Passaram cinco meses desde que as eleições gerais em Espanha resultaram no Congresso dos Deputados mais fragmentado de sempre, sem que nenhum partido tenha conseguido a maioria necessária para governar.
As sucessivas negociações foram falhando até que a única solução restou apenas ao Rei Felipe IV convocar novas eleições. A campanha arranca esta sexta-feira e a ida às urnas está marcada para dia 26 de Junho.
A situação é “inédita”, diz Daniel Basteiro, jornalista político do jornal digital “El Español”, que, em entrevista à Renascença desenha os cenários possíveis. Não está excluída uma solução “à portuguesa”.
Depois destes cinco meses de impasse, o cenário político hoje está mais claro do que aquele que emergiu das eleições de 20 de Dezembro?
O cenário é muito incerto. O resultado na altura foi inédito, mas esta convocatória eleitoral também é inédita. Nunca na história de Espanha foi preciso repetir eleições. Há muitos factores de incerteza. O primeiro é o comportamento do eleitorado, como muda a atitude dos eleitores tendo que ir às urnas pela segunda vez neste contexto.
Em segundo lugar, em Espanha vivemos um autêntico terramoto no coração do sistema político e uma crise de representação. Os dois maiores partidos, o Partido Popular, de centro-direita, e o PSOE, de centro-esquerda, caíram muito em termos de apoio. Nas últimas eleições, os dois somaram 50% dos votos, um número incomumente baixo. O Podemos, um partido novo que nasceu do movimento dos 'Indignados' e da grande manifestação de 15 de Maio de 2011, poderá tornar-se na segunda força política do país, é isso que dizem as sondagens, praticamente com unanimidade, mas estamos no início da campanha e não sabemos se o Partido Socialista continuará a ser o primeiro partido da esquerda. Com estas mudanças, cria-se um tabuleiro e um sistema político que está a mudar.
Como se explica que o Unidos Podemos, que junta o Podemos e a Esquerda Unida, tenha ultrapassado o PSOE nas sondagens?
O Unidos Podemos é uma coligação de vários partidos, mas sobretudo de dois: Podemos, e os seus associados locais na Catalunha, na Galiza e na comunidade valenciana, e a Esquerda Unida. Nas últimas eleições, a soma de votas do Podemos com a Esquerda Unida já superava o PSOE, mas apresentaram-se em separado. Aprenderam a lição e consideram que se têm de apresentar juntos também para conseguir que a lei eleitoral em Espanha jogue a seu favor e não contra, como na anterior eleição. O Unidos Podemos percebeu que tem de aglutinar e concentrar todos os apoios possíveis para poder ultrapassar o PSOE em votos e evitar os efeitos perversos da lei eleitoral espanhola. Nas últimas eleições, o próprio Pablo Iglesias, na noite eleitoral, reconheceu que lhes tinha faltado uma semana e um debate eleitoral a mais e com isso teriam ultrapassado o PSOE.
O Podemos é especialista em fazer campanha, em Espanha tem conseguir ligar-se muito bem a um eleitorado jovem, com o qual o PSOE não se liga, e a sua aliança com a Esquerda Unida pode colocá-los por cima em todas as sondagens. Eles aspiram a ser a grande alternativa. Juntos, há mais probabilidade de se tornarem a primeira força da esquerda.
A esquerda ganha vantagem nas sondagens, mas parece provável uma solução "à portuguesa", um governo do PSOE com o apoio do Unidos Podemos, tendo em conta a grande tensão que se tem evidenciado entre esses partidos?
É improvável, mas não impossível. Pedro Sanchéz, líder do PSOE, uns dias depois das últimas eleições, foi a Portugal ter uma reunião com António Costa e disse que queria um governo à portuguesa. O que aconteceu foi que durante todos estes meses as negociações para esse governo foram muito difíceis. O Podemos exigiu condições muito duras e o PSOE também não vê o Podemos com bons olhos, porque o vê como alguém que quer ocupar o seu lugar, que quer roubar o seu eleitorado. Existe uma grande desconfiança mútua e culpabilização mútua. A tensão tem vindo a aumentar nas últimas semanas. Tem havido mensagens de muita violência do PSOE para o Podemos, que ignora o PSOE porque acredita que assim pode disputar com o PP o primeiro ou o segundo lugar, e o PSOE vê-se ferido no seu orgulho e traído pela esquerda e tem estado a atacar muito o partido de Pablo Iglesias. Mas o que acontecerá depois das eleições, se o Podemos e o PSOE somarem uma maioria maior do que a do centro-direita do PP e do Cidadãos, seria incompreensível se não houvesse um pacto. Mas é verdade que as condições, o clima e a confiança, não existem agora.
Não havendo sinais de uma clara maioria, significa que cada assento parlamentar vai contar para definir o cenário pós-eleitoral?
Isso é muito importante e uma das chaves do que se passou nos últimos meses em Espanha. A aritmética é imprescindível. E é muito difícil. Nas últimas eleições, não houve uma maioria clara e faltavam esses assentos para que o PP ou o PSOE pudesses entrar em acordo com um partido apenas. Além do mais existem no parlamento um conjunto de forças independentistas, nacionalistas e com esses partidos é muito difícil negociar. Para o PSOE, por exemplo, que defende a unidade de Espanha, é muito difícil.
A aritmética é fundamental. Se houver uma soma de PSOE e Podemos clara que garanta o governo, é difícil justificar perante os cidadãos que não haja acordo. O problema é que essa soma não é suficiente no parlamento actual, e o mesmo se passa com o PP e o Cidadãos. Está muito renhido. Tudo se pode decidir por uma questão de dez ou quinze assentos parlamentares.
E é possível que o PP e o PSOE pensem num bloco central ou essa hipótese está afastada?
Seria o acordo preferido pelo PP. O PP acredita que lhe cabe governar, porque foi o partido mais votado e, segundo todas as sondagens, o PP voltará a ser o partido mais votado, com muita diferença. O que o PP pede ao PSOE, que é um partido de Estado, com história, com tradição na governação de Espanha, é que deixe governar a força mais votada. O que acontece é que são partidos muito distintos e que têm rivalizado durante décadas em Espanha. O PSOE já decidiu, por escrito, formalmente, que nunca se aliará ao PP. O problema é que se nas próximas eleições tiver de se decidir entre fazer Pablo Iglesias presidente [do Governo] ou abster-se para que governe Rajoy, isso será uma posição muito dolorosa para o PSOE. Poderia dar-se uma abstenção para que governe o PP. É algo que os dirigentes não reconhecem abertamente, mas que acreditam que pode ser uma opção menos má ou melhor do que fazer presidente [do Governo] Pablo Iglesias.
E o eleitorado espanhol aceitaria Pablo Iglesias como presidente do Governo?
As sondagens dizem que não, que a sua imagem não é muito presidencial.
Mesmo chegando a um acordo entre duas ou mais forças, essa coligação teria força para durar quatro anos? É possível que o impasse continue a arrastar-se ou que um acordo alcançado não seja estável?
Isso é uma possibilidade certa. Em Espanha existem muitas medidas que são necessárias, com as quais a maioria dos políticos está de acordo, como a reforma da Constituição. Há grandes reformas pendentes em Espanha, como o sistema de pensões, o desenho territorial do Estado, são medidas de fundo e que necessitam de um grande consenso. Há muitas vozes em Espanha que consideram que o governo que sair das eleições de 26 de Junho terá de ser um governo muito executivo, a ir ao fundo do funcionamento do Estado, e que seja uma legislatura curta que depois se passe a outro governo.
Mas isso obrigará a uma mudança dos protagonistas, ou não?
Sim. Por exemplo, Pedro Sanchéz, líder do PSOE, está a ser muito questionado internamente. Há muitos socialistas que gostavam de ver outro líder, nomeadamente a presidente da Andaluzia, Susana Díaz. Pedro Sanchéz poderá ter, nestas eleições, a sua última oportunidade continuar à frente do Partido Socialista. É possível que, se não chegar a governo, e principalmente, se ficar em terceiro, e se o Unidos Podemos o superar, há vozes no partido que pedirão para que saia e que haja uma nova liderança.
No PP também não é fácil. Se o PP não tiver um bom resultado, há quem peça a sucessão de Mariano Rajoy. Agora é um partido que está aparentemente unido, porque, apesar de tudo, está a governar, e, em teoria, vai ganhar as eleições, mas no momento que Rajoy não consiga formar governo a sua liderança fica comprometida.
Nada descarta de todo que possa haver umas terceiras eleições, porque o resultado eleitoral pode ser parecido ao de 20 de Dezembro. Mas, se alguma coisa está claro, é que algo vai mexer nos partidos e provavelmente os líderes, alguns deles, terão de dar um passo atrás.
Arrisca algum cenário mais provável? O que acontece no caso de as eleições não serem, novamente, conclusivas, e de os partidos não se conseguirem entender?
Essa é a pergunta para o milhão [risos]. É uma pergunta difícil. Há uma certeza com bastante garantia, que é que o PP vai ganhar as eleições claramente. É o que dizem todas as sondagens e é muito provável que isso ocorra. Depois, o PSOE poderá perder a hegemonia da esquerda, poderá ser o terceiro partido. Há dúvidas sobre se poderá ser o terceiro partido em votos, mas ter mais assentos no Congresso dos Deputados do que o Podemos, isso é algo que é possível sob a lei eleitoral. Existe a possibilidade certa de que o panorama não se altere muito. E que a governabilidade não seja tão evidente a 27 de Junho. Acho que, se for evidente, será porque o PP e o Cidadãos conseguiram somar uma maioria estável. E isso é possível e é o mais fácil do ponto de vista da governabilidade. Se não, podemos ver-nos alocados a umas longas negociações, durante todo o Verão, e que podem desembocar num governo do Unidos Podemos com PSOE ou de uma abstenção de PSOE para que governe o Partido Popular.
Considera que estas duas semanas podem então ser importantes para resolver indecisões mesmo por parte do eleitorado? Podem ser definitivas?
Sim. Serão muito importantes e há vários factores no horizonte que assim o fazem antever. Um deles é o debate eleitoral - vamos ter pela primeira vez um debate eleitoral entre os quatro líderes dos grandes partidos, na segunda-feira 13 de Junho. Por outro lado, há que ter em conta outro factor importante, que é a participação. É difícil estimar o que pode acontecer, porque nunca tivemos de votar duas vezes em Espanha, mas é provável que a participação caia vários pontos. Há que ver como é que isto afecta o eleitorado. E no caso do PSOE, particularmente, há que ver se consegue mobilizar o seu eleitorado. Há uma grande percentagem de indecisos e a campanha eleitoral vai ser muito importante para que o eleitorado faça a sua escolha. O cenário está realmente muito aberto.