Mais de 24 horas antes de o prazo acabar, os Estados Unidos deram por concluída a retirada do Afeganistão, um processo que deixa marcas na credibilidade de Washington e que abre as portas a uma nova conjuntura política, com novas ameaças.
O antigo secretário de Estado dos Assuntos Europeus Bruno Maçães admite a existência de um sério risco de vir aí uma Al-Qaeda 3.0 com a Europa na mira.
“Julgo que a Europa está mais vulnerável do que os Estados Unidos”, porque “nós não temos o mesmo sistema de contraterrorismo que foi desenvolvido pelos Estados Unidos e que funciona, e estamos mais expostos geograficamente também”, diz à Renascença.
“É um problema que ainda não foi muito discutido na Europa, mas que me parece real”, reforça.
Os norte-americanos saíram e deixaram para trás, além de alguns nacionais, milhares de armas de todos os tipos, aviões, helicópteros e carros de combate, parte das quais irão acabar nas mãos de grupos armados - alguns militantes islâmicos, outros não.
“É óbvio que vão ser todas aproveitadas pelos talibãs”, considera o antigo secretário de Estado. “São 85 mil milhões de dólares em armamento”, acrescenta, alertando que “o que está a acontecer - e é possível que seja um cenário para o futuro - é um governo talibã com uma insurgência de Estado Islâmico, o que é um cenário ainda pior do que imaginado há umas semanas”.
Na opinião de Bruno Maçães, também investigador do Instituto Hudson, não há dúvida de que a imagem dos Estados Unidos vai ser afetada com esta retirada do Afeganistão – afinal, os serviços de informação norte-americanos falharam redondamente na previsão do que viria a acontecer.
“De facto, para quem estava em Cabul era muito fácil perceber que faltavam poucos dias para os talibãs chegarem, menos de uma semana certamente e todos sabíamos isso – jornalistas, pessoas das embaixadas, homens de negócios locais e discutíamos apenas o dia exato - e a verdade é que o sistema americano de inteligência falhou de um modo estrondoso e isso tem um efeito ao nível das relações internacionais, porque há um golpe no prestígio americano”, analisa.
O fim da presença norte-americana no Afeganistão foi anunciado às 20h30 (hora de Lisboa). “É uma partida muito pesarosa. Não conseguimos retirar toda a gente que queríamos", afirmou o General Keneth McKenzie no Pentágono.
Nova diplomacia: “America first”
O Secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, fala de um novo capítulo da história entre os EUA e o Afeganistão. Não afasta eventuais compromissos com o novo Governo de Cabul, mas sob condições.
“Qualquer envolvimento com o governo liderado pelos talibãs em Cabul será movido por apenas uma coisa: os nossos interesses nacionais vitais norte-americanos”, garantiu, acrescentando que “os Estados Unidos podem trabalhar com o novo governo afegão, de forma a proteger os novos interesses americanos, a trazer estabilidade para a região e a preservar os ganhos das últimas das últimas duas décadas”.
Blinken avisou ainda que “cada passo que dermos terá como base, não o que o Governo talibã disser, mas as suas ações. Terão de ser respeitados o povo afegão, as minorias e os compromissos políticos”.
Em Portugal, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, espera que os talibãs cumpram as promessas e continuem a permitir a saída de estrangeiros e afegãos do país.
“A questão mais importante que esta saída coloca é as questões de operação do aeroporto de Cabul para garantir a saída daqueles afegãos que queiram sair do Afeganistão. Há um compromisso verbal do lado dos talibãs de que não se oporão e é necessário que essa declaração seja agora cumprida”, afirmou.