O cérebro é uma coisa fascinante. Esta semana, ao fazer zapping, parei num documentário da RTP que se chama “Deus Cérebro”. Não vi o primeiro episódio, nada que não se resolva na RTP Play, mas não vou perder mais nenhum, quatro na totalidade.
Recomendo vivamente que veja, é extraordinário. Para não perder o interesse, vou pegar apenas num caso que foi referido como ponto de partida para esta minha reflexão. Uma senhora americana que tem uma especificidade rara designada “Memória autobiográfica altamente superior”. Vamos lá traduzir: esta senhora lembra-se com detalhe de todos os dias da sua vida desde os 13 anos. O que comeu, com quem esteve, o que fez em cada hora. Imagine o que é guardar na memória quase 15000 dias da sua vida como se tivessem sido ontem. Mais, lembra-se também de todos os acontecimentos ao nível nacional e internacional com que se cruzou na sua experiência pessoal.
Na altura pensei, espetacular, também quero!! Sol de pouca dura. Percebi de imediato que este dom pode ser uma maldição. Estas pessoas nunca esquecem as coisas menos boas que lhes aconteceram ao logo da vida. Já imaginou o peso que isso pode ter?
Segundo os investigadores que ali testemunharam, “precisamos de nos esquecer para que nos possamos lembrar do que é importante”. Assim sendo, fico com o que tenho, muito obrigada. Prefiro não me lembrar do que comi ontem ao jantar, do que não me conseguir esquecer, das minhas experiências negativas.
No meio de tudo isto, pensei neste estado de coisas em que nos encontramos: nesta aflição de perder alguém por incapacidade de resposta em tempo útil do SNS, nesta angústia de conviver à distância com familiares e amigos, nestas saudades que tenho de mim e da vida antes de tudo isto.
E os cientistas? Como é que vão avaliar mais tarde o estrago que isto provocará na nossa forma de estar, de nos relacionarmos, de nos entregarmos?
Sou adulta e tenho um lastro de memória que me vai permitir encontrar o equilíbrio quando isto passar, estou em crer. Lembro-me essencialmente dos mais pequenos, aqueles que estão a crescer sem o colo da família alargada, sem a partilha de brinquedos com os amigos, sem as brigas e os abraços que fazem falta à gente miúda para evoluir emocionalmente. Preocupa-me que cresçam com medo, sem vontade de arriscar, sem a desejável solidariedade com os que os rodeiam.
Senhores cientistas do futuro, quando um dia estudarem os cérebros desta geração apanhada no meio deste furacão, espero que não percebam a diferença. Será sinal de que nós, adultos, conseguimos reerguer aquilo que o vírus abanou. Vamos dar o nosso melhor.