O polígono militar de Tancos entrou para a história de Portugal em 1916-17, quando o então ministro da Defesa, Norton de Matos, ali preparou em tempo recorde o Corpo Expedicionário Português a enviar para a Flandres, durante a I Guerra Mundial. À operação chamou-se o “milagre” de Tancos e, apesar do massacre do CEP no conflito europeu, a expressão entrou na hagiografia do regime republicano, elogiando a capacidade militar para servir a pátria. Cem anos volvidos, Tancos proporcionou aos portugueses um segundo “milagre”.
Houve ali um roubo de armas, em junho de 2017, que causou justificado alarme nacional e internacional, numa época de globalização do terrorismo; quatro meses volvidos, houve um “milagre”: as armas reapareceram, prontas a serem devolvidas a quem as tinha mal vigiadas. Parecia o final feliz da história. Na verdade, foi só o começo de uma outra história, em que a mão milagrosa que fez reaparecer o material roubado está longe de exibir a honradez bem-intencionada de outrora. Este “milagre” queima e toda a gente se quer distanciar dele.
O roubo, feito por um ex-militar assustadiço com cúmplices menores, já quase não interessa. O caso está na devolução “milagrosa” das armas. Ao que parece, tudo não passou de uma pantomina montada pela Polícia Judiciária Militar, que encenou o “milagre” e que o reportou ao tenente-general Martins Pereira, chefe de gabinete do ministro da Defesa. De facto, aquele confirma que se encontrou com o major Vasco Brazão e com o coronel Luís Vieira (porta-voz e diretor-geral da PJM, respetivamente) e que terá disto informado, por telefone, o ministro da Defesa. Azeredo Lopes, embora continuando a negar ter tido qualquer conhecimento daquela rocambolesca encenação – e ao cabo de várias declarações patéticas sobre o furto – já se demitiu; ou melhor, António Costa demitiu-o, na remodelação relâmpago do governo ocorrida agora.
A opinião pública assiste a isto e pasma como a honorabilidade das forças armadas, que constituem, como a diplomacia, um pilar e garante da soberania do Estado, são irresponsavelmente enlameadas por quem mais as devia preservar. Como pode a PJM, que investigava o furto, ser cúmplice no apagamento deste e na devolução cândida do que foi roubado, para encobrimento dos militares envolvidos? E Martins Pereira, informou ou não o ministro? Se o fez, Azeredo Lopes não pode afirmar que nada soube; se não o fez, revelado o caso, o ministro da Defesa deveria tê-lo demitido de imediato e solicitado idêntico desfecho para esse silenciador ambulante e alheio a tudo que dá pelo nome de general Rovisco Duarte, o ainda CEME. Custa a acreditar que Azeredo Lopes de nada soubesse, e custa, portanto, a aceitar que o ministro tenha durado tanto. O caso das armas roubadas e depois milagrosamente reaparecidas não é um problema, ou um infortúnio, de caserna; é uma questão da máxima gravidade política, dado que num Estado de direito democrático são os políticos que tutelam, e assumem responsabilidade, sobre as forças armadas.
No fim disto (por enquanto, e mesmo com a saída do ministro), sobra uma incomodidade. Em qualquer país decente (leia-se a forma gozosa com que o «El País» narrou este caso de Tancos) o próprio lugar do primeiro-ministro já estaria em xeque. Todavia, o sorridente António Costa, que sacode problemas como quem escova migalhas do casaco, pouco mais fez, no parlamento, na semana passada, senão dizer que “ainda havemos de saber o que cada um sabia sobre esta história de Tancos”! Seria cómico, se não fosse trágico: afinal, nesta, como noutras infelizes circunstâncias, para que é que serve o líder do governo?