“Penso particularmente nos pecados cometidos contra a unidade da Igreja, das divisões no corpo da Igreja.” Assim falou o Papa Bento XVI durante a homilia de Quarta-feira de Cinzas, dois dias depois de anunciar a sua resignação, que se tornou efetiva a partir de 28 de fevereiro de 2013.
Aparentemente, a frase não é particularmente forte. Já na viagem a Portugal o Papa tinha sublinhado que os piores ataques à Igreja vêm de dentro, e não de fora.
Mas a verdade é que esta não foi nem a primeira nem a segunda vez que Bento XVI aproveitou discursos públicos para fazer críticas que tinham por objeto elementos internos da Igreja, o que por sua vez conduziu a muita especulação sobre o ambiente que o rodeava, no Vaticano e na cúria romana. A questão da cúria terá estado no centro das preocupações dos cardeais quando elegeram o Papa Francisco.
Durante o pontificado de Bento XVI consolidou-se uma imagem de intrigas e lutas de poder dentro do Vaticano. O padre John Wauck, professor na Universidade de Santa Croce, em Roma, conhece bem a realidade da Santa Sé e alerta que as coisas não são tão graves como parecem.
“A imagem da cúria como estando repleta de corrupção, ganância e cardeais sedentos de poder é muito exagerada. Na cúria, como em qualquer lugar, há defeitos, fraquezas humanas e pecado. Mas a vasta maioria das pessoas em Roma é muito humilde, trabalhadores dedicados que dão toda a sua vida e não procuram reconhecimento. São verdadeiramente homens de oração.”
O padre americano adianta: “Há pessoas que se deixam influenciar pelo orgulho? Claro, isso acontece sempre, mas não são uma maioria, de maneira nenhuma.”
Este problema, explica, coloca-se desde sempre e tem a ver com um paradoxo cristão: “A Igreja é santa, mas nós somos pecadores. A beleza do corpo místico de Cristo é sagrada, mas está constantemente a ser manchada pelos pecados das pessoas que nela vivem.”
Em todo o caso, diz o padre John Wauck, as várias instâncias em que Bento XVI fez críticas internas devem ser vistas no seu contexto próprio. A célebre meditação da quinta estação da Via Sacra, em 2005, elaborada por Joseph Ratzinger nos últimos tempos de João Paulo II, em que se lamenta “quanta sujeira há na Igreja, e precisamente entre aqueles que, no sacerdócio, deveriam pertencer completamente a Ele!”, diz respeito aos crimes de abusos sexuais praticados por membros do clero, por exemplo, tal como a referência aos ataques à Igreja, feita durante a viagem para Portugal.
Numa carta de 2009, endereçada aos bispos de todo o mundo, o Papa Bento XVI queixava-se, com franqueza, de ter sido “tratado com aversão sem temor nem decência” por alguns. Mas essa carta dizia particularmente respeito às conversações com os tradicionalistas da Sociedade de São Pio X, numa tentativa de reunificação criticada por muitos bispos católicos.
Noutras ocasiões, contudo, as palavras parecem mesmo ter sido motivadas por desgosto com a fraqueza moral das pessoas que o rodeiam. É o caso das palavras de Quarta-feira de Cinzas e do discurso aos cardeais, na altura do consistório de fevereiro de 2012, quando no auge do escândalo Vatileaks o Papa alertava:
“Domínio e serviço, egoísmo e altruísmo, posse e dom, lucro e gratuidade: estas lógicas, profundamente contrastantes, defrontam-se em todo o tempo e lugar”, pedindo aos novos cardeais “que a vossa missão na Igreja e no mundo se situe sempre e só ‘em Cristo’ e corresponda à sua lógica e não à do mundo, sendo iluminada pela fé e animada pela caridade que nos vem da Cruz gloriosa do Senhor.”
Raspanete no aeroporto
O hábito de usar a cadeira de Pedro para repreender altos membros da Igreja não é novo. O padre John Wauck recorda que João Paulo II criticou severamente alguns padres e bispos, e fê-lo mesmo de forma bem pública, como quando chegou à Nicarágua e deu um autêntico “raspanete”, de indicador em riste, a um sacerdote que aceitara um cargo político, enquanto este se ajoelhava à sua frente na pista do aeroporto.
“É importante recordar que antes do Segundo Concílio Vaticano o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé era o próprio Papa, por isso coisas como o ‘Syllabus de erros’ e as condenações de heresias vinham diretamente dele. Nesse sentido, uma preocupação com a unidade, sobretudo ao nível da doutrina, era parte comum da atividade do Papa e era frequentemente expressa nos termos mais firmes”, explica o sacerdote americano.
Pouco depois de ter sido eleito, o Papa Francisco anunciou mesmo a criação de uma comissão, composta por oito cardeais, para reformar a cúria romana, e ao longo do seu pontificado tornaram-se famosas as suas palavras, por vezes muito duras, dirigidas à mesma cúria.