certa de que o panorama não se altere muito. E que a governabilidade não seja tão evidente a 27 de Junho. Acho que, se for evidente, será porque o PP e o Cidadãos conseguiram somar uma maioria estável. E isso é possível e é o mais fácil do ponto de vista da governabilidade. Se não, podemos ver-nos alocados a umas longas negociações, durante todo o Verão, e que podem desembocar num governo do Unidos Podemos com PSOE ou de uma abstenção de PSOE para que governe o Partido Popular.

Considera que estas duas semanas podem então ser importantes para resolver indecisões mesmo por parte do eleitorado? Podem ser definitivas?

Sim. Serão muito importantes e há vários factores no horizonte que assim o fazem antever. Um deles é o debate eleitoral - vamos ter pela primeira vez um debate eleitoral entre os quatro líderes dos grandes partidos, na segunda-feira 13 de Junho. Por outro lado, há que ter em conta outro factor importante, que é a participação. É difícil estimar o que pode acontecer, porque nunca tivemos de votar duas vezes em Espanha, mas é provável que a participação caia vários pontos. Há que ver como é que isto afecta o eleitorado. E no caso do PSOE, particularmente, há que ver se consegue mobilizar o seu eleitorado. Há uma grande percentagem de indecisos e a campanha eleitoral vai ser muito importante para que o eleitorado faça a sua escolha. O cenário está realmente muito aberto.