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A trajetória das tropas russas em Bucha, Irpín, Sumy ou Mykolaiv deixou marcas brutais de morte e destruição. Mais de 4 milhões de ucranianos tiveram de abandonar o país. O que a comunidade internacional espera é que se possa agora reconstruir a paz. As negociações prosseguem apesar de diferentes visões sobre ao ritmo a que o diálogo avança.
Os – até este sábado - mais otimistas, os ucranianos, parecem acreditar que em breve, sem dizer quando, Putin e Zelenski vão ser vistos juntos. A Ucrânia chegou a dizer que a “Rússia aceita quase todas as propostas” sobre a sua integridade e soberania, menos a devolução da Crimeia.
A Rússia não vai tão longe. O Kremlin diz que “Kiev demora a cumprir” o acordado em Istambul e que há ainda muito trabalho pela frente. Na Turquia, à espera de poder acolher a nova fase das negociações, os diplomatas de Erdogan preparam-se para reativar amanhã a mesa do diálogo.
Ao fim de 39 dias de guerra, aproxima-se o momento da diplomacia? A resposta a esta e outras questões é de Marcos Farias Ferreira, professor de Relações Internacionais do ISCSP, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa.
Na guerra há, ou não, ‘um momento da diplomacia’? Aproxima-se esse momento?
A todo o momento é 'o momento da diplomacia'. Certamente temos estado muito atentos às movimentações militares, à agressão, à resistência e partir do momento em que a guerra é desencadeada entendemos, de certa forma, que é inevitável. Mas a diplomacia é um conjunto de processos de contatos, de negociação, sempre presente.
Lembro a existência de canais de comunicação e negociação nunca suspensos.
De resto, o presidente francês Macron tem feito questão de sublinhar nunca ter interrompido esses mecanismos de comunicação com o Kremlin e com o presidente da Ucrânia.
A nossa perceção dos conflitos e também a forma como nos polarizamos em defesa de uns e outros é que nos vai mostrando ou que a guerra é inevitável, ou que a diplomacia é o momento posterior á confrontação bélica, mas há uma relação e uma coexistência em todos os conflitos entre a diplomacia e a guerra.
Portanto o que assistimos nos últimos dias resulta da ambiguidade que caracteriza a relação entre a diplomacia e a guerra. Porque a própria condução da guerra exige o estabelecimento de mecanismos diplomáticos nem que seja para negociar o cumprimento de regras inerentes ao próprio desenrolar do conflito.
Há ainda dias e semanas pela frente em que a estratégia de Kiev e Moscovo vai passar por negociar as condições de um cessar-fogo, mas num contexto de grande desconfiança mútua.
Lembro que nas últimas semanas a dimensão diplomática tem estado diretamente presente na negociação de corredores humanitários no cumprimento do Direito Internacional Humanitário e, portanto, temos de nos habitar a essa coexistência de mecanismos diplomáticos e de mecanismos de agressão na política internacional.
Os sinais de ambiguidade dos últimos dias são bastante previsíveis. O fim de um conflito não é um processo nem linear, nem rápido. Certamente estamos a assistir a resultados que começam a ser positivos na aproximação de pontos defendidos pelos beligerantes relativamente a interesses e objetivos, à adaptação de estratégias face às forças no terreno e, seguramente, vamos ter ainda dias e semanas em que a estratégia de Kiev e Moscovo vai passar por negociar as condições de um cessar-fogo, mas num contexto de grande desconfiança mútua.
A solução a encontrar será a de uma Ucrânia neutral - no limite a possibilidade de uma divisão com base num acordo não definitivo, mas transitório - no passado acordos que suspenderam guerras tiveram clausulas secretas - num conflito que pode ficar congelado - lógica do agrado do Kremlin. O que acha que pode acontecer, numa altura em que há este debate em curso entre realistas e liberais, duas escolas de pensamento nas relações internacionais e que se resume a uma questão: vai ser preciso dar alguma coisa a Putin para ter paz e se, ao fazê-lo não se está a beneficiar o infrator, num ato de um certo relativismo moral?
Estamos perante a dificuldade que para muitos é uma necessidade pragmática de encontrar uma solução para o conflito. Esta solução pragmática pode resultar de várias origens, desde a constatação de que o prolongamento do conflito certamente é penalizador da Rússia, mas é muito mais penalizador dos interesses da Ucrânia. Não é só a questão da destruição das infraestruturas, não é só o perigo das operações militares levarem a uma redução crítica do território ucraniano.
Há uma questão fundamental de que não se tem falado muito e que é o fato da Ucrânia se ter de confrontar nos próximos anos com um Inverno demográfico.
A saída de milhões de pessoas, sobretudo crianças e mulheres do seu território, pessoas que certamente vão demorar tempo a regressar, se é que vão regressar vai colocar a sociedade ucraniana perante um problema complexo - que, de resto, já existia por via da migração económica desde o início dos anos 90 - portanto o pragmatismo também tem a ver com isto: o admitir que uma solução rápida do conflito é favorável a uma reconstrução da Ucrânia e à oportunidade de reiniciar de novo a sua própria trajetória política e económica que muito provavelmente vai poder ser organizada em torno de uma meta de adesão á União Europeia como aconteceu com os países do centro e leste da Europa.
Por outro lado, o pragmatismo tem a ver com a discussão relativa aos argumentos que a cúpula política e militar da Rússia colocou em cima da mesa, não nas últimas semanas ou meses, mas nos últimos anos, provavelmente desde 2007/2008 em que o presidente foi muito explícito quanto às queixas do que diz ser o avanço ocidental junto às suas fronteiras.
O que pode permitir a Putin salvar a face: levantamento de algumas sanções, a Crimeia? E no caso de Zelenksy não abrir mão do Donbass e recuperar a costa do mar de Azov? Será possível um acordo que permita a agressor e agredido salvarem a face no plano doméstico? Dificilmente não se evitará concessões dolorosas de cada lado?
Numa negociação de cessar-fogo e de fim de conflito há uma questão fundamental: ambas as partes vão ter de ceder. Certamente os pontos onde parece já haver alguma aceitação e de convergência, em virtude da mediação turca, é a questão do estatuto de neutralidade da Ucrânia, é a questão da desmilitarização. Obviamente falta saber como e pode haver muitos reveses na negociação.
A Europa tem de pensar que a Rússia de Putin não é infinita e, mais cedo ou mais tarde, surgirá um regime diferente, uma nova forma de organização política.
É preciso saber exatamente como estabelecer e verificar um sistema de neutralidade ou um mecanismo de desmilitarização, mas a questão mais complexa terá certamente a ver com a questão territorial. Aí é que vai ser difícil a negociação porque a saída das tropas russas certamente não se fará em todo o território ucraniano e certamente haverá a tentação de permanecer em áreas que se entenda serem negociáveis num futuro tratado de paz.
A Crimeia e o Donbass estão claramente aqui em jogo e se o ponto de vista russo será certamente o de permanecer nestes territórios a visão ucraniana será a de sublinhar a integridade territorial.
Um meio-termo para esta questão será regressar a uma outra forma dos acordos de Minsk e no caso da Crimeia garantir um novo referendo quanto ao futuro da península e no caso do Donbass voltar a um projeto de federação destas regiões com a Ucrânia, ou um projeto ainda diferente de marcação de um referendo num futuro a médio ou longo prazo.
Este é um momento de unidade na relação entre a UE e os EUA, mas a breve prazo poderão vir ao de cima os interesses divergentes entre os 27 e entre os 27 e os EUA - é um fator para a Europa tudo fazer para acelerar o diálogo? Antecipa, como alguns analistas, aqui uma eventual vontade a dois tempos para o ritmo das negociações de paz? Os Estados Unidos a pretender ganhar tempo para que as sanções provoquem uma reação interna em Moscovo e a Europa com um sentido de maior urgência, numa solução para uma crise que pode causar graves danos económicos à Europa - inflação, energéticos, vaga de refugiados?
Estou convencido que o pós-conflito criará mais dificuldades e desafios à coordenação a Ocidente que os tempos de guerra apesar das dificuldades dos esforços no decurso do conflito. O grande problema é também para a própria Ucrânia.
Negociar com Putin e chegar a um acordo de paz que envolva cedências mútuas a poderem ser vistas na Ucrânia como capitulação não vai ser uma ação a tornar a vida fácil ao presidente ucraniano, se é que Zelensky estabeleceu o objetivo de um referendo para qualquer forma de organização da paz que venha a surgir.
Um referendo que está sempre comprometido no curto prazo pelos milhões de deslocados...
Obviamente não será realizável no curto prazo. Estamos sempre perante operações militares, populações deslocadas, tudo isso torna difícil um referendo a breve trecho.
Mas voltando às sanções a estratégia europeia e norte-americana assenta nas sanções, mas o problema é que o resultado dessa opção punitiva é sempre projetado a médio e longo prazo e, neste momento, estamos confrontados com a discussão da paz no curto prazo.
No plano das sanções um enorme desafio será antecipar o que vai a Rússia exigir para um cessar-fogo, uma retirada militar da Ucrânia ou até discutir uma nova arquitetura de segurança na Europa. Portanto, o equilíbrio delicado será esse.
A Europa e os Estados Unidos em algum momento certamente terão de se envolver nestas negociações. Obviamente num primeiro momento as negociações são entre a Rússia e a Ucrânia, mas as garantias de segurança para ambos não dispensarão algum tipo de envolvimento do Conselho de Segurança das Nações Unidas, da OSCE ou até, individualmente, das grandes potências europeias, inclusivamente, da própria União Europeia.
Mas entrar nestas negociações com a Rússia será necessariamente trazer as sanções do Ocidente ao Kremlin para cima da mesa, sanções que só produzem resultados no médio e no longo prazo. Portanto o poder das sanções que se manifesta no médio e longo prazo vai estar em discussão no médio prazo.
A Rússia seguramente vai querer que as sanções sejam um elemento das discussões já em curso.
Não é por acaso ter sido rejeitado o embargo total á compra de produtos energéticos à Rússia. É rejeitado por se saber que certas sanções, as mais radicais, e também as medidas potencialmente mais eficazes no curto prazo poderiam inviabilizar qualquer tipo de negociação com a Rússia a médio, longo prazo.
Do ponto de vista de Washington a questão é vista de uma forma mais leve porque os Estados Unidos não sofrem diretamente com a quebra dos laços de interdependência energética e comercial com a Rússia.
Já o ponto de vista da Europa - e isso começa a ser reconhecido - é o de que a Rússia vai continuar a existir para lá do conflito. Haverá sempre necessidade de estabelecer algum tipo de relação com a Rússia depois desta guerra, pode ser a Rússia de Putin ou a Rússia de outro regime.
Um futuro regime de Moscovo ou a transição do pós-Putin poderá compreender opções de um regime mais democrático, mais liberal, mas também poderá implicar um regime mais nacionalista. A forma como se pavimentar agora essa relação certamente pode condicionar o futuro.
Como é que antecipa o legado desta guerra? Um relatório da Economist Intelligence Unit, antecipa um cenário de uma nova ordem mundial com uma nova cortina de ferro entre regimes democráticos, de um lado, e autocracias, do outro, e a morte da globalização, tal como a conhecemos nas ultimas décadas - e uma Rússia não um estado pária, mas em fuga para leste trocando as relações com a Europa e Estados Unidos por China e India - de que passará a depender economicamente - e ainda uma renovada corrida aos armamentos e o agravamento de conflitos existentes…
Julgo estar tudo em aberto e dependente do tipo de paz que for estabelecida nas próximas semanas e nos próximos meses. A Europa tem de pensar que a Rússia de Putin não é infinita e, mais cedo ou mais tarde, surgirá um regime diferente, uma nova forma de organização política.
A Europa tem muito a ganhar e muito a perder nas relações com a Rússia. Alienar Moscovo e atirar a Rússia para um tipo de bloco comercial, financeiro e até militar mais próximo da China pode ser desastroso para a Europa. Julgo que a Europa não pode prescindir dessa vontade de fazer a ponte com a Rússia.
Não é certamente condicionar o futuro da Rússia, não é a ilusão liberal de entender que a Rússia terá uma cultura estratégica no futuro ou até interesses comuns com o Ocidente, mas a Europa tem o interesse de organizar algum tipo de relação que vá transformando a Rússia e vá encontrando pontos de convergência em questões fundamentais como a energia, a transição energética ou a transição climática.
Não há a consecução de objetivos fundamentais a nível energético e climático, de luta contra as alterações climáticas, alienando a Rússia e transformando-a num estado pária ou até atirando-a para uma aliança com a China.