Miguel Araújo Abreu é médico especialista em doenças infecciosas no Hospital de Santo António, no Porto, onde trabalha há 11 anos. Coordena a equipa que está na linha da frente no combate à pandemia da Covid-19. Todos os dias, acompanha quem chega ao hospital com suspeita da doença: do rastreio ao diagnóstico e até ao internamento.
À Renascença conta como se faz o combate ao novo coronavírus em hospitais sem recursos e com pessoal esgotado, num sistema que não soube antecipar o impacto de uma pandemia à escala global.
Este é o primeiro de vários relatos na primeira pessoa de médicos e enfermeiros de toda a Europa, que nesta altura lutam contra um vírus que já matou mais de dez mil pessoas e infectou quase 185 mil no continente que é agora epicentro da pandemia.
Texto editado a partir de uma entrevista.
Passo muito mais tempo no hospital do que em casa, nos últimos dias, passo mais noites no hospital do que em casa. Porquê? Porque quero ajudar conter o mais possível esta epidemia. Se eu baixar os braços, tenho a certeza que vai acontecer o mesmo que em Itália.
Nenhum sistema de saúde do mundo está preparado para enfrentar uma coisa destas. Estamos a falar de uma doença absolutamente nova, que não tem qualquer tipo de imunidade na sociedade.
É evidente que eu sinto muito cansaço. No meu hospital a equipa é reduzida. Nós temos muitos casos diários e, além disso, continua a haver outros doentes que necessitam de atendimento médico. E o SNS não é conhecido por ter uma abundância de médicos. À semelhança dos reagentes e dos ventiladores, nos países que estão a precisar deles, também os profissionais de saúde não se fazem de um dia para o outro.
O dinheiro não vale nada ali
Não temos restrição nenhuma de fundos, neste momento. Aos anos que trabalho no Serviço Nacional de Saúde e há sempre restrições de fundos impostas por vários Governos, de diferentes cores políticas, que têm apertado o financiamento na Saúde. Mas neste momento, isso não acontece.
Há dinheiro para tudo nos hospitais. Mas é um bocadinho como ter um milhão de euros no deserto e querer beber uma garrafa de água. O dinheiro não vale de nada ali.
O que acontece é que há uma demanda, uma procura imensa a nível mundial de material médico: equipamentos de proteção individual - daí que nos Hospitais Universitários de Coimbra se tenha recorrido a fatos de pintor para conseguir colmatar algumas falhas -, máscaras, reagentes para os testes…
Repito: o problema não é a falta de fundos; é a falta de disponibilidade dos fornecedores. Neste momento não há falta de material no hospital, mas há escassez de material no fornecedor. O que o hospital está a fazer é a tentar racionar o material existente, de forma a que, se a procura aumentar no futuro, não leve a uma falha.
No tratamento de casos suspeitos, se pensarmos que intervêm pelo menos, um médico, um enfermeiro e, depois, um auxiliar - para desinfetar todo o local depois de o suspeito sair de lá -, gastamos três equipamentos de proteção individual. Quando não é mais do que isso, porque às vezes temos de ir buscar o doente a uma ambulância. E quando entramos, temos de despir e voltar a entrar outra vez. No hospital encomendamos 10.000 unidades. E o fornecedor dá 500 num dia, 100 no outro...
Faltam testes e fornecedores
Estão a ser feitos testes, mas esses testes necessitam de reagentes e os fornecedores dos reagentes, por procura generalizada na Europa, escasseiam. Um dos laboratórios que usa para importar alguns reagentes está sediado em Barcelona e, a partir do momento em que a epidemia em Espanha começou a escalar, o Governo espanhol proibiu a exportação desse tipo de reagentes.
O que quer dizer que é com imensa ginástica que o nosso laboratório consegue arranjar reagentes, recorrendo a distribuidores alternativos. E o que é que isso faz? Faz com que nós tenhamos de agrupar muitos testes para os poupar - e, muitas vezes, os resultados saem mais tarde do que poderiam sair. Neste momento, isso não tem tido implicação no seguimento dos doentes. Mas poderá vir a ter no futuro. É algo que poderá vir a acontecer ainda que a Ministra da Saúde tenha anunciado recentemente que está em curso uma compra conjunta de reagentes para testes de diagnóstico ao nível da União Europeia.
Falta de ventiladores? Podíamos ter pensado nisto antes
Com o evoluir da epidemia, com o aumento do número de casos e, consequentemente, com o aumento do número de casos graves, poderá haver falta de ventiladores. Neste momento, em Portugal, não é uma questão que se põe - porque todos os doentes que precisam estão ventilados. E temos vagas.
O hospital teve de fazer uma ginástica muito grande. Foi criado quase do dia para a noite um serviço de urgência alternativo. De forma a que os doentes já internados no hospital com outras patologias não se misturassem com os doentes infetados com a Covid-19, foi criado um espaço paralelo, ao lado do serviço de urgência, com uma entrada independente, onde só assistimos doentes com suspeitas do novo coronavírus.
Se calhar podíamos ter pensado nisto antes e ter comprado isto mais cedo. Se calhar, quando começou a explodir em Itália, poderíamos ter comprado ventiladores.
Mas eu lembro-me que na epidemia de gripe A criticou-se muito a quantidade de medicamentos e vacinas que foram compradas para uma reserva estratégica do Governo. Eu via muitas pessoas a morrer de gripe A. Mas, cá fora, as pessoas diziam que era uma brincadeirinha, falando até nos interesses dos governantes com a empresa que fornecia o medicamento.
Podemos apontar o dedo a toda a União Europeia, que por uma questão económica e comunitária decidiu não fechar fronteiras - e, a partir daí, Itália tornou-se o foco. O mais importante para restringir em absoluto a epidemia seria, por exemplo, parar logo os voos de Itália imediatamente. Eu vivo no Porto: a quantidade de voos diários só de Milão há bem poucos dias eram quatro ou cinco. Só em meados deste mês [a 10 de março] é que o governo português decidiu suspender os voos entre Portugal e Itália.