Os focos estavam todos no "Aquarius", o barco de casco laranja, e nos que saíam lá de dentro. Os zooms de centenas de câmaras estivavam-se ao limite para tentar distinguir os vultos difusos, distorcidos pelo efeito ondulante do calor. “Já começaram a sair? Alguém já viu crianças?”. Os jornalistas tinham sido colocados a centenas de metros do lugar dos desembarques, no porto de Valência.
Ibrahim Younis, chefe de missão dos Médicos Sem Fronteiras na Líbia (MSF), aguardava no porto, com apreensão. Ele sabe ao que escaparam aquelas 630 pessoas que foram resgatadas no Mediterrâneo e que não tiveram de voltar para trás. Enquanto responsável pelas equipas dos Médicos Sem Fronteiras (MFS) na Líbia, viu os resultados das “violações e abuso massivo de direitos humanos” que sofre quem cai nas mãos das redes de contrabandistas e traficantes.
“Se pagares, continuas” a viagem, “se não tens de trabalhar para pagar”, conta à Renascença. É aqui que começam os problemas. “Abusos, extorsões, violência”. Ibrahim conta que há quem consiga escapar dos traficantes e se vá entregar aos centros de detenção dirigidos pelas autoridades líbias. “São melhores, mais seguros”. Estamos a falar em termos comparativos, numa relativização que se nivela pela assunção de que estar vivo é um luxo.
É para esses centros de detenção oficiais que são transportados os migrantes e refugiados resgatados pela guarda costeira local. Itália tem acordos com a Líbia, apoiados pela União Europeia (UE), para equipar e treinar as autoridades do país e transferir-lhes a responsabilidade de impedir que as embarcações partam das suas costas.
“O facto de colocarem tantos fundos ao serviço do controlo de fronteiras faz com que ignorem um pouco o resultado disso dentro da Líbia”, acredita. “Os recursos são muito poucos, motivo pelo qual não faz sentido a Europa encorajar os regates sem dar apoio dentro da Líbia”.
Havia mais de 700 mil migrantes na Líbia em fevereiro deste ano. Eram cerca de 432 mil em outubro de 2017, segundo dados da Organização Internacional para as Migrações (OIM). De acordo com as autoridades líbias, citadas pela Amnistia Internacional, pelo menos 7 mil dessas pessoas estavam em centros de detenção, em maio – uma subida enorme em relação às 4.400 registadas em março.
Potenciais refugiados ficam detidos durante meses ou anos
Os MSF só têm acesso aos principais centros, sobretudo em Trípoli. Ibrahim descreve o que lhe passou pelas mãos. “Longos tempos de detenção, problemas de pele, por causa da falta de higiene, malnutrição, há muita gente que fugiu da violência dos traficantes, há necessidade de várias cirurgias. Recentemente, recebemos migrantes que fugiram de redes de tráfico no centro da Líbia e que acabaram em centros de detenção. Recebemos cerca de 14 com feridas de balas. Dispararam contra eles. E há também algumas mortes.”
Os migrantes que não tenham direito a asilo são deportados, mas os “refugiados legítimos” “estão presos nestes centros de detenção”. Podem ficar detidos “um ano ou mais” nos centros líbios, enquanto esperam uma hipótese de serem reinstalados, conta o responsável da MSF no local.
A maioria destes refugiados “vem do Sudão, Eritreia, Somália, de partes da Etiópia” e está à responsabilidade do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), mas “eles têm muitos problemas em termos de acesso” a alguns centros “e também na reinstalação de pessoas num país terceiro”. O ACNUR alerta, permanentemente, para a falta de vagas.
“Eles movem-nos de um centro para outro. Nós só trabalhamos em Trípoli. Quando as pessoas chegam, registamos as datas de entrada. Mas quando lhes perguntamos, dizem que estiveram detidos em centros fora de Trípoli por cinco ou seis meses.”
Níger no limite da capacidade
Querer travar as travessias a qualquer custo, desenhando “políticas sem ter em conta os fatores humanos”, é “uma política falhada”, define o médico. Há um programa, desenhado pelas Nações Unidas e pela UE, para transportar temporariamente os requerentes de asilo para o Níger, até serem reinstalados na Europa, mas Ibrahim Younis assegura que esses centros de processamento também estão cheios.
Desde novembro de 2017, o Níger recebeu cerca de 1.150 pessoas, de um total de 1.474 evacuadas da Líbia, no âmbito do mecanismo de emergência criado pela UE.
Naquele fim de domingo, no porto de Valência, Ibrahim somava estes dados com a incerteza em torno das operações humanitárias de resgate no Mediterrâneo. Poucos dias depois já havia um novo caso, com o navio Lifeline. E logo a seguir outro, com o Open Arms, que chegou esta quarta-feira a Barcelona.
Matteo Salvini, o ministro italiano do Interior e líder da Liga, de extrema-direita, garante que os portos do país estão definitivamente fechados para todos os navios de organizações não-governamentais (ONG) estrangeiras que operem no Mediterrâneo Central.
“É verão, o mar está mais calmo e sabemos que mais barcos vão sair da Líbia”, sublinha Ibrahim Younis, que deixa o alerta: transferir a responsabilidade pelos resgates para a guarda costeira líbia é querer ignorar, conscientemente, o que se passa depois com quem é devolvido ao país.