D. Amândio Tomás vai deixar a Diocese de Vila Real no próximo dia 30 de junho. Em entrevista à Renascença, o prelado alerta para o fosso que separa o interior do litoral do país. Se nada for feito, a região pode transformar-se numa “coutada de coelhos”, afirma.
“Levo boa impressão do meu povo e dele não me apartarei mais”, assume D. Amândio ao fazer o balanço dos oito anos à frente da diocese de Vila Real. O bispo pede aos fiéis que recebam e acolham o seu sucessor de coração aberto.
D. Amândio Tomás, o quinto bispo da diocese de Vila Real, foi ordenado sacerdote em 15 de agosto de 1967, tendo desempenhado durante largos anos o cargo de reitor do Colégio Português, em Roma.
A 5 de Outubro de 2001, foi nomeado bispo auxiliar da Arquidiocese de Évora, pelo Papa João Paulo II, tendo sido ordenado a 6 de janeiro, pelo mesmo Papa, na Basílica de São Pedro, no Vaticano.
A 8 de Janeiro de 2008, foi nomeado bispo coadjutor da diocese de Vila Real, com direito de sucessão, pelo Papa Bento XVI, nela entrando solenemente em 10 de fevereiro. Sucedeu a D. Joaquim Gonçalves no cargo de bispo da diocese a 17 de maio de 2011, após resignação por limite de idade.
Ao fim de oito anos como bispo diocesano, D. Amândio é. neste momento, o administrador apostólico da diocese, passando a emérito com a entrada do novo bispo, a 30 de junho.
A poucos dias de deixar a Diocese de Vila Real, que sentimentos emergem?
Sentimentos de gratidão a Deus, antes de mais. É obrigatório. O que somos, a Ele devemos. Gratidão a Deus; gratidão, naturalmente, a todas as pessoas, aos amigos que encontrei, ao clero dedicado e aos que me trataram com muita benevolência. Sendo da terra - santos da terra não fazem milagres - atraquei aqui, depois de muitos anos de ausência por esse mundo fora, e fui bem recebido. Só tenho a agradecer. Dei o meu melhor, com a ajuda de Deus, e sinto o espírito tranquilo, sinto-me em paz e pronto a aceitar o que vier.
Conhecido como pastor próximo, afável e fraterno, o que mais o marcou no contacto com as pessoas?
A abertura, a lhaneza da gente simples, da gente humilde com quem eu me sinto bem, porque tem o coração à flor da pele, revelam sinceridade, sentimentos. O contacto com as pessoas simples nas aldeias, nos pequenos meios, foi aquilo que mais me sensibilizou. Muito generosos, muito dados, muito abertos, muito acolhedores. Levo uma recordação muito positiva deste povo transmontano, sem diplomacias, sem fingimentos. Levo boa impressão do meu povo e dele não me apartarei mais pelos laços da fé e de afeto que criei com eles.
Como bispo da diocese de Vila Real, uma diocese vítima da desertificação, não se cansou de alertar para o fosso que separa o interior do litoral do país. Sente que algo mudou ou ainda há muito a fazer?
Há tanto a fazer!... Urge, urge combater este fosso que afasta o Interior do Litoral. Estamos a perder a batalha há muito tempo. Desde os anos de 1960 que o interior se vai esvaziando a olhos vistos. As aldeias desaparecem completamente ou estão em vias de desaparecimento. A população diminui em todo o território da diocese. E quanto mais para o interior vamos pior ainda. Era necessário criar incentivos, de forma a fixar a gente e a gente fértil, a gente nova, que assegure o dia de amanhã. Era preciso incentivar o enraizamento populacional, para evitar a hemorragia que se verifica todos os dias. Criaram-se autoestradas, e muito bem, mas as autoestradas servem para vir ver o panorama e passar por aqui nunca mais. E servem também para sair daqui. Portugal é um retângulo empinado, com uma sobrecarga de peso populacional no litoral e, sobretudo, nas periferias das grandes cidades do Porto e Lisboa. É a tal cambalhota para o mar. E o interior desaparece. É uma coutada de coelhos, como muitas vezes digo. É preciso fazer algo e urgente, mas as pessoas falam, falam, dizem, mas não se faz. E o drama continua...
Uma região árida, como a diocese de Vila Real, terá futuro?
Poderão dizer que Trás-os-Montes é árido, no sentido em que tem muita pedra, tem muita serra e, então, a diocese de Vila Real, que está aqui encaixada entre Bragança e Braga e Porto, e, naturalmente, Lamego e Ourense para o Norte, podemos dizer que é um bocado inóspita, mas também é verdade que tem montes e vales, microclimas, tem muito vinho, tem muitas águas, tem muitas pessoas boas, tem muitas possibilidades. Eu penso que nós devemos apostar nas potencialidades que existem e nas pessoas que temos para criar um futuro melhor.
No campo da própria Igreja, o que é preciso fazer?
O centenário da criação da diocese pode servir de incentivo para evangelizar, para catequizar, para doutrinar o povo de Deus. Recordemos que o primeiro bispo foi um grande homem, um grande missionário, um homem de ideias largas, que foi escorraçado, no final, por forças adversas. Mas o senhor D. João Evangelista de Lima Vidal, que tinha sido um grande missionário em Angola, fundou as Florinhas da Neve, pensou na caridade, no atendimento de pessoas desprezadas e pisadas, foi o homem do congresso litúrgico, do congresso da catequese, fez obras admiráveis, lançou a primeira pedra e os primeiros esforços para a criação do seminário, fez viagens ao Brasil, de chapéu na mão, a pedir para as obras do seminário, fundou o seminário de Gralhas, foi um homem de ideias largas, rasgadas, muito culto, tanto que, depois de sair daqui, foi superior da Sociedade da Boa Nova e acabou como bispo de Aveiro. Rememorar, celebrar esse homem e aqueles que se seguiram, as marcas que deixaram, deve servir-nos de estímulo, de incentivo, para criar e promover ideias novas, educando o laicado. Nós temos que apostar cada vez mais na formação de leigos, em ministérios novos. E não é porque os padres não chegam, é porque não podemos conceber uma Igreja só de padres. Não podemos cair no erro do clericalismo e tantos erros históricos que perpetuamos. A Igreja é a Igreja de todos, em que todos somos filhos de Deus e a maior glória e a maior honra de cada homem, Papa, bispo ou leigo, é ser batizado. O mais importante é ser cristão, sendo Papa ou sendo bispo, emérito ou no ativo, sendo isto ou sendo aquilo. O mais importante é conhecer, amar e seguir Jesus Cristo.
O D. Amândio foi ordenado em Roma, pelo Papa João Paulo II, e sei que é amigo pessoal do Papa emérito. São duas figuras que, certamente, o marcaram…
Sim, é verdade. Mas há outros que também me marcaram. De Pio XII recordo-me muito pouco, sobretudo na idade de seminário, e recordo que, quando ele morreu, o presidente dos Estados Unidos disse: "O mundo ficou mais pobre". Pio XII foi um grande Papa, foi. Ainda no seminário, ouvimos falar daquele Papa bondoso, aldeão, o Papa santo, foi declarado santo, que falava com simplicidade e mandava beijinhos às crianças, o Papa S. João XXIII. Quando fui para Roma, já era Papa Paulo VI. Era um encanto ouvi-lo, era um génio. Foi ele o motor do Concílio. Foi Paulo VI que aguentou o Concílio. Consciência, renovação e diálogo são três notas fundamentais para a Igreja de todos os tempos. Foi um Papa que eu admirei muito e que morreu quando eu cheguei a Portugal. Foi um grande amigo do Colégio Português, onde eu viria a ser reitor.
João Paulo II foi o Papa da minha estadia em Roma, o Papa com quem eu convivi tantas vezes. Um Papa amigo, bom. O Papa de quem eu ouvi, no dia 16 de outubro de 1978, "abri as portas a Cristo, não tenhais medo". Foi um Papa, que depois de me ter nomeado para Évora, eu disse: ‘Já que assim é, então, eu espero mais algum tempo para ser ordenado por ele, no dia 6 de janeiro de 2002".
O Papa Ratzinger foi o Papa amigo. Por ter alunos alemães, visitou o colégio de Roma, como Perfeito da Congregação da Fé e tive oportunidade de o conhecer, assim como ao irmão que ainda vive e à irmã Maria, que já faleceu e que era uma senhora muito pequenina, uma santa. Do Papa Bento, para resumir, posso dizer que é um génio humilde. São assombrosos os seus livros. Não me canso de ler os seus livros. Profundo, genial, expõe com uma clareza meridiana, até nem parece alemão, parece mais francês. Expõe com agilidade, com singeleza, que todos o percebem, mesmo coisas profundas. No Colégio, na casa dele ou em passeios nos reuníamos muitas vezes. Foi um Papa amigo. Eu nunca suportei a forma como ele foi muitas vezes maltratado - o ‘pastor alemão’, quando ele era uma bondade, um homem de diálogo que escutava. Só porque é inteligente? Mas ninguém tem culpa de ser inteligente. E quando é preciso dizer as coisas, di-las. Mas isso é franqueza, isso não é orgulho. Ele não é desumano, nunca foi desumano. Sei que, inclusive, há teólogos que ele censurou e lhe pagou os estudos. Mas isso ninguém o sabe nem ninguém o diz. Tenho por ele uma veneração singular. Mas esta veneração é devida também ao Papa Francisco, atual Pastor do Povo de Deus. É aquele a quem eu obedeço, é aquele que eu venero. Com ele tive alguns diálogos, não tantos, evidentemente, como tive com o anterior, mas é o meu Papa de hoje.
Como bispo de Vila Real, o que gostaria de ter feito na diocese e não foi possível?
Gostaria de ter feito mais unidade, mais formação de leigos, mais diáconos permanentes, mais ministérios laicais, mais promoção da dignidade da mulher e de funções da mulher, na Igreja, que as fazem, mas não são ministeriais. A Igreja sem as mulheres, o que seria? Não seria nada. Precisaria de aquecer mais, de ruborizar estes leigos, estes fiéis, de forma a sentirem-se mais conscientes da sua dignidade cristã e de filhos de Deus, chamados a cooperar na obra da Igreja porque a Igreja não é de padres, nem é do bispo, nem é do Papa, é de todos. Todos somos chamados a construir uma Igreja fiel e digna, serva e pobre, uma Igreja humilde, de Jesus Cristo.
Eu poderia e deveria ter feito muito mais, mas cada um também faz conforme as suas próprias posses e forças. E eu, no final desta minha carreira, digo 'fiz o que pude' e agora vou continuar a pedir a Deus e a rezar, como o Papa Bento reza no seu convento, pela Igreja de Deus, para que Deus a faça crescer, empolgar no amor a Jesus Cristo e atinja um maior número de pessoas.
Esse será um desafio também para o novo bispo?
O novo bispo traz sangue novo, é um filósofo, tem um espírito novo, um vocabulário novo, experiências e ideias novas, é o presidente da Comissão das Vocações e Ministérios, trabalhou no Sínodo dos jovens, em Roma… Agora, é preciso que o clero, o povo de Deus colabore, coopere, porque o novo pastor, como qualquer pastor, é sempre condicionado por muitas coisas… Nem tem os padres que desejava nem tem os fiéis que desejava, tem santos e pecadores que somos todos. Com o que tem, com o que pode e com as ideias que Deus lhe inspirar e a sua ciência e sabedoria, ir conduzindo este povo de Deus para um maior progresso, porque eu espero que algo se fará.
Como gostaria de ser recordado na diocese de Vila Real?
Como uma pessoa que passou por cá, que fez o melhor que pôde e soube, com a graça de Deus. Porque, no final de tudo, nós devemos concluir com a máxima evangélica de Jesus "quando algo fizerdes, considerai: sou servo inútil, não fiz mais que a minha obrigação".
Mas foi feliz em Vila Real…
Certamente que fui feliz e gosto muito de Vila Real, para não falar desta cidade de Chaves, onde nos encontramos agora, a terra onde estão as minhas raízes. E o bom filho à casa torna. E aqui tornei, depois de um interregno de tantos anos, quase 50. E fui sempre bem tratado e recebido por todos que me receberam com toda a simplicidade e franqueza, como é próprio das pessoas transmontanas: pão, pão; queijo, queijo, queijo. Os transmontanos são assim, não são diplomatas, são frontais, parecem, às vezes, talvez, inconvenientes, mas têm um bom coração e um bom carácter que é muito importante, serem dignos, serem retos e dizerem o que têm a dizer na cara, sem andarem com subterfúgios.
No próximo dia 30 de junho, dar-se-á a entrada do novo bispo, D. António Augusto Azevedo, e o D. Amândio passa a bispo Emérito. A que vai dedicar-se?
A vida continua. Deus atribui-nos umas tarefas. Somos servos inúteis, não fazemos mais que a nossa obrigação. Aqui estou para, longe dos holofotes, servir o Povo de Deus, na simplicidade, na oração, como é o meu dever. Fui reitor do D. António, em Roma, como fui reitor de tantos outros bispos. Tenho a melhor das impressões da sua pessoa e tenho exortado constantemente a que o recebam e acolham bem, de coração aberto, como merece, porque é um homem santo, é um homem culto, de uma grande cultura e é um homem que merece ser recebido como deve. Só em comunhão é que devemos atuar. A Igreja é comunhão. Se perdemos o horizonte da comunhão, do intercâmbio, do diálogo mútuo, não chegamos a parte nenhuma.
Mas vai sair da Diocese de Vila Real?
Eu diria “puseste-me uma grande dificuldade”. Não sei. Ainda não decidi. Após o dia 30, talvez dê uma saltada a Roma ou a outra parte qualquer e estarei um tempo fora. Contínuo com um quarto disponível na casa episcopal… Se estiver um tempo fora e até acabar por ficar fora, não é por desprezo pela diocese nem por despeito, mas é para salvaguardar a unidade, a comunhão que eu quero que exista entre o bispo que vai entrar, e que é o meu bispo, e o clero e o povo de Deus.