O ataque de Abdul Bashir, o refugiado afegão que na terça-feira provocou a morte a duas mulheres no Centro Ismaili, em Lisboa, pode ter resultado de “um surto psicótico” mas “só uma perícia psiquiátrica poderá avaliar”, disse o diretor nacional da Polícia Judiciária. No entanto, Fernando Vieira, psiquiatra forense do Serviço Regional de Psiquiatria Forense no Hospital Júlio de Matos, do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa, defende que “não faz muito sentido começar a fazer perícias sem se perceber se a pessoa está ou não doente”.
“Mais do que uma situação de perícia, o que temos que perceber é que se a pessoa tem uma doença e se tem, a pessoa tem que ser tratada dessa doença”, explica. “As perícias vêm sempre depois, têm o seu tempo”. "Só quando a situação médica está resolvida ou em vias de resolução ou mesmo quando já não é prioritária, então sim, uma perícia vai perceber se o que é que se passou, para efeitos legais”, esclarece o psiquiatra à Renascença.
A verdade é que “se estivermos a pensar numa fase mais à frente, nomeadamente para o tribunal, pouco importa se a pessoa está ou não doente. Interessa é perceber se essa doença está relacionada com aquele facto, porque geralmente as coisas têm uma razão e, portanto, há que haver toda uma investigação”, diz Fernando Vieira.
Mas o que é um surto psicótico?
“Um surto
psicótico é um corte com a realidade. Falamos em surto psicótico quando a
realidade objetiva é confundida com a realidade subjetiva”, explica. Mas não
significa que um episódio se “refira a uma doença em concreto” porque “pode aparecer subitamente”. Mas, por outro lado, “também poderá aparecer
de uma forma insidiosa, progressiva, ou pode aparecer através de uma sensação
de estranheza de que algo está a acontecer”, explica o psiquiatra à
Renascença.
Fernando Vieira dá um exemplo. “Uma pessoa, ao achar que está a ser perseguida e se estivermos perante um episódio psicótico, a pessoa não se acha perseguida, a pessoa tem a certeza que está perseguida. Um delírio não é uma dúvida, um delírio é uma certeza. Quando isso acontece, a pessoa pode agir em conformidade com a sua realidade”. De facto, “poderá efetivamente existir episódios com violência, onde as pessoas acham que estão a ser perseguidas e reagirem em conformidade para se defenderem”.
Segundo o que avançou à Renascença, José da Câmara, presidente da junta de freguesia de S. Domingos de Benfica, onde está localizado centro e também já confirmado por Omed Taeri, responsável pela comunidade afegã em Portugal, o suspeito sofreria de “problemas psicológicos” desde que chegou ao país.
No entanto, Fernando Vieira salienta que, quando se trata de um surto psicótico, “não se pode ser taxativo e dizer que a pessoa teve um episódio porque estava doente”, uma vez que “pode haver episódios psicóticos que não sejam provocados por uma doença mental”, como é o caso do uso “de substâncias, por exemplo drogas” ou outros “tipos de medicamentos”.
O que é ser inimputável?
Depois do ataque ao Centro Ismaelita e na sequência das avaliações psicológicas a que o suspeito será sujeito, surge a questão da possível inimputabilidade.
“A inimputabilidade é a irresponsabilidade criminal, neste caso, é razão da doença. Nós dizemos que a pessoa é inimputável quando, em razão de doença, ela não é responsável por aquilo que fez”, clarifica Fernando Vieira. “Tem de que haver uma relação entre a doença e o tal facto, crime ou ilícito que a pessoa concretizou”.
“Nós falamos em inimputabilidade quando existe uma doença, uma anomalia psíquica, nos termos legais atuais, que vai destruir as conexões lógicas de sentido, entre um agente e o facto, de tal modo imoral, que o facto não pode ser compreendido na pessoa daquele agente”, afirma o psiquiatra forense.
Porém, Fernando Vieira sublinha que é necessário uma investigação e avaliação psiquiátrica para aferir a origem de um possível crime, porque “à partida, uma pessoa com um surto psicótico pode ser imputável ou inimputável. Tudo depende do facto e do que é que a doença a fez fazer”.
No caso do ataque em Lisboa, o agressor espera agora alta hospitalar, que só deverá acontecer depois de um período de 10 dias, para ser mais tarde submetido a interrogatório pelo juiz de instrução.