Há sempre conflito de interesses, quando alguém sai do Governo para trabalhar no setor privado, nas áreas que tutelou, diz o presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP), Manuel Soares.
Em declarações ao programa Em Nome da Lei da Renascença, em que debateu o caso dos dois ex-ministro de António Costa que transitaram para atividades privadas, nas áreas que tutelaram enquanto governantes, Manuel Soares diz que o interesse em contratar essas pessoas são as portas que podem abrir.
”Certas pessoas, que aparentemente eram desinteressantes, e continuaram a sê-lo durante o exercício de certos cargos, e depois foram promovidas a cargos melhores, é porque passaram a ter interesse e, portanto, não vale a pena nós discutirmos em abstrato ou em concreto se em determinada situação há conflito de interesses. Porque a interrogação já traz a resposta. Se não existisse conflito de interesses, as pessoas não eram contratadas. Porque o valor das pessoas é esse mesmo. É terem estado no exercício de funções governativas e terem adquirido contactos e conhecimentos que abrem portas que de outra maneira não se abririam”, afirma o presidente da ASJP.
Também convidado do Em Nome da Lei, o presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP), Adão Carvalho, defende que, na avaliação de casos como o do ex-ministro do Ambiente Matos Fernandes, que foi contratado para trabalhar a partir de setembro no Instituto de Conhecimento da Abreu Advogados, o que releva é quem paga ao ex-ministro e porque é que lhe paga.
“Não me importa saber se a pessoa é contratada por uma associação de estudos jurídicos ou um escritório de advogados”, defende Adão Carvalho. “Interessa-me é saber quem paga, e quem tem capacidade para pagar a essa pessoa, e porque é que a recruta. Se é para fazer estudos jurídicos ou se é para outra coisa. Isso é uma questão mais profunda que tem a ver com a ética do exercício da função política, que deveria ser uma questão em que todos nós devíamos batalhar.”
Bastonário não vê incompatibilidade
Adão Carvalho respondia ao bastonário da Ordem dos Advogados que não vê nenhuma incompatibilidade no facto de o ex-ministro Matos Fernandes passar a ser consultor do Instituto de Conhecimento da Abreu Advogados.
“Estamos a falar da ida de um ex-ministro, que é engenheiro, para prestar consultoria a uma associação científica, que deve dizer-se é uma associação conhecida na área, porque faz estudos jurídicos, embora esteja ligada a uma sociedade de advogados”, argumenta Menezes Leitão.
“Não conheço nenhuma outra atividade que a associação faça. E obviamente que um engenheiro não vai trabalhar para uma sociedade de advogados! Isso é uma coisa absolutamente impensável. E nunca poderia ser contratado para esse efeito, em situação alguma. Por isso digo, neste quadro, não estou a ver à partida nenhuma incompatibilidade. Pode ser que exista, admito que sim, isso cabe a quem de direito analisar, e acho muito bem que se coloquem questões à comissão parlamentar. Mas à partida, não estou a ver.”
A Iniciativa Liberal (IL) apresentou um requerimento à presidente da Comissão de Transparência e Estatuto dos Deputados, questionando se não haverá, no caso do ex-ministro do Ambiente a agora deputado, violação quer do regime do exercício de funções por titulares de cargos políticos e altos cargos públicos quer do Estatuto dos Deputados.
Mariana Leitão, do Conselho Nacional da IL, considera que situações como a de Matos Fernandes alimentam os populismos pelas dúvidas que suscitam, em matéria de conflito de interesses.
“Nós perguntamos à comissão parlamentar se esta nova função, como consultor do Instituto de Conhecimento, associado à Abreu Advogados, configura ou não um conflito de interesses. É fundamental clarificar, porque antes de mais temos um dever de esclarecimento dos cidadãos. Estas situações criam desconfiança nas instituições, nos atores políticos. Por isso, quanto mais escrutínio houver, quanto mais informação estiver disponível para os cidadãos, e mais dúvidas forem esclarecidas, mais envolvimento haverá dos cidadãos na vida política.”
A IL quer esclarecer dúvidas sobre se a atividade de consultor de Matos Fernandes, nas áreas que tutelou enquanto governante, num instituto de uma sociedade de advogados, é compatível com o Estatuto dos Deputados, uma vez que o ex-ministro do Ambiente exerce agora funções parlamentares.
Embora admitindo que não há impedimento legal, Mariana Leitão considera também pouco ético o comportamento do ex-ministro da Economia Pedo Siza Vieira que, em setembro, vai chefiar a equipa de advogados de uma sociedade em que irá trabalhar nas áreas que tutelou enquanto ministro da Economia.
Neste caso, dificilmente se poderá considerar que há um conflito com a lei, uma vez que Pedro Siza Vieira é advogado e o regime do exercício de funções por titulares de cargos políticos e altos cargos públicos prevê expressamente como exceção, aos impedimentos, o regresso à atividade exercida à data da investidura no cargo.
Matos Fernandes é contratado como lobista
O vice-presidente da Frente Cívica, João Paulo Batalha, diz que a contratação de ex-governantes é aliciante para as grandes sociedades de advogados porque “estas se tornaram sociedades lobistas”.
Os ex-governantes são contratados para abrir portas e facilitar contactos. ”Se Pedro Matos Fernandes, como diz o senhor bastonário, vai tão só trabalhar para uma associação que faz pareceres jurídicos, então eu pergunto porque é que essa associação não contrata Matos Fernandes, pontualmente, quando precisa dos seus conhecimentos na área do ambiente e da energia? Porque é que o contrata a título permanente? Porque não está a contratar um perito. Mas um lobista.”
João Paulo Batalha fala numa “inércia tóxica “ da sociedade portuguesa em relação aos conflitos de interesses e admite que não tem grande expectativa sobre o parecer da comissão da transparência porque, até agora, o Parlamento “nunca avaliou questões de ética, mas apenas a conformidade legal”.
De pouco nos serve um parecer jurídico nesta matéria porque “se a lei é suficiente, muito bem, mas a lei aqui não é suficiente. E não é suficiente exatamente para permitir estas carreiras, à saída do exercício das funções públicas. O facto de a lei permitir este tipo de condutas não nos diz que as condutas são boas, mas apenas que a lei é má porque as continua a permitir”, afirma o vice-presidente da Frente Cívica.
João Paulo Batalha diz que uma situação de maioria absoluta como a que o país vive, é a oportunidade política para fazer reformas. Mas confessa que “não tem visto essa energia reformista”.
O bastonário da Ordem dos Advogados admite, no entanto, que seja discutível que os advogados possam ser simultaneamente deputados. Diz que “é uma questão que divide a Ordem. Há posições num e noutro sentido”, mas, pessoalmente, prefere que a exceção às incompatibilidade dos advogados se mantenha, caso contrário seria a única profissão excluída do Parlamento”.
Sobre a situação de Pedro Siza Vieira, Menezes Leitão considera que “não há qualquer problema no regresso de um ex-governante à sua atividade profissional”. O bastonário indigna-se, sim, com as portas giratórias entre a magistratura e a política, por onde passam juízes e procuradores. “O advogado não tem nenhum poder de decisão. O que faz é patrocinar uma ação. E quem decide a ação não é o advogado!”
Conselho Superior da Magistratura é “reverencial” ao poder político
Manuel Soares concorda com o bastonário da Ordem dos Advogados. A independência judicial, “que é um elemento estruturante do Estado de direito, não se coloca em relação ao advogados. Mas apenas em relação aos juízes e aos magistrados do Ministério Público”.
Os Estatutos dos Magistrados não colocam qualquer entrave em que estes saltem da magistratura para a política e desta de novo para os tribunais. E o Conselho Superior da Magistratura, que tem de autorizar as comissões de serviço, dá luz verde a tudo. ”Quando um pedido vem da política, seja para ministro, secretário de Estado, chefe de gabinete, diretor de serviços, qualquer dia até motorista, o Conselho tendencialmente diz que sim. Há uma certa reverência, um temor reverencial, em relação a um pedido que vem do Ministros ou de um secretário de Estado. E o mal começa aí”.
Começa mas não acaba. O presidente da Associação Sindical dos Juízes defende, por isso, que é preciso também estreitar a malha da lei. Defende uma alteração do Estatuto dos Juízes, de forma a limitar ou impedir a transumância entre a magistratura judicial e a política, embora não clarifique se terá de passar por impedir um regresso à magistratura, dos que aceitem cargos políticos ou se os impedimentos devem ser colocados a montante.
E o que deve ser exigido aos juízes deve sê-lo aos magistrados do Ministério Público, porque “as competências que constitucionalmente lhe são atribuídas exigem-lhe que tenha a mesma independência dos juízes”, defende Adão Carvalho.
“Não é admissível que magistrados que exercem funções hierárquicas, nomeadamente ao nível da PGR, vice -PGR e procuradores gerais regionais, possam transitar diretamente dessas funções para cargos governativos. Até pelo poder que tinham nessa estrutura hierarquizada e pelo poder que quando saem ainda têm sobre essas mesmas estruturas.”
O presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público diz que “o Conselho Superior do Ministério Público deve definir as funções em que faz sentido aceitar as comissões de serviço e aquelas em que não faz”. E quanto ao regresso à magistratura, depois de funções políticas, Adão Carvalho defende que “devem ser impostos limites ou mesmo impedido esse regresso”.
Adão Carvalho argumenta que “num país que tem o índice de corrupção que é conhecido e em que a opinião das pessoas sobre o sistema político é de que há uma dose elevada de tráfico de influências entre o exercício das funções e após esse exercício, isto ainda prejudica mais a confiança dos cidadãos num Sistema de Justiça que se quer com uma imagem clara de independência.”
Além das questões éticas e legais que coloca a longa lista de ex-governantes que transitaram para atividades privadas nas áreas que tutelaram enquanto governantes, o Em Nome da Lei debateu também os conflitos de interesses que envolvem magistrados do Ministério Público e juízes, quando estes interrompem a sua carreira, para exercerem funções políticas, como aconteceu com a ex-ministra da Justiça Francisca Van Dunem, os ex-secretários de Estado Mário Belo Morgado e Antero Luís e o atual secretário de Estado Adjunto e da Justiça, Jorge Costa.
O Em Nome da Lei é emitido na Renascença aos sábados, a seguir ao meio dia. E está sempre disponível na Popcast, do Grupo Renascença Multimédia, e noutras plataformas de podcasts. O programa entra agora em férias, regressando a 10 de setembro.