É das primeiras a acordar na Gare do Oriente.
Levanta energicamente as mantas e edredões que a cobrem e, num ápice, está de pé. Desembrulha o corpo de um poncho de lã meio rasgado, que a cobriu durante a noite, atira tudo para dentro de um grande saco de serapilheira e eis que está pronta para ir para o trabalho. Não sem antes puxar de uma pequena garrafa de água. Molha o cabelo e começa a pentear-se. Lava depois a cara, bochecha a boca com um elixir barato, mas suficiente para eliminar o hálito, e cospe para um caixote do lixo.
É nessa altura que, ainda junto ao caixote, inicia um diálogo com alguém. Mesmo não estando ninguém por perto. Esbraceja, argumenta, gesticula e dá um pequeno grito, imediatamente abafado pela própria, antes de acender um cigarro. Agora mais tranquila, pega no saco e sai da grande nave de acesso aos parques de estacionamento.
Passou a noite num dos catorze bancos com cerca de vinte metros de comprimento, onde, habitualmente, conseguem dormir entre oito e dez pessoas, dependendo do número de malas ou sacos que cada um tem. Seja como for, os bancos estão cheios. Bem mais de uma centena de pessoas passou ali a noite.
Entre eles está um casal de meia-idade. Tal como os outros, não quer dar entrevistas. Uns alegam falta de tempo, outros explicam que ainda há familiares que não sabem da sua condição. Outros pedem uma moeda como condição prévia para dar entrevistas e, vendo-se com uma moeda na mão, afastam-se.
O casal acorda. Ela, de cabelo grisalho e comprido, está a tentar que o marido, que sofreu um AVC há uns anos, vista um casaco, antes de irem comer alguma coisa num café das proximidades. Perderam a casa quando o senhorio decidiu duplicar a renda.
À procura de uma ponta de cigarro que ainda dê para fumar está uma mulher que também dormiu por ali e que aparenta uns quarenta anos. Pede uma moeda para o pequeno-almoço a quem por ali passa, a caminho do Metropolitano e, aos que a recusam, sai-lhe da boca um chorrilho de palavrões, disparado sem alvo concreto.
"Catorze bancos com cerca de vinte metros de comprimento: estão cheios"
Do outro lado da grande nave, está Amrik, que aponta o dedo indicador à cabeça, ajudando a explicar que é louca.
Amrik também ocupou parte de um dos bancos. Está a esticar duas mantas onde dormiu para no meio colocar os seus pertences e dali fazer uma trouxa. Sai, por breves instantes e regressa já com a cara lavada e o cabelo ajeitado.
Não é um "sem-abrigo tradicional". As roupas estão limpas. Jeans azuis imaculados, com dobra na bainha, ténis brancos, camisa xadrez e casaco de penas azul. Preocupa-se com a imagem e garante não ter vícios. Não aparenta tê-los.
Fala mal português, mas lá consegue explicar o essencial: é natural do estado indiano do Punjab e está em Portugal há três anos. Trabalhou sempre na construção civil e conseguiu pagar um quarto para viver. Foi enviando dinheiro para a família, sempre que podia, o que lhes permitiu ter uma vida mais desafogada.
Até que este ano, há seis meses, trocou de empresa. Diz que o patrão não lhe pagou nenhum ordenado, e por estar ilegal em Portugal, nada quis fazer. Deixou de pagar o quarto, foi posto na rua e, agora, tenta a custo conseguir um emprego.
"Estava deitada. Levantou-se, arranjou-se, arrumou a caminha, pegou na mochila e toca a andar". A descrição é de Beatriz Libório, uma Testemunha de Jeová que se prepara para instalar uma banca onde vai transmitir a palavra de Deus.
"Até se via pela estrutura e pela face da pessoa que outrora, viveu bem. E que devido a uma circunstância da vida está aqui a dormir".
Beatriz acompanha a atualidade. Lamenta que se gaste tanto dinheiro em armamento para levar a cabo guerras como a da Ucrânia e no Médio Oriente, entre o Hamas e Israel, "para matar o próximo", e não haja dinheiro para ajudar seres humanos que precisam de ajuda.
"Vimos que há aqui pessoas de todas as idades", diz, emocionada, Susana Marques, que está a caminho do Metropolitano com uma colega.
Está emocionada. "Sim, claro, é para estar. Sou mãe, também tenho família e isto emociona qualquer pessoa". Enquanto ajeita o cachecol, Susana exige mais apoio para estes sem-abrigo.
"Acho que o nosso governo devia pôr os olhos nisto e ajudar". Porque, diz, nota-se que "há aqui muita gente que sai daqui para o seu local de trabalho. É muito triste esta situação", provocada pelas rendas "elevadíssimas", numa altura em que "não se consegue pagar uma renda com um ordenado".
Susana está acompanhada de uma colega de trabalho, que com ela faz diariamente o mesmo trajeto. Descem do comboio, lá em cima, para vir cá apanhar o Metropolitano, a caminho do emprego.
"Aumentou o número de pessoas aqui. Mas muito mesmo. Não estou a falar de mais vinte ou trinta", assegura Telma Rodrigues, para quem custa ter de lidar com o cenário.
"Muito, porque vejo que há aqui pessoas que são recorrentes. Que têm a sua vida e vivem aqui neste sítio".
Mas Telma sabe que não é só a nave de acesso ao estacionamento da Gare do Oriente que se enche, ao final do dia, com pessoas que ali pretendem passar a noite.
"O Largo da Igreja, ali na Almirante Reis. Aquilo parece um parque de campismo, com pessoas a viver em tendas, ao relento, ao lado de lixo. Pessoas sem o mínimo de condições de vida".
O Jardim António Feijó, mais conhecido pelo nome de Jardim dos Anjos, parece de facto um parque de campismo. Numa das laterais do Jardim em torno da Igreja dos Anjos estão montadas mais de 15 tendas, muitas delas em cima de paletes. Por entre o pouco espaço que as separa, lixo.
Num dos cantos do Jardim, um fogareiro aceso aquece dois homens. Ainda é muito cedo, mas um deles já está de pacote de vinho na mão. Olham com desconfiança. De uma das tendas sai uma mulher, embrulhada em mantas, que de imediato diz que não dá entrevistas. A não ser que "haja por ai uma moedinha". Só se cai na esparrela uma vez...
Não muito longe dali e junto a outra Igreja, enormes caixas de cartão abertas a meio e apoiadas numa árvore formam uma espécie de tenda instalada no pequeno jardim frente á Igreja de Arroios. No interior, mais cartão, mantas e um saco-cama.
O cartão também é um dos principais materiais usado na cerca de meia dúzia de abrigos improvisados instalados num baldio, ao fundo da Calçada da Picheleira, às Olaias. E para "amolecer" o chão onde dormem embrulhados em mantas outros quinze outros sem-abrigo, frente à Estação Fluvial do Cais do Sodré.
"Bebem muito, acabam por andar ao soco uns aos outros por causa de um pacote de vinho, como vi várias vezes ali ao pé do supermercado da estação. Mas com as obras, vieram todos para aqui", indica Adelaide Santos, que como todos os dias, atravessou o Tejo e está a caminho do trabalho.
"Já houve aí muita tenda montada. Também aqui já vi idosos, a seguir á pandemia. Dava dó ver essas pessoas a pedir comida, no meio da rua".