A Polícia Judiciária (PJ) vai analisar, caso a caso, todos os processos-crime que podem estar abrangidos pelo chumbo do Tribunal Constitucional à Lei dos Metadados, revela o diretor nacional adjunto, João Melo.
Em declarações ao programa Em Nome da Lei da Renascença, João Melo considera que o problema dos metadados não será tão grande como se diz, mas reconhece que todos os casos têm que ser alvo de apreciação.
“Em concreto, as consequências imediatas deste acórdão estão relacionadas com todos os inquéritos em que tenha existido junção de dados ao abrigo dos artigos agora considerados inconstitucionais, que têm que ser analisados caso a caso”, afirma o diretor nacional adjunto da Judiciária.
A tarefa é “difícil”, porque “não existe uma estatística sobre o número de casos em que esses dados foram solicitados. Tem que ser caso a caso”.
Questionado se a PJ ou o Ministério Público (MP), enquanto titular dos inquéritos, terão a iniciativa ou vão ficar à espera que os advogados dos arguidos o façam, João Melo responde: “Teremos que tomar. Vão ser divulgadas indicações concretas às nossas unidades relativamente a como fazer para detetar essas situações, e para um levantamento das consequências praticas”.
Autoridades podem ceder dados até quando?
Em declarações ao programa “Em Nome da Lei”, esta semana dedicado à polémica dos metadados, João Melo explicou também a interpretação que a Judiciária está a fazer deste acórdão.
“Serão aqueles crimes em que é absolutamente essencial conhecer dados que tenham sido produzidos há mais de seis meses. Porque se nós podemos continuar a pedir às operadoras o acesso a dados de faturação, que não são os dados previstos na Lei 32, desde que exista despacho judicial, até seis meses as operadoras podem continuar a ceder dados para investigação criminal”, defende.
“Nem a Polícia Judiciária, nem o Ministério Público, seja em sede de instrução ou julgamento, pedem os dados de todas as pessoas. Pedem os dados das pessoas que já são suspeitas, e apenas os dados que interessam, e se não interessarem não são utilizados”, sublinha o diretor nacional adjunto da PJ.
No grupo de trabalho criado esta semana pelo primeiro-ministro, a Judiciária vai defender que o prazo para a conservação dos metadados por parte das operadoras seja reduzido para os seis meses, mas sobre o problema da proporcionalidade, ou seja, o facto de a lei abranger a totalidade da população, neste caso João Melo diz que o problema só será realmente resolvido no dia em que for alterada a própria Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
“Eu penso que será inevitável um dia mais tarde, mais cedo do que tarde, haver um consenso na União Europeia para alterar o artigo 52 da Carta [dos Direitos Fundamentais]. E alterando esse artigo, estabelecendo a finalidade e os prazos, isso permitiria resolver todas as questões de índole constitucional em todos os países que tiveram esse problema.”
Tancos e outros casos mediáticos em causa
Já os advogados dizem estar a trabalhar muito ativamente para que as investigações baseadas nas normas inconstitucionais sejam revistas e anuladas. A garantia foi deixada por Ricardo Serrano Vieira no programa “Em Nome da Lei” da Renascença.
“Parece-me evidente que o apelo feito pelo sr. bastonário da Ordem dos Advogados para que os advogados começassem a analisar e, se for o caso, interpor os recursos de algumas decisões, levou a que nas últimas duas semanas, o meu escritório em particular e acredito que todos os outros que fazem direito criminal, estejam neste momento a terminar recursos de revisão ou requerimentos para verificação de nulidade.
Estamos cada vez mais atentos, e já a tratar desses recursos”, afirma Ricardo Serrano Vieira.
O advogado tem em mãos vários processos bastante mediáticos, e não tem dúvidas de que irá pedir novas apreciações. O processo do furto e achamento de armas em Tancos é um deles.
“O caso Tancos. Parte da decisão, num segmento de prova bastante significativo para aferir se o cidadão A, B ou C que estava a ser julgado esteve ou não esteve num determinado local, a uma determinada hora, foram usados metadados. Portanto, acho que o caso Tancos é um dos que vai ter esta questão levantada.”
Ao contrário do que defende o primeiro-ministro, Ricardo Serrano Vieira considera que todos os casos – até os já julgados e transitados em julgado – estão abrangidos por este acórdão.
“Eu acho que é aplicável a casos transitados em julgado. Porque se for declarada a nulidade desta prova, e não basta apenas ter sido utilizada, tem que ter sido determinante, ela pode ser objeto, mesmo transitada em julgado, de um recurso de revisão”, argumenta.
Governo “negligente”, acusa PSD
Politicamente, o PSD lamenta que o Governo nada tenha feito nos últimos sete anos para corrigir a situação.
Paulo Mota Pinto, líder da bancada social-democrata, considera que o executivo de António Costa não percebeu o problema que tinha em mãos.
“Numa palavra, chegamos a este ponto por incúria. Por omissão negligente. Houve outros países que reagiram à primeira decisão [ao acórdão Digital Ireland] de 2014 do Tribunal de Justiça, e desde aí houve vários outros acórdãos, um para a Suécia, outro para a Bélgica e para a França, e nesses o nosso Governo nem se fez representar apesar de estar notificado. Portugal não promoveu qualquer alteração da lei, achou que isto não era um problema”, lamenta Paulo Mota Pinto.
O PSD diz que está disposto a aperfeiçoar o projeto-lei que já entregou no Parlamento, seguindo pistas que o Tribunal de Justiça da União Europeia foi dando sobre o assunto.
“Podemos manter o prazo das 12 semanas, e ver se passa no nosso Tribunal Constitucional. Mas estamos disponíveis para reduzir mais o prazo, e na especialidade introduzir critérios de conservação seletiva, usando a análise que já fizemos do acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia”, adianta o líder parlamentar do PSD.
“Podemos introduzir critérios como lugares de muita afluência de população ou trânsito como aeroportos, portos, estações de comboio, portagens de autoestrada, desde que não seja em todo o país. Isto não permite é a geolocalização generalizada de todos os cidadãos, isso é que o Tribunal de Justiça considerou que era violador do princípio da proporcionalidade. De facto, enquanto não for revista a justiça europeia ou a Carta dos Direitos Fundamentais, temos que nos conformar com isso”, afirma.
No “Em Nome da Lei” desta semana, Paulo Mota Pinto deixa ainda dúvidas sobre o otimismo manifestado pelo primeiro-ministro, nomeadamente nas garantias que dá sobre os casos julgados.
O antigo juiz do Tribunal Constitucional prefere não dar a sua opinião sobre como devem os tribunais interpretar o acórdão, mas lembra que a questão não é tão linear como António Costa quer fazer parecer.
“Realmente, a Constituição ressalva o efeito no caso julgado na declaração de inconstitucionalidade, o problema é que há no Código do Processo Penal um outro artigo, que é o 449, nº1 alínea f, que diz que é fundamento de revisão a declaração de inconstitucionalidade de norma que tenha servido de fundamento à condenação.”
O líder parlamentar do PSD considera que “essa é uma decisão que compete aos tribunais” e “estranha um pouco que o primeiro-ministro queira dizer aos tribunais o que é que devem fazer”.
“Eu, se fosse um advogado que estava a preparar um recurso nesta área, acharia estranho por mais que o primeiro-ministro queira preservar os casos julgados”, sublinha.
“Agressão muito forte aos direitos dos cidadãos”
Também presente no “Em Nome da Lei” dedicado aos metadados, o presidente da D3 - Associação de Defesa dos Direitos Digitais não escondeu a satisfação por ver o assunto a ser, finalmente, debatido em Portugal.
Foi a queixa desta associação, apresentada em 2017, que levou a Provedoria de Justiça a pedir a fiscalização sucessiva ao Tribunal Constitucional, e que agora veio a resultar neste acórdão.
Eduardo Santos não encontra uma explicação para o facto do problema ter sido ignorado durante tantos anos, e pede que o atual debate dê lugar a uma lei justa e realmente legal.
“Há algumas decisões do Tribunal de Justiça da União Europeia que, essencialmente, dizem o que é que não é possível, não há propriamente diretrizes sobre o que é que é possível. Mas sabemos que é preciso inserir algum tipo de proporcionalidade”, diz Eduardo Santos.
O presidente da Associação de Defesa dos Direitos Digitais considera que “a recolha de metadados de forma geral e indiscriminada simplesmente não é possível”.
“Ter uma base de dados desse tamanho é uma agressão muito forte aos direitos dos cidadãos. Através dos metadados, nós conseguimos aferir quase tudo sobre a vida de uma pessoa”, conclui Eduardo Santos.