O sistema de distribuição eletrónica de processos está a funcionar há um mês sob criticas dos magistrados e com o boicote da Ordem dos Advogados.
Com o objetivo de regulamentar uma lei aprovada em 2021, feita sob proposta do PSD, e na sequência das suspeitas de manipulação, envolvendo dois antigos presidentes do Tribunal da Relação de Lisboa, em 2020, a ministra da Justiça fez publicar uma portaria que impõe que o sorteio seja presenciado por um juiz, um procurador, um funcionário judicial e um advogado. A solução, contudo, cria mais problemas do que aqueles que resolve.
O presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP), Adão Carvalho, afirma que a solução nem sequer garante que o processo é mais transparente porque o sistema eletrónico está no domínio do Ministério da Justiça.
"Os juízes e os procuradores não têm qualquer controlo sobre o processo. O que é que há de transparente nisto? O funcionário carregar no botão e estarem o juiz e o procurador a vê-los fazer isso? Porque todo o processo é eletrónico e quem controla o sistema não é nenhum dos presentes. É o IGFEJ [Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça] que controla o sistema de distribuição eletrónica de processos."
"Não estou aqui a insinuar que haja interferências, mas a verdade é que quem lá está, à frente do monitor, não sabe sequer, de cada espécie, quantos processos são carregados por cada juiz", acrescenta.
Adão Carvalho diz que juízes e procuradores "não estão lá a fazer nada" e nota que os advogados "nem sequer lá estão".
A portaria de Catarina Sarmento e Castro prevê que também assistam aos sorteios, mas a Ordem dos Advogados não nomeou até agora qualquer representante, revela o presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público: “O 'feedback' que temos é que em nenhuma das distribuições esteve presente o representante da Ordem dos Advogados em qualquer ponto do país."
O advogado Luís Menezes Leitão afirma que o sistema não funciona porque o Governo nunca quis que funcionasse. Por isso, adiou a regulamentação da lei, proposta pelo PSD e aprovada já em 2021. Quando, finalmente, a regulamentou, não previu que o IGFEJ fizesse uma escala de advogados, como ele próprio tinha proposto quando era bastonário da Ordem dos Advogados, pagos pelo Ministério da Justiça.
”Se eu quiser que nenhum advogado esteja presente, naturalmente que eu não crio um sistema de escalas como eu previ que fosse criado. Porque aí, se disserem não, não há nenhum advogado remunerado para lá ir, e tem que ser o Conselho Geral da Ordem, que só tem 21 membros, a assegurar a distribuição por todo o país, o processo fica completamente inviável”, diz Menezes Leitão.
Desperdício de recursos
Também o presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP), Manuel Soares, considera o sistema um absurdo, "tal como está legislado”.
“Se o sistema não procurasse introduzir correções, tínhamos facilmente 64 mil horas de trabalho de magistrados perdidas por ano. A fazer o quê? Sentados numa sala. A olhar para um funcionário a carregar num botão", aponta.
"Depois, um sistema que foi desenhado para poder ter a fiscalização dos advogados, através da sua Ordem, e a Ordem diz 'não, não estamos para isso, não temos pessoas para mandar lá'... Portanto, sou eu que estou a ver se o funcionário carrega no botão certo. O Adão Carvalho, que é o procurador, está a ver se eu estou a olhar bem para o dedo do funcionário. Isto é um absurdo.”
Manuel Soares dá um exemplo do desperdício de recursos humanos e materiais a que o sistema leva. Numa das ocasiões em que esteve escalado para assistir ao sorteio, teve de trocar com uma colega por causa da suas funções na Associação Sindical dos Juízes: "A minha colega tinha de ir ao Porto fazer a distribuição, mas, entretanto, houve greve de comboios e ela teve de ir de avião. Para ir ao Porto. E agora eu pergunto: isto não é ridículo? Um juiz desembargador vai de Lisboa ao Porto para estar sentado a olhar para um computador. Isto tem de ser tudo automatizado.”
O presidente da ASJP acredita que não teria sido necessário mudar a lei se o Conselho Superior da Magistratura tivesse assumido a responsabilidade de corrigir as falhas do sistema, depois do surgimento de suspeitas de manipulação envolvendo dois ex-presidentes do Tribunal da Relação de Lisboa, em 2020.
Na mesma linha, o procurador Adão Carvalho defende que devia ser o Conselho Superior do Ministério Público e o Conselho Superior da Magistratura a terem o domínio dos sistema informático de sorteio de processos e não o Ministério da Justiça, até por razões de independência do sistema. Adão Carvalho revela que essa foi uma das propostas que o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público apresentou à ministra da Justiça numa reunião recente.
Sem desculpas para não mudar a lei
O juiz desembargador Manuel Soares desafia o Governo a mudar as regras rapidamente, algo ue o facto de ter maioria absoluta ajuda: . ”O Governo tem responsabilidades. Tem uma maioria absoluta. Se a lei está mal feita, como está, então que a melhore. A ministra da Justiça não pode dizer’o parlamento alterou isto e eu agora não posso fazer nada', porque ela, há um mês e tal, tinha dito que ia alterar a lei."
"O Governo pode perfeitamente apresentar uma proposta legislativa e o parlamento aprova-a em 15 dias", reforça.