O cirurgião Manuel Antunes receia o colapso do Serviço Nacional de Saúde (SNS) porque se está "rapidamente a trabalhar para a sua destruição".
"Temo pela sobrevivência do SNS", diz o conhecido cirurgião, que é também o presidente da Cáritas de Coimbra, em entrevista à Renascença e à Agência Ecclesia.
Assumindo-se como “muito crítico” da atual situação, Manuel Antunes lembra que o SNS constitui "um bem inestimável que não podemos perder".
Na semana em que o Governo entregou o Orçamento do Estado no Parlamento e em vésperas do Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza, Manuel Antunes insiste ainda nos alertas quanto à sobrevivência de muitas instituições particulares de solidariedade social.
"O Orçamento não dá uma resposta cabal aos problemas das instituições particulares", diz o médico e professor universitário, que pede uma "intervenção mais musculada do Estado" nesses apoios. “É preciso que o Estado e o Governo não se esqueçam de que o serviço que nós estamos a fazer é um serviço que de facto constitucionalmente pertence ao Estado”, argumenta.
Diariamente chegam à Cáritas de Coimbra pedidos “por causa das dificuldades das famílias e por causa das rendas das casas e outro tipo de despesas" e Manuel Antunes nota que, pela primeira vez em 75 anos, a Cáritas de Coimbra apresentou, em 2022 um défice de 800 mil euros. "O pior ainda poderá estar para vir", adverte.
A Cáritas de Coimbra atende por ano cerca de 15 mil pessoas, cobrindo praticamente todas as áreas sociais. Manuel Antunes aponta uma crescente procura de ajuda das pessoas que têm na rua a sua morada: “Notamos que é na área de apoio na rua que temos cada vez mais procura de pessoas que estão no fim da linha. Os pedidos estão a aumentar subitamente,”
O ministro das Finanças, Fernando Medina, disse que o Orçamento do estado para 2024 protege o futuro. Do que já se conhece do documento, está-se de alguma forma a esquecer o presente de grande dificuldade?
Como compreendem, eu não tenho um conhecimento global e pormenorizado do Orçamento para 2024 apresentado na Assembleia da República. Nem sequer segui na íntegra a apresentação pública. Portanto, tenho dúvidas sobre muitas coisas. Não me parece que o Orçamento dê uma resposta cabal aos problemas que as IPSS em geral e a Cáritas de Coimbra em particular têm no presente.
Houve, recentemente, uma atualização das comparticipações da Segurança Social e isso, naturalmente, melhorou muito o Orçamento, mas não chegou para cobrir o atraso que tem sido registado nos últimos anos. Há muito tempo que não eram atualizadas as comparticipações da Segurança Social e, portanto, todas as instituições deste tipo estão a ter grandes dificuldades, algumas até de sobrevivência. Não é o nosso caso ainda, mas vamos ver o que é que nos traz o futuro.
A realidade social de Coimbra não é muito diferente da do resto do país. Por onde passa nesta altura a ajuda da Cáritas?
A Caritas diocesana de Coimbra tem 126 serviços diferentes espalhados por todo o território do distrito e ainda de mais nove concelhos de outros cinco distritos, perifericamente, e cobre praticamente todas as áreas sociais. Mas nós notamos que é na área de apoio na rua que temos cada vez mais procura. Procura de pessoas que estão no fim da linha, que não conseguem cobrir as suas despesas e de outras pessoas que não conseguem mesmo comprar o pão de que precisam. Estes tipos de pedidos, que não eram bem o nosso ADN, estão a aumentar, subitamente, e estamos a fazer o possível no sentido de conseguir corresponder às necessidades. Mas os pedidos, para além disto, estão a ser muito mais intensos do que eram até há pouco tempo.
As dificuldades no acesso à habitação também são uma das prioridades?
Nós temos um CAS, que é um centro de apoio social, que ajuda as famílias com dificuldades e um dos pedidos comuns é exatamente o da ajuda no pagamento de rendas. Mas nós aí temos fundos muito limitados, e, portanto, podemos fazer uma ajuda temporária e momentânea. Não temos muito mais do que isso. Este é um dos setores em que as necessidades estão a aumentar claramente.
Coimbra é um grande centro estudantil. Os alunos também sofrem com os problemas do alojamento? Têm chegado pedidos nesta área?
É uma pergunta muito oportuna porque a responsável por este centro do CAS acabou de me enviar também um pedido para apoio a dois estudantes que estão nessas condições. Para eles poderem concorrer a bolsas e tudo, têm que dar provas de que não têm dívidas e, portanto, recorrem a nós. Estamos a fazer isso, de certo modo, em apoio também ao sistema da própria universidade, o Sazu, no sentido de apoiarmos até onde pudermos. Mas, muitas vezes, as dívidas são para além daqueles valores que nós podemos comparticipar. Com outras associações e com outras instituições do mesmo género vamos tentando fazer esse apoio, mas subsistem as dúvidas sobre se esse apoio que damos agora é suficiente porque dar pão hoje não significa matar a fome para amanhã, não é?
Nesse aspeto, também temos algumas dificuldades, mas fazemos aquilo que podemos. Um dos pedidos é para uma dívida de alojamento no valor de 395,21 euros e o outro é no valor de 794,50. Chegou-me mesmo agora o pedido de aprovação. Naturalmente, vou dar a aprovação. O fundo solidário da Universidade também vai ajudar a comparticipar essas despesas.
Os últimos anos têm sido particularmente difíceis. Em 2020, em plena pandemia, foram muitos os relatos do aumento diário de pedidos de ajuda. Nnesta altura, as solicitações estão ao mesmo nível?
Até estão a aumentar. Houve serviços sociais em que se registou, claramente, uma quebra com a pandemia, mas, neste momento, estamos quase lá, no número de utentes que tínhamos anteriormente. A Cáritas diocesana de Coimbra atende mais ou menos 15 mil pessoas por ano.
E os números têm sido idênticos desde a pandemia?
Estão a atingir agora esses valores. Estamos a falar daquelas coisas de rotina, como os lares, como as creches, como os centros de dia, que perderam muitos utentes durante a pandemia e que agora estão praticamente aos níveis anteriores, aos níveis de 2019. Mas o que acontece é que têm aumentado os pedidos noutras áreas, sobretudo deste apoio social ocasional de que estávamos a falar anteriormente. Ssão muito mais agora do que eram antes da pandemia. Portanto, no final a sobrecarga financeira para as instituições é muito maior do que era antes.
Poderemos estar perante a iminência de uma tempestade perfeita com a manutenção da inflação, a não descida das taxas de juros e, agora, mais um conflito, o do Médio Oriente, com efeitos imediatos ao nível, por exemplo, do preço do petróleo. O pior poderá estar para vir?
O pior poderá estar para vir. Pela primeira vez nos 75 anos de história desta instituição, tivemos em 2022 um saldo negativo orçamental no valor de cerca de 800 mil euros. Para o orçamento deste ano de 2023, já estimámos um saldo negativo também de cerca de 600 mil euros. Estamos a falar quase de 1,5 milhões de défice para a instituição.
Neste momento, temos preocupações com o futuro, mas não temos preocupações atuais em relação a isso, porque, neste momento, podemos suportar. O orçamento da instituição é de 24 milhões de euros anuais. Portanto, esta Cáritas de Coimbra é de longe a maior Cáritas portuguesa e, provavelmente, até o nosso orçamento excede o somatório das outras todas. Nesse aspeto, é uma grande instituição.
Aquilo que eu chamo de inflação para 2022 e 2023 da Cáritas Diocesana andou aí pelos 17%. Isso tem muito a ver com o custo das energias, mas também com os aumentos sucessivos - o que é bom - nos vencimentos. E as comparticipações das pessoas nos lares, nas creches e nos jardins de infância não têm tido, de maneira nenhuma, o mesmo crescimento. Pelo contrário, todos os dias recebemos pedidos por causa das dificuldades das famílias, por causa das questões das rendas das casas e outro tipo de despesas que elas não podem comportar.
Estamos a tentar gerir isso da melhor maneira que podemos. Acreditamos que se não houver uma intervenção mais musculada do Estado, no sentido de suportar as instituições - esta e as outras -, todas correm os mesmos riscos em termos de suporte da Segurança Social. Se nada for feito, estas instituições vão ter cada vez mais dificuldades e temos conhecimento de algumas que já faliram ou estão em processo de falência.
Num momento em que aumentam os pedidos de ajuda e diminui a capacidade de resposta, a "chave" tem mesmo a ver com a sustentabilidade. Que áreas específicas - já tem falado de algumas - é que estão a criar maior pressão nesta fase?
Basicamente, todas as áreas. Como disse, temos 24 milhões de euros de 0rçamento e quase 16 milhões vão para os nossos funcionários, ou seja, são 75 por cento. Temos quase mil funcionários e, por isso, parte do orçamento é para a despesa com pessoal. É o caso, por exemplo, do anunciado aumento do salário mínimo, que é o que ganha a maior parte dos nossos funcionários, como os assistentes e os auxiliares. O aumento do salário mínimo em 2024 é à volta de 7,89%.
Eu não estou contra o aumento do salário mínimo, porque as pessoas têm essa necessidade. Só estou a dizer que para a instituição isso é um aumento muito superior àquele que tem havido nas compartições da Segurança Social. É preciso não esquecer - e é preciso que o Estado e o Governo não se esqueçam - que o serviço que fazemos é um serviço que constitucionalmente pertence ao Estado. Portanto, nós precisamos do apoio do Estado e o Estado sabe que o dinheiro investido aqui é um dinheiro que tem rendimento total, não há aqui coisas paralelas e despesas paralelas que possam indiciar um mau uso dos dinheiros. Houve uma atualização, houve um novo acordo social no princípio do mês de setembro, mas ainda não é suficiente para cobrir os custos das instituições e há que fazer uma auditoria para saber exatamente aquilo que é preciso fazer para que estas instituições não desapareçam. Se desaparecerem, então a situação social do país vai-se complicar tremendamente.
Sugere, então, uma maior comparticipação do Estado...
É, é exatamente isso. Volto a dizer: estamos a falar em oito por cento de aumento do salário mínimo e o aumento das comparticipações foi de cinco por cento. Não sabemos exatamente o que vai acontecer, ainda não está definido para 2024. Pode muito bem ser que o Estado tenha a intenção de aumentar as comparticipações de uma forma que corresponda ao aumento dos custos. Estas instituições não estão para lucro, não têm lucro e gastam todo o dinheiro que recebem. Mas hoje estamos a assinar contratos com a Segurança Social e outras instituições de solidariedade, pertencentes ao Estado, em que já se espera que as instituições participem com 20 por cento. O Estado só subsidia 80 por cento e a nossa questão é: onde é que nós vamos buscar esses 20 por cento? Temos alguns donativos, temos pessoas que são generosas e que ajudam, mas não temos outra maneira. Nós não somos a Santa Casa da Misericórdia [de Lisboa], que tem a lotaria para fazer receitas.
Vários dos projetos que a Cáritas desenvolve em Coimbra são dedicados aos cidadãos mais velhos, particularmente na cidade. A solidão é outra das grandes preocupações?
É. Na área da terceira idade, temos as residências, as chamadas ERPI, residências para pessoas idosas, temos os centros de dia, que acompanham as pessoas durante o dia para elas não estarem sozinhas, exatamente para combater a solidão, e temos serviços de apoio domiciliário, para quem não pode sair de casa. Quem estiver em casa, uma pessoa com um casal com 75, 80 anos, 80 e mais anos, e que ainda consiga manter um contacto com os vizinhos, normalmente, não tem esse problema. Para a maior parte das pessoas, sobretudo nas áreas urbanas - a situação é mais fácil nas áreas rurais -, os centros de dia eram, realmente, uma resposta a esse problema. Simplesmente, com a pandemia, os centros de dia tiveram de fechar. Mantivemos algum apoio domiciliário e as pessoas, agora, estão a preferir esse apoio domiciliário. De maneira que temos de reestruturar as equipas, que deixam de ser apenas equipas que iam lá entregar as refeições e fazer uma rápida higiene pessoal ou domiciliária, para utilizar agora pessoas que possam fazer a animação, todo o apoio para evitar a sensação de isolamento que as pessoas têm. Estamos realmente a trabalhar nessa área, há aqui uma mudança muito significativa do padrão anterior.
Sente que a solidariedade se mantém, tanto a nível dos donativos como no voluntariado? Há pessoas que passaram de ajudar a ser ajudadas, não é?...
Esta situação que temos, de pandemia, guerras e tudo, criou mais dificuldades às pessoas, que já não têm aquilo que podiam dar, mesmo que não necessitem ainda de pedir assistência. Mas já não têm a mesma folga que tinham anteriormente. Depois, temos também uma coisa que é preocupante de um modo geral: a sociedade tornou-se menos solidária, está menos preocupada com o que se passa com o vizinho ou com as outras pessoas. Notamos isso cada vez mais. Ainda continuamos a receber apoios muito significativos, apoios de dezenas de milhares de euros e, às vezes, heranças de mais do que isso, mas não é suficiente para fazer face a esta alteração completa e dramática que houve em termos orçamentais, em termos económicos.
Gostaríamos de visitar um pouco a sua experiência profissional para olharmos também para os problemas no acesso à saúde. Tem alguns receios nesta área? Que consequências mais teme da atual situação?
Se está a falar da saúde em geral, continuo a ser muito crítico: acho que o Serviço Nacional de Saúde é um bem inestimável que não podemos perder, mas estamos, rapidamente, a trabalhar para a sua destruição ou, pelo menos, a não trabalhar para a sua progressão, que é aquilo que necessita.
Teme pela sua sobrevivência?
Temo pela sobrevivência do Serviço Nacional de Saúde. Os pressupostos que existiam há 46 anos, quando foi criado, são completamente diferentes. A sociedade mudou, as técnicas mudaram, tenho-me mantido muito crítico em relação a isso. Já agora, queria associar aqui uma preocupação grande, que é a da relação entre os serviços sociais, os serviços de prestação de apoio social, e a saúde. Os nossos idosos, por exemplo, que foram internados aqui num lar, no centro de Coimbra, muitos vindos de grandes distâncias, perderam o apoio do seu médico de família, e o Serviço Nacional de Saúde, os centros de saúde que estão aqui ao nosso lado, recusam-se [a atandê-los]. Não podem, o ministro tem dito que as pessoas internadas, os chamados utentes que temos nas ERPI, nas residências da terceira idade têm o mesmo direito que qualquer outro cidadão. Se calhar, até são mais doentes e precisam de mais cuidados, mas, neste momento, não temos esse apoio.
Aquilo que parecia ter ficado claro na pandemia - sobre a necessidade de um diálogo permanente entre a saúde e o social - foi-se perdendo com o fim da grande crise da Covid?
Sim, foi, foi-se perdendo muito. Por exemplo, nos cuidados continuados para pessoas que só estão nos hospitais por não terem quem delas cuide lá fora. Tem havido transferências muito significativas de utentes do Serviço Nacional de Saúde dos hospitais para as unidades criadas para dar esse apoio, mas ao fim de seis meses ficamos completamente fora dos apoios que estavam a ser dados e não podemos pôr as pessoas na rua porque elas continuam a não ter o apoio familiar, a não ter para onde ir.
Perante este somatório de problemas, seria ou será de esperar uma voz mais firme da Igreja Católica, sobretudo na defesa dos mais frágeis e dos mais afetados pela crise?
Eu espero bem que sim. A Igreja Católica tem os seus próprios problemas. Tem tido, ultimamente. A Cáritas, como sabe, é ligada à Igreja Católica, Até aqui, tem havido uma certa independência destas instituições em relação à própria Igreja, aos párocos e bispos, e é altura de párocos e bispos também olharem para estas instituições e procurarem contribuir para as mesmas. Não que eu tenha, pessoalmente, alguma queixa, mas tem de haver um papel mais ativo. Houve um tempo em que se pensava deixar esta instituições funcionar de forma independente, porque a Igreja tinha outros problemas para resolver. Mas a Igreja é cada vez mais procurada pelas pessoas que têm dificuldades económicas, sociais, e é um papel importante que tem de desempenhar.