​O dia em que a América vai virar a página
19-01-2021 - 09:54
 • José Pedro Teixeira Fernandes (*)

Dia 20 de janeiro. Para a maioria dos americanos é um enorme alívio assistir a este virar de página na política do país e ao encerrar de um período extraordinariamente tumultuoso.

1. A América e o mundo têm no dia 20 de Janeiro de 2021 uma data imbuída de grande simbolismo político. É o fim do conturbado mandato de Donald Trump, sendo também o dia em que um novo presidente, Joe Biden (Joseph Robinette Biden Jr.), toma posse à frente do governo dos EUA. Para a maioria dos americanos é um enorme alívio assistir a este virar de página na política do país e ao encerrar de um período extraordinariamente tumultuoso, em particular o ocorrido entre a eleição presidencial de 3 Novembro e a invasão do Capitólio por manifestantes radicais pró-Trump, a 6 de Janeiro de 2021.

Ficaram as marcas de uma contestação reiterada e sem precedentes dos resultados eleitorais feita por Donald Trump, a qual prejudicou seriamente a imagem da América como modelo de democracia plural e de participação cívica, uma das mais apreciadas facetas do seu soft power. A expectativa agora é do restaurar dessa imagem e da realização de grandes mudanças em múltiplas áreas que vão do ambiente (regresso ao Acordo de Paris) aos direitos dos afro-americanos, passando pela recuperação da saúde pública e da economia, ambas duramente afectadas pela pandemia da covid-19. A expectativa é também que serão fechadas as fracturas que se instalaram na sociedade norte-americana após quatro anos de governo de facção de Donald Trump, que apenas se preocupou com a América que o elegeu.

2. Para o sucesso da sua presidência, Joe Biden terá de evitar repetir os erros do passado anterior a Donald Trump, que criaram uma engrenagem de fractura e dissensão interna que só favoreceu a ascensão do populismo. Um caso que deverá merecer particular atenção são as políticas de identidade que tiveram um efeito altamente fragmentador. Colocaram a América em guerra consigo própria para (re)definição da sua identidade. Independentemente das boas intenções de dar voz e uma identidade digna aos grupos minoritários e oprimidos - o que é algo eticamente meritório e politicamente progressista -, na prática alimentaram demasiadas vezes radicalismos culturais e políticos, quer dos seus defensores, quer dos seus críticos, que se tornaram fracturas expostas. Mas há também outros erros graves que envenenaram a política da América nas últimas décadas. Ambos os partidos - democratas e republicanos - tornaram-se excessivamente dependentes de campanhas eleitorais caríssimas e de doadores empresariais para as financiar, que naturalmente procuram depois traduzir tais donativos em influência política. Assim, o Partido Republicano é largamente dependente do capitalismo financeiro de Wall Street a par do velho capitalismo da indústria petrolífera. Quanto ao Partido Democrata, está a ficar cada vez mais dependente de Silicon Valley e do grande capitalismo digital, bem como das principais universidades e grupos de media, o que é igualmente problemático. Se o governo de Joe Biden cair no erro de compactuar com os interesses das empresas de Silicon Valley, colocando nas agências governamentais nomes oriundos das mesmas, estará a alimentar o ressentimento contra o establishment que provavelmente explodirá, de uma forma ou de outra, mais à frente. Credibilizará a ideia dos críticos de que está a pagar um favor político ao Twitter, Facebook, Google e Apple, por banirem Donald Trump e outros republicanos das redes sociais na altura da campanha eleitoral e depois desta. Num país cuja história política está indissociavelmente ligada à liberdade, este tipo de censura, feito por empresas privadas sem qualquer tipo de legitimidade democrática, é péssimo para a imagem da América. É bom que o governo de Joe Biden e o Partido Democrata percebam isso rapidamente.

3. No plano externo, as tarefas do governo de Joe Biden não irão ser mais fáceis do que as delicadas questões que terá de enfrentar a nível interno, quer pela variedade dos problemas, quer pelo seu grau de complexidade. É verdade que a sua actuação terá a boa vontade (tudo indica) dos seus aliados tradicionais da Europa e Ocidente. Para estes últimos, o anunciado regresso a uma relação tradicional de proximidade amistosa, a um multilateralismo no comércio e na política, e um comprometimento com a as questões ambientais globais criaram elevadas expectativas sobre o futuro governo dos EUA. Mas essa será a parte mais fácil. A política externa numa potência global com uma enorme rede de alianças e de interesses estratégicos variados é sempre uma matéria complexa. Ao mesmo tempo é necessário notar que os europeus são uma parte importante dessas alianças, mas com peso relativo a diminuir, pela ascensão da Ásia-Pacífico. Para além disso, para a América, os interesses dos Estados com os quais tem acordos político-militares, não invulgarmente divergem ou até chocam entre si em conflitos concretos que vão emergindo. O Médio Oriente - e o possível regresso ao acordo nuclear com o Irão - é um exemplo maior desse problema e das linhas estratégicas cruzadas. Quase todos os seus aliados árabes sunitas - para além do caso óbvio de Israel -, estão contra o entendimento com o Irão. Não será fácil voltar ao acordo sem levá-los a uma maior proximidade com potenciais rivais, como a Rússia e a China.

4. Para além de tudo o anteriormente apontado, o governo de Joe Biden terá ainda de mostrar no terreno que o regresso do establishment profissional à política externa é mesmo uma mais-valia para a América (e para o mundo) e que é capaz de fazer muito melhor, sem atolar a América num qualquer intervencionismo no exterior, ou abandonar os seus aliados em situações críticas. Donald Trump rodeou-se de um conjunto de conselheiros amadores recrutados na sua família e amigos. A sua política externa foi errática e por vezes totalmente incompreensível na sua lógica estratégica, se é que tinha alguma. Todavia, fez algo que tem o apoio de muitos americanos, incluindo nos eleitores do Partido Democrata: não envolveu a América em conflitos no mundo exterior, retirando-se até de alguns teatros de guerra, do Médio Oriente ao Afeganistão. Por isso, o governo de Joe Biden terá de mostrar inequivocamente que o establishment profissional de política externa - do qual ele próprio é um produto - é muito mais capaz de zelar pelos interesses da América, sem a sobrecarregar indevidamente. Terá de criar uma barreira às tentações de um intervencionismo liberal que, no passado, levou demasiadas vezes os americanos a intervenções duvidosas, desde os Balcãs ao Afeganistão, passando pela desastrosa intervenção militar no Iraque. E terá ainda de resistir à ideia simplista (por vezes também interesseira) da América liberal, de que derrubar ditadores faz as populações do Médio Oriente ou de outra qualquer parte do mundo, irem a correr para instalar uma democracia. No Iraque, no Afeganistão ou na Líbia ainda estamos à espera dela.

5. Como potência global, o maior problema da América de hoje é o dos custos crescentes, internos e externos, para se manter sem rival à altura. Desde o final II Guerra Mundial, a presença dos EUA no mundo tornou-se um motivo de orgulho para os norte-americanos, mas também foi extraordinariamente benéfica para o país. Permitiu-lhe obter uma influência ímpar na política e economia mundiais, da qual foram retiradas amplas vantagens. Todavia, a história mostra que a posição de supremacia das grandes potências não é eterna e está sujeita a quedas, mais lentas ou mais abruptas de poder. A presença dos EUA no mundo sofre agora a forte competição de rivais em rota de ascensão de poder, em particular a China, que tem a vantagem de não ter a sobrecarga da rede de alianças militares. Ao mesmo tempo, é internamente (res)sentida por um crescente número de americanos como um fardo (demasiado) pesado para uma contínua prosperidade das suas vidas. É uma tensão política que vai perdurar, ou até aumentar se, nos próximos anos, surgirem conjugações negativas de circunstâncias, internas e internacionais. Por outras palavras, o governo de Joe Biden irá enfrentar o dilema de manter uma presença global e de fornecer bens colectivos de segurança para os aliados (na NATO e noutras alianças, agora em particular na Ásia-Pacífico), sem continuar a deteriorar o bem-estar material de muitos americanos, especialmente os que se sentem perdedores da actual globalização. A sombra da China — e dos inúmeros problemas internacionais, alguns previsíveis como o nuclear do Irão e da Coreia do Norte, outros imprevisíveis —, vai pairar sobre o futuro governo de Joe Biden. A América vai finalmente virar a página política, mas os seus problemas mais profundos não se irão dissipar apenas por ter mudado de presidente.

(*) Investigador do IPRI-NOVA - Universidade NOVA de Lisboa / especialista em geopolítica