O comércio está aberto, há carros e transportes públicos nas ruas, as pessoas circulam nos passeios, num país onde estão em vigor a lei marcial e o recolher obrigatório entre as 06:00 e as 22:00.
Mas dentro desta quase normalidade, semana e meia depois de a Rússia ter invadido a Ucrânia, persiste uma “ilha” de agitação na estação ferroviária, ponto de chegada e partida de dezenas de milhares de refugiados em fuga das zonas de conflito.
A maioria está em trânsito para a Polónia, a cerca de 80 quilómetros, alguns ficam na região, outros ainda fazem o caminho de volta.
É o caso de duas avós, Helena e Galina, ambas de 56 anos, que, no átrio da estação, se despedem de filhas e netos.
Provenientes de Nikopol (sudeste), escoltaram-nos durante uma semana até Lviv, onde permaneceram mais alguns dias para terem a certeza de que os familiares chegam à Polónia e que só regressam se as coisas acalmarem.
Já elas não tencionam esperar. Voltarão ainda hoje para uma das regiões mais atingidas pela ofensiva russa.
“Mesmo as pessoas das zonas ocupadas estão a manifestar-se e a gritar ‘fora!’. Se for preciso, farei o mesmo, se for preciso, vamos sabotá-los. E, se tiver de morrer, morrerei no meu país”, diz Helena.
“Podem ocupar tudo, mas não queremos a nacionalidade deles”, acrescenta Galina, que, da sua casa, a cerca de 60 quilómetros de Nikopol, consegue ver a central nuclear de Zaporizhzhya, há três dias atacada.
Fora da estação, um piano está disponível para quem quiser usá-lo e paira no ar música clássica, jazz e “What a Wonderful World” de Louis Armstrong.
Ainda no exterior, estendem-se duas filas, de cerca de cem metros, de pessoas a caminho da Polónia que ainda terão de atravessar os túneis, igualmente cheios, para finalmente chegarem à plataforma mais longínqua e à composição que as retirará do país.
Estas filas quase tocam o terminal rodoviário, onde mais refugiados se alinham para entrar na Polónia de autocarro.
É numa delas que se encontra Alexei, 27 anos, funcionário numa empresa de segurança em Kharkiv, que abandonou a mulher e o filho pequeno há cerca de uma semana, quando se intensificaram os combates nesta cidade do leste do país.
Um dos motivos para ter demorado todo este tempo é o facto de ser homem e dentro da idade elegível para responder à mobilização geral. Embora invoque incapacidade para participar na luta armada, conta que, no percurso para Lviv, foi barrado várias vezes e teve de alternar transportes e vias para contornar os controlos das autoridades.
Falta mais um, bastante rigoroso, na estação de Lviv, e é incerto se irá passá-lo e seguir com a família para a Polónia. Se falhar, sente que não tem volta atrás.
Antes de abandonar Kharkhiv, descreve, viu a sua casa em ruínas, após um bombardeamento, e não tenciona permanecer na Ucrânia: “De uma forma ou doutra, sairei daqui”.
Nas plataformas 2 e 3 chegam dois comboios quase em simultâneo. Um deles traz Kateryna, 33 anos, artista plástica, e Anastasia, 22, cabeleireira, provenientes de Zaporizhzhya (sudeste).
“A situação é muito séria porque a ocupação está próxima e ficou complicado viver em caves e sempre com medo. Não sabemos se estamos em segurança aqui, mas eu sou a pessimista”, conta Kateryna, que pretende permanecer em Mukachevo, na parte ocidental, e, dependendo da evolução da situação, juntar-se a um tio no Canadá.
Anastasia é a otimista, vai para casa de amigos em Varsóvia e acredita que os próprios militares russos vão acabar por perceber que a guerra vai ter de acabar. “Tenho muitos amigos lá e não quero que isto acabe em ódio”, declara.
Outra Anastasia, 39 anos, especialista em marketing, vai seguir com o marido, Igor, 39 anos, gestor de vendas, num dos comboios acabados de chegar para Zakarpatska.
Ambos abandonaram Kiev na sexta-feira depois de terem visto vários carros e uma casa atingidos por um bombardeamento. “Não morreu ninguém, mas foi o que precisávamos para tomar a decisão de fugir para oeste”, conta Igor, acrescentando que o primeiro objetivo é libertar a estação, porque “está sempre gente a chegar que precisa de espaço e espaço não existe”.
As plataformas estão cheias, as escadas entupidas de pessoas, mais as suas bagagens, até conseguirem alcançar o túnel, onde se vão juntar a mais gente que desembarcou noutras linhas e cruzarem-se ainda com os que estão de saída para a Polónia.
É uma multidão que voluntários de coletes amarelos e laranja tentam disciplinar, ao menos com dois sentidos, como numa estrada, através de gritos autoritários, que se somam ao choro de crianças e aos apitos dos comboios sempre a chegar e a partir.
Um dos sentidos conduz à plataforma 5, de onde partem refugiados para a Polónia. Para evitar a perigosa aglomeração de pessoas em desespero, que se verificou até há alguns dias, os passageiros são filtrados antes das escadas e sobem a conta-gotas.
Os homens já não são autorizados a subir para se despedirem das famílias junto às portas ou janelas dos comboios.
Finalmente, centenas de mulheres e crianças começam a embarcar, verificados os documentos, para uma partida sem data de regresso.
“Isto é muito duro para mim”, comenta uma militar. Outros vão ter de esperar pelo próximo comboio, que pode demorar horas, outros ainda pelo dia seguinte.
É nesta plataforma que estudantes de medicina de Lviv instalaram um posto clínico onde atendem diariamente casos de desmaios, dores severas de cabeça e no peito e crises de ansiedade.
“Em alguns casos chamamos um psicólogo, que vai dar um passeio por uma zona mais calma com eles até que fiquem mais tranquilos”, diz Bogdan, 19 anos, apontando também a existência de uma sala para mães e crianças, “onde conseguem ter algum sossego e calor”.
A população de Lviv está a adaptar-se a este novo e súbito fluxo de gente e, no exterior da estação, há voluntários a tratar de alojamento, apoio médico e distribuição de bens e comida. Entre eles Natalya, de 44 anos, que introduziu uma aplicação de telemóvel no seu bairro para que todos possam contribuir.
Na estação vive-se numa “ilha” e numa realidade paralela à da cidade, que, após algum recolhimento nos primeiros dias de guerra, foi retomando a sua dinâmica.
Mas Lviv também permanece em ansiedade face à possibilidade de um ataque, mesmo que a frente de combate mais próxima esteja a 500 quilómetros, nos arredores da capital.
“Putin está a guardar Lviv para a sobremesa”, uma piada de guerra que se tornou corrente.
Sacos de areia protegem as janelas de edifícios públicos, estátuas começam a ser tapadas e obras de arte removidas para lugar seguro. As aulas foram suspensas.
Observa-se a presença de muitos militares e forças de segurança nas ruas, alguns ‘bunkers’ com soldados no interior, comunidades são convidadas a identificar infiltrados russos e atos de sabotagem e as noites são sacudidas com o soar das sirenes, acompanhado da ordem de proteção em abrigos subterrâneos.
Neste domingo, dia de missa, a igreja greco-católica de Santa Anna está cheia. O padre Volodymyr tem algo a dizer sobre a guerra.
“Todos estão ansiosos, não só pelas suas vidas, mas pelo destino do país”, observa, acrescentando que o seu papel como clérigo “é usar essa ansiedade e dirigi-la para o lado certo, que é o cristão, e rezar para que se possa confiar em Deus.
Avisa contudo para o risco da interpretação de “dar a outra face”. Quando a face é a de um indivíduo, “ele deve evitar que a fúria se espalhe”. Quando a face é de crianças, velhos e inocentes, “não se pode ficar quieto e deixar de fazer a coisa correta: defender o país”.