Sneška Quaedvlieg–Mihailović nasceu em Belgrado, na antiga Jugoslávia. Recorda ainda hoje como os bombardeamentos em Dubrovnik a fizeram despertar para a necessidade de proteger o património. 30 anos depois, custa-lhe acreditar como a História se repete. Agora, é secretária-geral da Europa Nostra, a voz do património na Europa, e denuncia o ataque aos valores europeus que está a acontecer na Ucrânia.
Em entrevista à Renascença, Sneška Quaedvlieg–Mihailović lembra que “há na Europa um património intangível”. Esse património são valores como “o compromisso com a paz, a democracia, direitos humanos e cumprimento das leis”.
Segundo a sua opinião crítica, “a guerra que a Rússia está a fazer na Ucrânia é a negação de todos estes valores”. Recordando a primeira declaração que a Europa Nostra emitiu um dia depois do início da invasão do exército russo pelas fronteiras ucranianas, refere: “é por isso que dissemos que esta não é uma guerra da Ucrânia. É uma guerra de todos os que estejam comprometidos, defendam e estimem esses valores”.
Esta quinta-feira, a Europa Nostra vai reunir o seu conselho de administração. Do encontro deverá sair uma declaração em que esta organização apela a um maior compromisso na defesa de vidas, mas também do património, por parte das instituições europeias.
“Vamos claramente emitir uma declaração forte em que dizemos que o património ucraniano é hoje o mais ameaçado da Europa. É também por isso que vamos pedir à União Europeia que, junto com a ajuda humanitária, seja também atribuída uma verba importante para os profissionais do património e cidadãos que estão agora na Ucrânia a debater-se e a fazer tudo o que podem para proteger o património dos ataques do exército russo”, explicita.
Numa altura em que diretores de museus em lágrimas e equipas guardam os quadros e a população embrulha as estátuas nas ruas para evitar que sejam despedaçadas, a secretária-geral Sneška Quaedvlieg–Mihailović diz que não tem conseguido contactar um dos membros do conselho do Europa Nostra que vive na Ucrânia.
“Troquei mensagens por WhatsApp com a nossa membro do conselho que está em Kiev, Natalia Moussienko, mas ela está agora com a sua mãe de 80 anos, e na maior parte das vezes está em abrigos o que torna difícil comunicarmos”, conta.
UNESCO pressionada para não reunir na Rússia
Lembrando que “são imensas as agressões contra o património” que estão a acontecer na Ucrânia, até porque “muitas das cidades ucranianas são como as europeias, cheias de património”, a secretária-geral da Europa Nostra fala de uma “responsabilidade partilhada de proteger o património, seja em paz ou guerra”.
A Ucrânia tem hoje sete locais classificados como Património Mundial pela UNESCO. Um deles é a Catedral de Santa Sofia, em Kiev.
Questionada sobre como proteger um edifício de ataques destrutivos como os que têm sido feitos pelas tropas de Moscovo, Sneška Quaedvlieg–Mihailović lembra que “a Catedral de Kiev é um edifício incrível” e que “é sempre mais difícil proteger um edifício inteiro. Poderão pôr a salvo objetos, mas se o exército russo quiser atingir aquela catedral, será muito difícil protegê-la”.
Sobre o rasto de devastação deixado em pouco mais de uma semana de ação militar do regime de Putin, a responsável da Europa Nostra denuncia a violação de convenções como a de Haia, instituída na sequência da Segunda Guerra Mundial.
“Essa convenção proibia o ataque ao património cultural em ataques armados. Vemos claramente que o exército russo e a sua liderança optou por uma invasão com uma destruição brutal, não só contra alvos militares, como edifícios civis e património cultural. É claramente uma violação da Convenção de Haia e da Convenção do Património Mundial”, esta última está a completar 50 anos de existência.
“Paradoxalmente”, como classifica Sneška Quaedvlieg–Mihailović, está previsto que a Rússia seja o país anfitrião da próxima reunião do Comité do Património da UNESCO. Mas a Europa Nostra junta a sua voz à de outros países que não querem ir a Kazam – cidade russa também classificada como Património Mundial pela UNESCO -, de 19 a 30 de junho.
“Há agora, obviamente, um número crescente de vozes que pedem à UNESCO que seja alterada a localização do Comité do Património, este ano. Definitivamente não deve acontecer na Rússia, em Kazan. Deverá ter lugar em Paris, ou em outro local. Também a Europa Nostra irá comunicar à UNESCO a sua forte oposição a que seja permitido à federação russa ser a anfitriã da reunião do Comité do Património Mundial”, indica a responsável daquele organismo.
Sneška Quaedvlieg–Mihailović, que pede à autarquia de Lisboa que una a sua voz nesta defesa do património da Ucrânia, refere que o autarca Carlos Moedas manifestou vontade de trabalhar de forma próxima com a Europa Nostra.
Nesta entrevista à Renascença, esta responsável fez questão também de sublinhar como a Europa Nostra está também solidária com a população russa “que se opõe à guerra” e que “enfrenta 20 anos de prisão” pela coragem de ser uma voz crítica ao Kremlin.