A disciplina de Cidadania e Desenvolvimento acabou por provocar uma discussão na sociedade portuguesa sobre a liberdade de consciência e sobre os limites do Estado.
Há quem defenda que o Estado tem um poder ilimitado até no ensino de conteúdos de educação moral e cívica, sobrepondo-se ao papel dos pais e negando-lhes a objeção de consciência.
E há quem deseje proteger o papel dos pais e da família, invocando a liberdade de educação e, no limite, a liberdade de consciência.
Os limites do Estado, e os limites da própria liberdade, estão em discussão a partir das questões suscitadas pelos pais de duas crianças que invocam objeção de consciência perante certos conteúdos da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento.
Têm-se ouvido argumentos de muita natureza. Um dos mais usados por aqueles que se opõem à liberdade de educação e de consciência é que a cidadania não é opcional. E de facto não é. E ninguém pretende que o seja.
Mas o conceito de cidadania e do que ela implica varia. Não é conceito fechado. A sua aplicação prática difere e está sempre sob escrutínio.
Vejamos a polémica relativa à participação de António Costa na comissão de honra da candidatura de Luís Filipe Vieira.
António Costa está lá, precisamente por somar à condição de adepto, as altas funções políticas que desempenha. O primeiro-ministro pede que não se misturem os planos do político com os do cidadão. Mas neste caso foi ele que não os separou.
Separar funções políticas da implicação no universo futebolístico, tão profundamente envolvido até em casos judiciais, é uma questão de cidadania.
Parafraseando a canção de Rui Veloso, será que Arménio, o trolha da Areosa, figuraria na comissão de honra de um candidato a presidente de um grande clube desportivo? Infelizmente, penso que não. Mas para o efeito, um primeiro-ministro em exercício é um nome apetecível.
Não será eticamente exigível que os titulares de cargos públicos, no exercício das suas funções, evitem colocar-se, a eles e às instituições que servem, em posições potencialmente equívocas?
Não importam as cores políticas ou clubísticas do primeiro-ministro. Direita, esquerda, Benfica, Porto, Sporting ou qualquer outro. Tanto faz. Podia ser chefe deste governo ou de qualquer outro, adepto deste clube ou de outro qualquer. É indiferente.
Não podendo ser declarado culpado, nem devendo ser postas em causa todas as garantias de defesa de Luís Filipe Vieira, há vantagem em o primeiro-ministro se meter ao caminho neste tipo de eleições? Não pode o apoio do primeiro ministro ser interpretado objetivamente como uma pequena (?) pressão sobre quem investiga o recandidato a presidente?
Uma coisa é governar Portugal, outra é imiscuir-se no governo de instituições civis.
Uma coisa é o interesse do país, outra é o país dos interesses. Aos primeiros-ministros pede-se que zelem pelos primeiros e abdiquem dos segundos.
Não se ensinam estas questões na famosa disciplina de Cidadania e Desenvolvimento? É pena.
A ética e a cidadania implicam distinções e há escolhas que daí decorrem. Não lhe chamo republicana, nem a adjetivo de outro modo. Porque já havia ética antes da República e continuará a haver depois dela. Trata-se simplesmente de ética.
E sobre a ética e a cidadania importa instruir os mais novos. Nas pequenas e nas grandes coisas, valores como a honestidade, o respeito pelo outro, pelas suas diferenças e pelas suas convicções são bens inestimáveis. E o mesmo se diga do respeito pela integridade física de todos os seres humanos. Nestes domínios não se trata de opiniões, mas de valores transversais ao bem comum. Essas e outras devem ser as pontes que nos unem transversalmente e permitem à sociedade educar sem manipular.
Já o mesmo não se aplica à ideologia do género que o ministério da educação procura ensinar às crianças, atropelando a liberdade de consciência que a lei de bases do sistema educativo manda expressamente respeitar nos conteúdos de educação cívica e moral.
Quando se procura semear a ideologia do género na cabeça de uma criança, afundamo-nos nos planos da propaganda e da ideologia. E a Constituição - também de modo expresso - proíbe a programação da educação, de acordo com quaisquer conceções ideológicas ou filosóficas. Sejam elas quais forem.
De facto, os deputados constituintes de 1975, eleitos democraticamente pelo povo depois do 25 de Abril, não ignoravam o pluralismo ideológico e filosófico, inerente às sociedades livres. Os constituintes sabiam que na sociedade coexistem múltiplas conceções do homem e do mundo. Legítimas, mas distintas. Ao escreverem o que escreveram na Constituição quiseram assegurar que no sistema educativo português a endoutrinação seria vedada, a toda e qualquer corrente ideológica e filosófica.
A Constituição proíbe, assim, que uma parte do país tome conta da Educação, impondo a sua visão aos outros portugueses.
Infelizmente, a prática é outra. Alguns exemplos dos últimos anos são chocantes. Já tive, mas não tenho crianças em idade escolar. Se tivesse, não gostava que nas aulas de Cidadania e Desenvolvimento vestissem meninas com roupas de meninos ou o inverso e apresentassem meninos com unhas pintadas e meninas com bigodes desenhados.
E também não apreciaria que distribuíssem a crianças de 9 anos de idade – n o v e! - um inquérito em que se lhes perguntava se já se tinham sentido atraídas por homens, mulheres ou ambos.
E teria a maior dificuldade em aceitar que as turmas dos meus filhos fossem convidadas, no âmbito da mesma disciplina, a participarem numa ação destinada a financiar uma organização LGBT.
E jamais compreenderia que uma filha de cinco anos de idade, fosse criticada por escrito, pela professora, na respetiva informação escolar, pelo facto de a criança ter dificuldade em aceitar, pasme-se, a igualdade de género.
No entanto, tudo isso se passa nalgumas aulas de Cidadania e Desenvolvimento, em diferentes agrupamentos escolares de Portugal.
Dir-me-ão que tal depende das escolas e dos professores e que o ministério da educação lava daí as suas mãos. Pois depende e de facto, lava. Mas não sendo matérias científicas e estando os professores compelidos pelo Governo a transmitir determinados conteúdos, fazem-no orientando a disciplina pelas suas próprias convicções.
Sucede que a maior parte dos professores (também vítimas deste sistema) não estão a ensinar matérias científicas para as quais estudaram e se prepararam ao longo dos anos: Português, Matemática, Geografia, Física, Biologia e por aí fora. Nesses domínios científicos devem ter toda a jurisdição que a sua preparação profissional justifica.
Mas no caso dos conteúdos de Cidadania e Desenvolvimento trata-se de áreas não científicas, ensinadas a partir das grandes opções do ministério, desenvolvidas em sala de aula com base nas convicções pessoais de alguns professores. Têm direito a essas opiniões, mas elas não são necessariamente ‘educativas’ nem podem pesar mais do que as convicções dos próprios pais das crianças, menores de idade.
Respeito que haja pais a conviver harmoniosamente com este sistema e com as opções diferentes que daí resultam. Mas não são as minhas nem as de muitos outros pais. E não merecem menos respeito, por isso.
Ninguém defende que a cidadania seja opcional. Mas sendo a cidadania indispensável – e nisso estamos todos de acordo – ela é suscetível de ser ensinada sem perturbar a liberdade e as convicções de cada um. O que se pretende impor nesta disciplina não é a cidadania, mas um modo específico e único de a entender. Como se houvesse apenas um só caminho para formar cidadãos responsáveis e esclarecidos. Como se um pensamento monolítico pudesse alguma vez desenvolver o espírito crítico e a verdadeira cidadania entre os mais novos.
No fundo, o que os promotores da disciplina Cidadania e Desenvolvimento defendem é que temos toda a liberdade de pensar… desde que pensemos como eles. Mais do que isso é que não. Tenham paciência: o ministério português da educação inventou a única forma admissível de ensinar a cidadania aos jovens portugueses. Tudo o mais é censurável, impertinente e deve ser eliminado.
Na verdade, ao ler e ouvir alguns dos mais ortodoxos defensores da disciplina Cidadania e Desenvolvimento, descubro-os genuinamente incomodados com esta desfaçatez de haver quem defenda outros modos de promover a cidadania e o esclarecimento dos mais novos. Nem pensar. Tudo o que seja não injetar a ideologia do género nas crianças não passa no lápis azul dos paladinos do pensamento único.
O pensamento doutrinal e ortodoxo, veiculado pelo Estado como expressão da única verdade admitida, é próprio dos regimes de extrema-direita e de extrema-esquerda. Pelo contrário, em democracia, a liberdade de consciência deve ser acolhida como inegociável e aceite como irrenunciável.
Para cúmulo, nos últimos dias ficámos a conhecer o pensamento de Dulce Rocha, procuradora que já foi presidente da Comissão Nacional de Proteção das Crianças e Jovens em Risco e que hoje dirige o Instituto de Apoio à Criança.
Dulce Rocha desafiou o ministério da educação a encontrar alternativas ao ‘chumbo’ dos alunos de Famalicão. Embora a título pessoal, diz Dulce Rocha que uma alternativa seria inquirir os alunos quando completassem 16 anos de idade. E se nessa altura continuassem a pensar como os pais, isto é, se mantivessem a recusa em que lhes sejam ministrados os conteúdos em causa, a Procuradora lançou uma alternativa sugestiva: nessa altura, as crianças seriam pura e simplesmente impedidas de aceder ao ensino universitário público.
Aí está: a chantagem como argumento, para vergar o pensamento. Estamos conversados quanto à cidadania que nos pretendem impor?