O presidente da União das Misericórdias Portuguesas (UMP), Manuel Lemos, teme o surgimento de um quadro de ingovernabilidade, pelo que identifica “o risco de não ter interlocutor” depois das legislativas de 10 de março.
“Com quem é que vamos negociar? Daqui a quanto tempo? Haverá governo? Isto é: quanto tempo vai levar a formar governo depois do dia 10 de março? E esse governo passará na Assembleia da República? “, questiona Manuel Lemos, em entrevista à Renascença e à agência Ecclesia.
Manuel Lemos foi reeleito presidente da UMP e vai cumprir o seu sexto sexto mandato. Será o último, garante: “A minha função, neste mandato, é encontrar a o líder e a equipa que me vai substituir. Quando isso acontecer, vou para casa com a satisfação do dever cumprido."
Do ponto de vista social, o responsável diz que “o envelhecimento e a situação dos idosos são preocupantes” e defende uma maior aposta na rede de cuidados continuados para responder, por exemplo ao problema dos internamentos sociais. Manuel Lemos não tem dúvidas de que “uma rede de cuidados continuados resolveria esses problemas todos” e adianta que Portugal “precisa de mais 10 mil camas”.
Foi eleito para um sexto mandato, tendo, pela primeira vez em 20 anos, um adversário. Foi uma eleição diferente por ter produzido mais debate? Há ideias do seu adversário que admite adotar nos próximos anos?
As preocupações do meu adversário situavam-se sobretudo num único plano, que era o da sustentabilidade e o da minha eventual agressividade para com os governos para aumentar essa sustentabilidade. São modos diferentes de entender esta função. Eu considero que sou resiliente, que sou competente porque tenho uma equipa muito grande que me dá os dados corretos e eu trabalho nisso. A questão da agressividade…
... vai mantê-la?
É aquela que eu tenho sempre e que eu acho que tem que se manter. Nós não somos um sindicato. Isso não quer dizer que os sindicatos sejam agressivos. Nós temos uma natureza, uma identidade própria e, portanto, quem estiver aqui nas funções que eu tenho terá sempre que ter isso em primeiro lugar. A nossa marca é pela defesa intransigente dos valores, pela definição de linhas vermelhas. E, depois, por um diálogo construtivo, num Estado que é pobre e em que o setor social não é muito bem tratado, de facto. E não podemos esquecer que a última palavra compete sempre ao Estado e, no caso concreto, aos governos. Nestes últimos anos, a um governo de maioria absoluta.
Já iremos a essa questão da mudança de governo, mas, antes, quero perguntar-lhe se, nestes anos, a pandemia foi o momento mais complicado? E pergunto também se com o cenário social que temos hoje se projetará uma crise mais aguda...
Nós tivemos uma sucessão de casos difíceis. Nós tivemos a Troika e a Troika foi um momento muito complicado porque houve muito poucas atualizações durante esse período. Aí, o setor social começou a entrar em perda naquilo que era o desfasamento entre o custo real das respostas sociais e aquilo que o Estado estava disposto a pagar.
Depois, a pandemia levou-nos as tesourarias porque fizemos um esforço brutal. E, quando julgávamos que íamos entrar numa normalidade, o que é que nos aconteceu? Fomos confrontados com uma guerra que trouxe consigo duas coisas: uma inflação nunca vista nos últimos 30 anos e taxas de juros altíssimas. Portanto, isto tudo somado, redundou, de facto, numa mudança brutal naquilo que era a nossa postura no terreno em relação às respostas. Porque nós continuamos a responder. Em todo o caso, gostava de dizer uma coisa que penso que é muito importante.: quando vemos fechar milhares de empresas, quando nvemos muita gente com grandes dificuldades, nós conseguimos que em Portugal não fechasse uma única Misericórdia. Mesmo a mais pequenina, das mais pequeninas, com dificuldades gravadíssimas, manteve-se.
E há o risco de alguma poder vir a fechar?
Já lá vou, mas antes deixe-me dizer-lhe que, apesar das dificuldades, neste período, abriram misericórdias. Isto é, há um movimento que tem muito a ver com a "marca misericórdia". A "marca misericórdia" está muito forte. Mas, sim: ninguém aguenta eternamente uma degradação continua e, por isso, as misericórdias e o sector todo passam dificuldades. E repare: como as negociações são iguais para todas as entidades representativas do sector social, como é que fica uma pequena IPSS ou um centro paroquial perante uma Misericórdia? Apesar de tudo, a situação deles é muito mais complexa.
O que queremos - e é nisso que estamos a trabalhar - é inverter essa situação. E como? Cumprindo o pacto de solidariedade.
É por isso que a sustentabilidade vai continuar a sero seu "cavalo de batalha"? A forma como nos últimos tempos o Estado passou a olhar para o setor é um bom sinal?
Eu tenho alguns "cavalos de batalha". O primeiro é a manutenção da identidade e da autonomia. Não chegamos aqui por acaso. Atravessamos os séculos, não havia Estado. É isto que os portugueses conhecem, é isto que os portugueses querem.
Depois, antes da sustentabilidade, nós temos de ter previsibilidade. Temos de ter, também, uma situação em que saibamos aquilo com que vamos contar no terreno, para que as respostas possam ser duradouras. Só isso é que nos conduz à sustentabilidade. Estes quatro fatores, todos juntos, é que são o ADN da nossa atividade.
Acho que há duas maneiras de olhar para o setor social. Há uma maneira europeia, digamos, com sucessivas recomendações e até diretivas do Conselho Europeu, que dizem, "apostem lá, Estados-membros no setor social", e, depois, há uma maneira portuguesa, que olha para o setor social com palavras muito simpáticas, muito afáveis, muito gentis, mas que, na altura de olhar para o setor social no sentido de ele ter os meios para cumprir, o desvaloriza sempre.
É preciso ser muito resiliente, é preciso ser muito resiliente, muito teimoso, muito competente.
E o que é preciso melhorar ao nível dos acordos de cooperação?
É preciso caminhar em direção aos 50%. Quando se celebrou o primeiro pacto de cooperação para a solidariedade, há 27 anos, o então primeiro-ministro de Portugal, o engenheiro António Guterres, disse que o Estado devia pagar nas respostas da cooperação, isto é, aquelas que estão nos acordos: no mínimo 50% e desejavelmente 60%. Mas isso não estava no pacto. Isso disse ele no seu discurso. Não estava lá valor nenhum. Os anos passaram e, em 2022, quando se celebraram os 25 anos do pacto para a cooperação, o setor social em interação com o governo, considerou essencial que lá ficasse a questão de "no mínimo 50%".
Estamos a caminhar para aí?
Então, até pusemos equitativo. Porque, por exemplo, nas crianças em risco e nos deficientes, tem de ser claramente muito acima dos 50%. Onde é que estamos, pergunta-me... Se formos para a grande resposta típica da cooperação, que são os lares, antes dos atuais aumentos, em 2022 estávamos em 38%. Ainda não metemos as contas em 2023, mas em 2022 estávamos em 38%, sem contar com os investimentos. Se metermos investimentos, regride para 34%. Mas, se olharmos para as contas que estão na plataforma por força da lei, isso dá de exploração um valor de 38%. Isto é, estamos a 12% do alvo.
Ainda há pouco falava da relação estabelecida com o governo de maioria absoluta. Receia que os resultados das próximas legislativas levem a uma alteração do relacionamento do Estado com o setor social?
Quando falei do resultado da maioria absoluta, era, até, do lado negativo. É difícil negociar com um governo de maioria absoluta que não tem, em teoria, que pactuar com ninguém. Era isto que eu queria dizer. Agora, noutras coisas, quando o governo quer, é mais fácil. Se é de maioria absoluta, e se o Governo quer, então avança-se.
A esse nível, receia que um futuro governo tenha um relacionamento diferente?
Eu diria que o que mais me preocupa é a instabilidade.
A tal imprevisibilidade de que falava há pouco?
Sim. Porque colocam-se diversas questões. O que é que vamos fazer? Como vamos fazer? Com quem é que vamos negociar? Daqui a quanto tempo? Se houver um surto de inflação, há um governo que, a meio do caminho, consegue ter capacidade, de dizer, vamos aqui reforçar o setor social? Ou mesmo: haverá governo? Isto é, quanto tempo vai levar a formar governo depois do dia 10 de março? E esse governo passará na Assembleia da República?
O meu risco é o de não ter interlocutor. Porque, se tiver interlocutor, e porque os dois grandes partidos - PSD e o PS - têm preocupações sociais, os dois olham de maneira de diferente, mas ambos querem cumprir a Constituição nessa matéria. O problema é ter interlocutor. Com quem é que nos vamos sentar à mesa depois de 10 de março?
O caminho feito pelos partidos de marca populista e o seu crescimento, são responsabilidade de quem?
Do setor social é que não é, porque o setor social é inclusivo, o setor social ajuda as pessoas e, portanto, nós estamos fora dessa equação.
Acho que há vários fatores, e até vou começar pelo que eu considero mais evidente, que toda a gente vive no dia-a-dia, que são as consequências da pandemia. As pessoas ficaram muito mais irritadas, apitam muito mais na rua, estão muito mais zangadas, são muito mais agressivas umas com as outras, e os partidos populistas captam isso com grande facilidade. À esquerda e à direita.
E, depois, há alguns excessos políticos, de um lado e do outro, que deixam as pessoas muito insatisfeitas. Eu vou dar um exemplo que não tem nada a ver com as Misericórdias: as pessoas não querem saber onde fica o aeroporto, as pessoas querem é um aeroporto, acham que tem que haver uma decisão sobre o aeroporto. As pessoas não querem saber do Serviço Nacional de Saúde - as pessoas querem médicos e cuidados de saúde.
É muito fácli, hoje, sobretudo de uma maneira demagógica, defender o branco e o seu contrário. É facílimo, é uma questão de se pôr de um determinado ponto de vista.
Então, a culpa é dos políticos que não sabem ou não conseguem descontextualizar esse tipo de discurso?
Às vezes, é de comunicação dos políticos. Acredito que sim. Eu tenho muito respeito pela atividade política, mas mesmo muito. Acho que é uma atividade muito nobre, mas, muitas vezes, a questão da comunicação também mudou. Dantes era "preto e branco", hoje é totalmente a cores, e vocês sabem isso muito melhor do que eu. Portanto, você pode estar a ouvir num simples "zapping" coisas completamente contrárias, e ambas fazem sentido. "Este tem razão e este também tem razão" - é difícil tirar a bissetriz disso.
Após as próximas eleições. vai ser necessário a reativação das linhas de diálogo. Manifestou alguma preocupação relativamente ao facto de poder, nos próximos tempos, não ter um interlocutor. Está confiante para esse processo, seja qual for o governo?
Se houver governo, estou confiante. Porque, seja quem for, nós lá estaremos para conversar com ele.
Mas deu a entender que o país pode ficar um pouco ingovernável...
Sim, pode demorar muito tempo a formar governo. Pode o governo que seja formado não passar na Assembleia da República.
Esse é o cenário mais provável?
Não sei, não sou politólogo. Mas isso pode acontecer, não é? E, como pode acontecer, é evidente que quem desempenha as funções que eu tenho, está preocupado. É sinal de responsabilidade.
Sobre a missão que lhe foi confiada até 2027... Este é já o sexto mandato. Já conta com mais anos à frente a União das Misericórdias, por exemplo, que o padre Vítor Melícias. Acredita que este será o seu último mandato?
Tenho a certeza absoluta. Eu quero dizer o seguinte: tenho muitas outras coisas para fazer, gostava de fazer outras coisas. Achava que estava na altura de apreciamento de uma outra lista, que não merecia o entusiasmo dos produtores. Aliás, viu-se no resultado, tivemos mais do dobro do número de votos.
Entram-me pelo gabinete dentro e dizem "o senhor está ótimo, está em boa forma física, está em boa forma mental, está bem-disposto, continua bem-disposto, nós precisamos de pessoas assim, por favor, faça outro mandato". Mas, em boa verdade, até considero excessivo, isso. As instituições do Setor Social têm obrigação, e essa é a minha principal função neste mandato, de encontrar a equipa e o líder da equipa que me vai substituir. Quando isso acontecer, eu vou para casa com a satisfação do dever cumprido.
Ao longo da sua vida pública, integrou estruturas de luta contra a pobreza, por exemplo. A estratégia nacional definida este ano para combater o fenómeno era a peça que faltava para o combate ao fenómeno ou ficam aquém?
Não, não. Eu já tive ocasião de dizer isso. É um esforço, mas eu acho que devia ter havido muito mais conversa e muito mais reflexão. Reflexão a todos os níveis sobre como combater a pobreza.
O documento é esforçado, tem aspetos positivos. Lá está: quem quiser pegar nos aspetos negativos diz que aquilo não presta para nada, nem uma coisa nem outra. Acho que é um documento esforçado, tem méritos, mas não envolve as pessoas e as instituições. Diz que vai envolver, mas é completamente diferente de envolver. Diz que não sei o que é, mas não o fez.
Deveria ter sido um trabalho prévio?
Devia ser. Os irlandeses têm, a propósito, até, da formação, uma frase que diz mais ou menos assim (vou tentar fazer uma tradução que não é tão brilhante como a frase em inglês): "Diz-me 'eu vou esquecer', tenta ensinar-me e eu talvez me esqueça; envolve-me e eu nunca mais me esqueço." Foi isso que não aconteceu. Portanto, apareceu muito como um documento político e muito menos como um documento...
Está condenado ao fracasso?
Não está condenado ao fracasso, porque, como digo, tem coisas muito boas.
A pobreza em Portugal é um fenómeno estrutural, não é um fenómeno conjuntural. Estamos a assistir a algo que nos preocupa muito: há pessoas com emprego que estão na pobreza. Esse é um fenómeno novo. Melhor: já não é tão novo assim, mas aparece como um fenómeno cada vez mais evidente. Os casais monoparentais, as mulheres com muitos filhos, tudo isso merece uma reflexão muito grande. As zonas depauperadas, o interior português... A minha família tem uma casa ali para os lados de Amares e, há dias, vi pela primeira vez na minha vida, com esta idade, uma manada de javalis à porta. Isso também é sintoma de alguma coisa. Que mais não seja da desertificação ou do despovoamento... Agora, há um corço que vai lá a comer. Portanto, isto era completamente impensável. Até é bonito, gosto de ver o corço..
O "IVA zero" em bens essenciais vai acabar no início do próximo ano. Apesar de a inflação ter vindo a descer, considera que seria necessário manter esta medida?
Eu diria que era melhor. Lembro-me de uma dessas graças que passam nos WhatsApps, a propósito do Black Friday, temos aqui uns preços excecionais, porque temos metade do dobro. Portanto, o "IVA zero" é importante se controlarem os preços. Se não se controlarem os preços, não sei... Parece-me que houve um esforço no sentido de controlar os preços. O que é importante é controlar os preços.
Do ponto de vista social, quais são as suas grandes preocupações? A situação dos idosos, o abandono, os internamentos sociais, o envelhecimento?...
O envelhecimento e a situação dos idosos são preocupantes. É muitíssimo preocupante. É uma área onde nós podemos ajudar muito. Um colega vosso perguntava-me o que é que eu acho das vagas hospitalares. Eu disse-lhe que, de repente, deixei de ter pressão. Isto é, de alguma maneira, durante uns meses, era normal, nas conversas que tinha com os responsáveis públicos, esta questão e, de repente, ela desapareceu.
Porquê? O fenómeno continua. Os internamentos sociais continuam...
Repare... Apareceram nos lares muitas pessoas doentes e chamaram-lhe "internamento social". Não é internamento social. Por exemplo, uma pessoa partiu um braço, mas tem uma doença mental, a alta é sobre o doente? Ou é sobre o braço que está partido ou é sobre a doença mental?
Quer dizer, o homem como um todo, tão caro às Misericórdias, tão caro à Rádio Renascença, tão caro à ECCLESIA, está aqui posto aos bocados, como se pudessem cortar as pessoas às fatias. Eu sei que é preciso andar depressa, porque as questões agudizam-se, mas resolve-se melhor o problema se perdermos mais meia hora a falar com quem sabe do que a fazer uma coisa num gabinete e depois faz-se o desenho. O que é que acontece? Muitas instituições que abriram as portas para acolher as vagas hospitalares, agora, não querem mais. Não querem mais porque apareceram lá pessoas com outras patologias.
Nós precisamos de uma rede de cuidados continuados. Parece que vai sair uma portaria, mais 500 camas, mas são precisas mais 10 mil camas. E pagas a preço, não é por um senhor lá no PRR dizer que as camas são a 42 mil euros que as camas são a 42 mil euros. Não são, são a 60mil ou 70 mil.
Uma rede de cuidados continuados ajudaria a melhorar a situação dos tratamentos sociais?
Resolvia esses problemas todos. Resolvia esses problemas todos. Quando digo "todos", é a maioria esmagadora, porque, depois, as altas sociais podiam ir para os lares. Porque para a rede de cuidados continuados iam as pessoas com outras comorbilidades que continuam a existir nas pessoas que têm alta.