Os médicos de carreira hospitalar consideram que a pandemia que o país ainda enfrenta não deve servir de argumento para manter os clínicos reféns das más condições de trabalho no Serviço Nacional de Saúde (SNS).
O alerta surgiu esta terça-feira na Renascença pela voz de Carlos Costa Almeida, o presidente da Associação Nacional dos Médicos de Carreira Hospitalar, no dia em que a Administração Central dos Sistemas de Saúde (ACSS) revelou que, desde 1 de maio deste ano, mais de 400 médicos saíram dos hospitais públicos.
Nos últimos tempos sucederam-se, também, as demissões em várias unidades hospitalares do setor público, a mais recente ocorreu no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, onde 10 chefes do serviço de Urgência invocaram falta de condições de trabalho para renunciarem aos cargos.
Para Carlos Costa Almeida, o estado da Saúde em Portugal é da exclusiva responsabilidade do Governo e das suas más opções e, se nada for feito, a situação "vai piorar, porque, agora [os médicos] saem, mas no passado não os contratavam".
Esse é outro dos grandes problemas da prática da Medicina atualmente em Portugal.
Costa Almeida lembra que, desde a constituição dos hospitais EPE, a carreira médica tem sido sistematicamente desvalorizada.
"Há quanto tempo não há concurso para chefes de serviço?", pergunta o médico que, neste quadro, considera natural e inevitável o desinteresse dos médicos em continuar no SNS.
"Embora continuem a ver doentes, trabalham noutras instituições" do setor privado, cujo acesso é mais difícil para utentes com recursos financeiros mais baixos e que, assim, ficam mais expostos a um serviço de saúde mais débil e com menos capacidade de resposta.
Para o presidente da Associação dos Médicos de Carreira Hospitalar, a solução tem de ser encontrada pelo Ministério da Saúde que, segundo diz, quis "transformar os hospitais em empresas" e que, por isso, está obrigado a "oferecer condições para os médicos trabalharem".
"Não vamos querer que os médicos e as várias classes profissionais fiquem reféns de uma epidemia, porque criar uma empresa para competir com as empresas privadas e, depois, impedir os trabalhadores de saírem de lá, isso não é maneira de resolver nenhum problema", avisa Carlos Costa Almeida.
O problema nem é tanto ao nível dos salários, mas, sim, ao nível das condições de trabalho e da carga horária.
Costa Almeida defende que os hospitais EPE não trouxeram não houve ganhos de organização e os médicos, de quem se diz ganharem muito ao fim do mês, auferem bons ordenados, mas à custa de muitas horas extraordinárias.
Estima-se, aliás, que no final deste ano seja ultrapassado o limiar dos 20 milhões de horas extraordinárias no SNS.
"Quem faz 24, 48, 72 horas de serviço no setor público não pode ter uma vida normal e aquilo que o setor privado trouxe foi a possibilidade de poderem ter melhores ordenados com horários de trabalho normais", lembra o médico de carreira hospitalar que rejeita eventuais críticas aos clínicos que optem por sair para o privado.
"O problema é a falta de estímulo que passou a constituir o trabalho no SNS", diz.
"Não vejo os médicos a reivindicarem melhores salários. E nem mesmo estes chefes de equipa que agora se demitiram disseram que queriam ganhar mais. Eles demitem-se porque são responsáveis por equipas que não têm condições de trabalho e, inclusivamente, têm excesso de trabalho e arriscam-se a cometer erros pelos quais, depois, são responsáveis", conclui Carlos Costa Almeida.