Chama-se Paula e é simplesmente uma mãe coragem. Uma mulher que sofre a pior das dores: a perda da filha, uma jovem mulher, assassinada de forma horrivelmente violenta, às mãos de um colega de mestrado. A mãe da Beatriz Lebre assinou, esta segunda feira, no Público, um artigo que deveria ser de leitura obrigatória para todos os jornalistas. Diria mais, para todos os produtores de conteúdos de informação, ou entretenimento, dos grandes e dos pequenos meios de comunicação social. Dos estagiários aos diretores todos somos visados.
Não no mesmo grau. Uns mais, outros menos, mas todos. Os que acabamos cúmplices, por ação ou omissão, de uma espécie de praga que percorre as secções de sociedade (antes chamávamos-lhes, mais cruamente, as notícias de “crime”) das TV’s, das rádios, dos jornais. De todos os que escolhem as aberturas dos telejornais, às primeiras páginas das notícias, mesmo as “mais breves das breves” ou dos espaços onde se fala e alinham referências macabras de violência pura.
Sobretudo daqueles espaços onde alguns tentam fazer perdurar a narrativa mórbida, ou daqueles onde, na leveza com que colocamos um ponto final no caso, mesmo em registo sóbrio, dizendo apenas q.b., mas sem nos indignarmos com os outros que passam as linhas vermelhas, da exploração da dor e da desgraça alheia, ávidos da violência macabra com que se alimentam as audiências sedentas de sangue fresco em cada manhã ou a cada noite.
As máquinas do medo, que se prolongam nas ondas, ou rodam com as rotativas e nos convencem que o mundo, lá fora, são um espaço perigoso e triste onde nem mesmo a polícia (se pensarmos em casos como os do malogrado americano Floyd) nos conseguem proteger do lobo mau.
Nos tempos que correm cria-se a falsa ideia de que nos espreitam todas as câmaras, todos os ecrãs, espiando os passos em falso, as nossas imprudências, os excessos de confiança que nos fazem ver nos outros, sobretudo nos mais próximos, gente em quem já não devemos e podemos confiar. Homens e mulheres como nós. E essa gente normal a quem se abre a porta a qualquer hora com o simples intuito de ajudar é felizmente a maioria como nos lembra a Paula.
Onde está o mal? Está na “romantização” da violência como lhe chama, e bem, a mãe da Beatriz, no texto escorreito e simples que vai direto, ao ponto, para nos fazer pensar. Que interessa se a relação entre a vítima e o assassino era, tinha sido ou poderia vir a ser, ou não, uma relação do tipo amoroso? Que importam as mensagens trocadas com os amigos na intimidade do telemóvel da vítima? No momento do crime era, tão só, uma relação em que a violência reduz a humanidade à crueldade mais animal. Nada justifica, nada pode explicar, a bestialidade da maldade em estado puro.
Não se trata apenas de não fazer o mínimo. Na hora da morte, não manchar a reputação da vítima vitimizando-a duplamente, preservando-lhe a memória e deixando a família em paz na hora do luto. Trata-se, tão só, de não induzir nem branquear uma leitura distorcida e desculpabilizante da atitude desumana e cruel do agressor.
Paula lembra, e bem, que mesmo que a vítima fosse “uma mulher da rua” (as palavras são dela!) enquanto vitima ela não teria menos direito à condenação pura e simples da barbárie cometida pelo assassino sem mas, nem meio mas.
Ao vasculhar na vida privada da morta o que se faz é tentar arranjar pretensas justificações para um ato que não pode ter justificação (o ciúme, a não aceitação do fim de uma relação mesmo quando ela existe, a não correspondência a um “pretenso” amor do assassino, a incapacidade deste de lidar com a frustração). Tudo isso podem ser elementos de interesse policial e judicial, mas não são certamente de interesse público. São só de interesse “do público”. Preso ao buraco da fechadura para qual o empurram no engodo de poder espreitar.
Todas as circunstâncias podem e devem ser atendíveis, em tribunal , vistas até como eventuais atenuantes da culpa objetiva sobretudo se minarem, ou impedirem, o claro discernimento por parte do agressor ou inclusivamente o tornarem “ inimputável” por sofrer de um distúrbio psiquiátrico mas não cabe aos jornalistas induzirem ou procurarem uma desculpabilização quase sempre preconceituosa nesse relato.
Quantos de nós nos damos conta de que ao dizer que o agressor cometeu um crime especialmente violento porque tinha com a vítima uma relação de proximidade ou amorosa estamos a induzir, em quem nos leu ou ouviu, conclusões do tipo “ele lá teria as suas razões? Não gostou de ser traído, ela não teve cuidado, quem abre a porta a um estranho àquela hora, porque foi com ele até àquele sítio, porque se drogou, ou porque bebeu…” como se a vitima fosse simultaneamente culpada da sua própria morte, mesmo por ingenuidade, excesso de confiança ou imprudência?
Para Paula Lebre Beatriz é a filha que perdeu às mãos de um assassino sem escrúpulos, nem desculpas, sem ponta de humanidade ou sequer de compaixão pelo outro. A justiça dirá se nele havia, ou não, uma ponta de humanidade (recordo as homilias do Padre Dâmaso em que nos dizia, a todos, os que nos consideramos incapazes de cometer crimes, como estes, que era atrás das grades que tinha conhecido muitos homens bons de toda uma vida apanhados nas malhas de uns minutos maus). Ali, a cumprir pena, estava muita gente tão boa e tão normal como qualquer um de nós. Acredito.
Seja como for, aos jornalistas cabe relatar a morte da vítima e lembrar os princípios de respeito que nos fazem viver seguros, em sociedade, sem cair na morbidez sensacionalista que quase sempre comete um segundo assassínio da vítima: depois da morte física a morte de carácter. A morte que nos leva um filho não pode ter direito a roubar-nos e a levar, com ela, também a memória guardada. A troco de mais uns milhares de audiência ou meia dúzia de jornais vendidos. Antes de relatar estes casos talvez ajude pensar: “E se fosse consigo?”