'Helena', nome fictício, está na esquadra da PSP. Hoje mais tranquila do que há um mês, quando decidiu apresentar queixa contra o companheiro com quem vivia há mais de dez anos.
Chega ao Gabinete de Apoio e Informação à Vítima (GAIV) da PSP do Porto acompanhada por uma técnica da casa abrigo onde vive desde então. Vêm com o propósito de ir buscar os seus pertences à casa onde vivia com o companheiro e a família dele. A PSP vai acompanhá-las, para garantir que tudo decorre com segurança.
Escolheram o dia a dedo. Um dia em que, por norma, ele não está em casa. 'Helena' pediu que assim fosse, porque ficava demasiado ansiosa só de pensar em reencontrá-lo.
Seguem - 'Helena', a técnica e dois agentes - no carro da PSP. Entra no prédio acompanhada pela polícia. A técnica e o outro agente da PSP esperam cá fora. Estão alerta para o caso de algo correr mal.
Desta vez, foi tudo tranquilo. Sai com duas malas grandes e dois sacos, que já tinham sido arrumados pela família do agressor. Não sabe bem se está lá dentro tudo o que precisa - especialmente documentos - mas, para já, é tudo o que consegue levar.
Ações como esta fazem parte do dia a dia da agente Ana Rosa. É o chamado acompanhamento pós-denúncia, no qual a PSP mantém o contacto com a vítima através telefonemas ou pessoalmente - Ana Rosa até já se encontrou com vítimas em transportes públicos e centros comerciais -, ajuda na retirada de bens, tenta dar resposta aos requisitos do Ministério Público (recolha de provas ou testemunhas), ou acompanha as vítimas aos tribunais, nos casos mais complicados.
Dez anos violentos
'Helena' não é portuguesa e é por isso que está tão preocupada com os documentos. Precisa deles para o processo da guarda da filha e para legalizar a sua situação no país.
E foi dessa situação vulnerável que o companheiro se aproveitou para chantageá-la. Depois de vários anos complicados - com episódios de violência física - e de "acreditar várias vezes que as coisas podiam mudar", 'Helena' chegou ao limite.
Quando decidiu pôr fim à relação de quase uma década "as coisas não correram bem e tomaram uma proporção que não imaginava". "Passei a sofrer ameaças, inclusive uma ameaça de morte que me pareceu muito possível", conta-nos.
O limite foi atingido quando o companheiro ameaçou separá-la da filha.
"Nunca senti tanto medo das palavras dele"
Foi aí que ganhou coragem, com a ajuda de amigos próximos. "Apoiaram-me em todos os momentos e ofereceram-me abrigo na noite em que eu tive mais medo". Na companhia dos amigos, deslocou-se à União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR), uma associação de apoio à vítima. "Sozinha, talvez não tivesse coragem", confessa.
Polícia, “a tábua de salvamento”
Ao GAIV chegam quase todos os dias histórias com contornos semelhantes de pessoas que “veêm na polícia uma tábua de salvamento”, diz o chefe Fernando Rodrigues, coordenador deste gabinete. “Acima de tudo, o que as vítimas nos pedem não é que os agressores sejam presos, é que deixem de praticar aquela violência”, relata.
A agente Ana Rosa corrobora: “Quando elas chegam cá nem sempre querem uma denúncia, querem que ele deixe de beber álcool. Dizem: ‘Eu gosto do pai dos meus filhos, mas não gosto dele violento, eu gosto do homem com quem me casei'".
O GAIV foi criado há seis anos, pela necessidade de ter agentes mais especializados a lidar com estes casos. Conta com 16 agentes, dois dos quais mulheres, e funciona 24 horas por dia. Desde então, já foram atendidas mais de 10 mil vítimas.
Os registos revelam que são sobretudo vítimas de violência psicológica, “aquela que não deixa marcas” e que se torna mais difícil de provar.
“Estamos a falar de um crime que, na maior parte das vezes, é feito dentro de casa, sem testemunhas e, portanto, é normal ter dificuldade na prova. E o sistema judicial português funciona com provas e com a presunção de inocência”, esclarece Ana Rosa, que deixa um conselho: “é importante é não apagar mensagens e fotografias”.
Provas e depoimentos são recolhidos – com o consentimento da vítima – logo no ato da denúncia. E também nesse momento que é feita uma avaliação de risco e elaborado um plano de segurança para a vítima, explica o chefe Rodrigues.
Quando 'Helena' fez essa avaliação, as autoridades determinaram que corria um grande risco se regressasse a casa. Logo de seguida foi encaminhada para uma casa de emergência que a acolheu, juntamente com a filha de quatro anos.
"Fiquei surpreendida. Não esperava ser encaminhada para uma casa de emergência. Imaginei que me dessem alguma orientação em relação aos riscos e ao processo burocrático e voltaria para casa”, diz.
Ana Rosa, agente no GAIV há cinco anos, constata que falta passar esta mensagem de que “nem tudo é mau, temos muitos casos de sucesso”.
Exemplo disso, acrescenta o chefe Rodrigues, é precisamente este gabinete no Porto. “Em seis anos, das mais de 10 mil vítimas que aqui acompanhamos, felizmente ainda nenhuma fez parte desses números trágicos”, afirma.
Os números trágicos de que fala são as vítimas mortais de violência doméstica. Em 2018, a União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR) registou 28 casos de mulheres assassinadas, mais oito do que no ano anterior. Desde o início de 2019, já morreram mais de uma dezena de vítimas, incluindo uma criança.
"Sei que provavelmente ele vai ter uma pena branda”
'Helena' está com a filha numa casa abrigo, longe do local onde antes vivia. Ambas estão a receber apoio psicológico.
A liberdade, diz, ainda é “uma sensação estranha”. “É bom estar livre, mas ainda não sei lidar com isso. Dez anos é muito tempo. Eu era privada de tanta coisa, até me privava de pensar certas coisas e agora já não tenho que fazer isso. Posso pensar e fazer o que quiser. Ainda estou a assimilar isso", confessa.
“É bom estar livre, mas ainda não sei lidar com isso”
O futuro pessoal e profissional é uma incógnita, até porque teve que se afastar de alguns projetos profissionais em que estava envolvida. Gostava de continuar em Portugal, porque tem perspetivas de trabalho cá, mas não exclui a possibilidade de regressar à terra natal. "Era melhor para a minha filha crescer aqui”, acrescenta.
Tudo depende do desfecho do processo. Contudo, diz não ter grandes ilusões “de que ele tenha a punição que merece”. “Muito provavelmente vai ter uma pena branda até porque, em Portugal, não houve nenhuma agressão física, não há testemunhas das ameaças”. 'Helena' tem algumas provas, mas não sabe se serão suficientes.
“O que eu espero é que ele me deixe em paz, que não me atormente e permita que eu siga a minha vida. Isso já significava muito para mim”. Nem que seja com recurso à pulseira eletrónica, remata.
Sentada a seu lado, Carla, a técnica superior de educação social da casa abrigo que a acompanha, acena com a cabeça. Já perdeu a conta às vítimas que conheceu, cada uma com uma história diferente.
Acompanha todo o processo, até aos tribunais. Se numa primeira fase, a articulação com as várias instituições de apoio à vítima e com as autoridades até funciona bem, “nos tribunais a situação ainda é um bocadinho difícil”.
Por vezes, conta-nos, o papel da vítima é posto em causa no tribunal. “Para quem está de fora é muito difícil perceber porque é que passado dez ou quinze anos e depois de ter sido ameaçada inúmeras vezes, sai de casa só porque ele a insultou”, diz.
Contudo, relata-nos também existem situações de “pessoas que usaram a questão da violência doméstica para atingir outros fins”.
“Eu estive numa audiência em que a procuradora disse 'é por estas situações que depois nós não damos a importância devida aos factos de real violência doméstica'”, conta.