Há muito azul em Halyna. No casaco impermeável com capuz para o vento ainda gélido do sul, na mala pequena com roupa e medicamentos , tudo está em azul, como se a história não fosse negra e os olhos da mesma cor não expusessem o sofrimento dos últimos dias.
Esta mulher, com mais de 70 anos, está a mais de 80 quilómetros de casa, à espera de um transporte no terreiro da Igreja Protestante no centro de Nikolaev, sul da Ucrânia. Não sabe para onde vai, mas não tem dúvidas de onde veio nem receio em contar como aqui veio parar, sem marido, sem filhos.
“Vivemos ao pé da Crimeia. Eles [russos] não deixam sair nenhuma criança de lá. Nenhuma. Estão lá muitas crianças e todos os nossos homens também, em cada canto. Nós conseguimos fugir, mas nenhum homem foi libertado. Eles [russos] dizem que vão dar armas aos homens para lutar contra os nossos soldados”, conta Halyna, a propósito de uma mobilização geral em curso na cidade de Kherson, de onde vem na companhia de outras mulheres da mesma idade.
O testemunho coincide com os relatos que chegam da maior cidade ucraniana conquistada pelos russos desde a invasão desencadeada há dois meses. Kherson, cidade portuária na foz do rio Dniepre, assiste à mobilização forçada de homens em idade de combate ou em sectores críticos como a saúde. Os relatos indicam que quem não cumprir as ordens russas pode ser executado. Os serviços de informações ucranianos dizem que o objectivo russo é colocar armas em ucranianos para que eles combatam os soldados do seu país.
Halyna começa a chorar cada vez mais, à medida que não pára de falar. “ Todo o nosso povo ama a Ucrânia e só lutará pela Ucrânia. O meu marido disse-me: ‘Se nos derem armas imediatamente vamos apontá-las a eles [russos] Nem uma única bala será dirigida à nossa gente” e o meu filho também diz que só receberá essa arma se a primeira bala for para eles”, conta Halyna, num choro convulsivo na manhã fria de Nikolaev.
Não há vida agora em Kherson, diz esta ucraniana numa voz que transmite uma enorme tristeza pela tragédia que se abateu sobre as suas comunidades.
“ Uma bala passa-nos pelas costas, é o medo total, a vida paralisada. Deixámos tudo para trás, apartamentos, casas, carros, tudo. Até estávamos dispostas a deixar estas malas e vir a pé se fosse necessário. Os objectos não são nada em comparação com a vida”.
Manter a vida e também os passaportes, acrescenta Halyna , pois sem eles nada é possível. Em cada um destes documentos, está contada uma vida. As regras de identificação implicam que o ucraniano deve manter o seu passaporte com fotografias actualizadas e guardadas no próprio documento. Uma mulher de 70 anos transporta no seu passaporte as fotos tipo passe que foi tirando ao longo da vida, nos termos da lei.
Quando começa a descrever a fuga de Kherson, a figura azul de Halyna começa a cruzar-se com um rubor que lhe avermelha o rosto. A fuga foi tudo menos fácil e é difícil de imaginar que possa ter ocorrido fora de um filme de acção do Ocidente.
Deixemos que seja Tatjana, uma mulher da mesma idade, a contar da forma mais calma possível como se sai de uma cidade ocupada.
“Vínhamos no autocarro com rapazes de cerca de 30 anos quando os soldados russos vieram e ordenaram que a viagem fosse feita só por mulheres, crianças e idosos. Mas nem uma única mulher quis deixar o seu marido e voltámos todos para Kherson. Eles ameaçaram disparar sobre toda a coluna se não voltássemos para trás. E quando íamos parar, eles começaram a disparar. Nesse momento começámos a fugir porque tememos que toda a coluna fosse metralhada” , relata esta mulher de rosto cansado, protegida por um gorro claro, um cachecol rosa e por um casaco quente e cinzento.
Enquanto conta esta fuga, olha frequentemente para o chão. Algumas lágrimas caem para serem limpas por um lenço azul e branco. Expressa-se em russo como quase todas as pessoas na Ucrânia, usando um tom não apenas triste mas incrédulo pela forma como tudo se processou.
“ Eles [russos] minaram a ponte e não deixam ninguém sair de Kherson. É impossível deixar a cidade. Nós conseguimos fazê-lo por milagre”, diz Tatjana enquanto a voz se vai embargando.
As mulheres na carrinha deram as mãos e começaram a rezar no momento em que Alexandre, o condutor, acelerou decisivamente estrada fora, rumo à região de Nikolaev.
“ Éramos dez, todos crentes e começámos a invocar o sangue de Jesus Cristo, a chamar por Ele. E Ele levou-nos nos Seus braços. Nós gritávamos ‘Jesus ajuda-nos!’ e fomos protegidos pelos anjos. Atrás de nós vieram mais 10 carros, ninguém conseguiu parar. Graças a Deus, o nosso condutor Alexandre, trouxe-nos para esta Igreja onde nos acolheram e deram de comer”, descreve Tatjana, tentando conter ainda mais lágrimas.
Halyna diz ter sentido que os soldados russos poderiam atirar a qualquer momento sobre qualquer pessoa. “ Os nossos militares é que são os donos da nossa terra, os russos são apenas convidados”, exemplifica esta septuagenária que sobe o tom de voz e dispara várias acusações dirigidas às tropas russas em Kherson.
“Eles mentem. Pedem dinheiro nos postos de controlo. São filas de cerca de 200 carros. Pedem dinheiro para se poder retirar uma criança de lá. Os condutores do primeiro autocarro pagaram aos russos para poderem passar. Quando chegou a nossa vez, não pagámos e eles mandaram-nos imediatamente para fora dali. Eles cobram dinheiro às pessoas e às vezes nem as deixam sair assim. Estão sempre a mentir”, indigna-se Halyna.
Fugiram ambas de Kherson na mesma carrinha onde vinha também uma mãe com um filho deficiente. Os soldados russos disseram-lhe que eles próprios a retiravam, com a criança, de Kherson. Mas a mãe deste menino recusou sair do veículo e exigiu sair da cidade na carrinha onde se encontrava.
Nas malas trazem apenas algumas roupas, os medicamentos de que precisam, objectos pessoais de primeira necessidade
“ Trago só o que preciso pata conseguir viver, não sei onde, não sei como. Tenho 71 anos e não acredito que tive que deixar a minha casa. Mas tenho esperança de voltar”, diz Tatjana que deixou o filho, o marido e os sobrinhos para trás. O seu discurso é contaminado por uma enorme tristeza no rosto, ainda perplexa com o que lhe aconteceu.
Halyna faz um discurso mais duro e emocionado. Expressa-se com as mãos dirigidas ao céu e logo a seguir ao peito. Fala do seu país com paixão e esperança na vitória.
“ Todos nós amamos a Ucrânia. A Ucrânia é um presente de Deus. Somos todos pacíficos, não queremos a guerra, não precisamos dela. Queremos paz, que toda a gente viva feliz na nossa terra que tanto amamos. É a mais rica e abençoada de todas”, diz Halyna mudando a sua expressão facial para um sorriso de hospitalidade.
Esta mulher não consegue conter para si as maravilhas que descreve na sua terra. “ Temos muitos campos e queremos ajudar toda a gente, para que a ninguém falhe nada na mesa. Nós podemos partilhar, somos pessoas trabalhadoras”, sorri um pouco apesar de toda a tragédia.
Diz que o seu povo nada teme e que nem a morte mete medo aos ucranianos. Pede ajuda a Deus e aos estrangeiros apela a que ajudem a fechar os céus da Ucrânia.
Halyna convida-me a visitar a sua casa depois da guerra, situada a 100 quilómetros da Crimeia. “ Tenho dois hectares de terra, tenho batatas, tomates, melões, melancias. Convido todos a visitarem-me quando formos livres. É uma benção viver ali, na costa do Mar Negro, nas suas águas limpas e muito bonitas. Somos gente tão gentil, oferecemos de comer e beber a quem queira visitar-nos”.
Halyna e Tatjana sabem de onde vêm mas por estes dias de Abril desconhecem onde vão passar a próxima noite, cada vez mais longe de casa e dos seus homens.