Em entrevista ao programa Hora da Verdade, da Renascença e do jornal 'Público', a coordenadora do Gabinete de Proteção Financeira da DECO apela ao Banco de Portugal e à própria banca que informem "muito as famílias do que significa estarem a contratar crédito à habitação com taxas variáveis, têm de estar cientes do que isso significa, os riscos que estão a correr".
Até Setembro deste ano, o Gabinete de Protecção Financeira da Deco recebeu 20.036 pedidos de ajuda e de informação. Como é que evoluíram, entretanto, estes números?
Continuaram a aumentar e aquilo que nós verificamos é que, se até início de Setembro eram as famílias com mais baixos rendimentos que estavam a ser afectadas pelo aumento da fatura do supermercado, da eletricidade, do gás, a partir de Setembro começámos a ter mais pedidos de ajuda também destas famílias, mas, sobretudo, das famílias que tinham crédito à habitação. São essas agora, durante o mês de Outubro, essencialmente a maioria das famílias que nos está a pedir ajuda. Ou porque já teve a revisão da prestação do crédito à habitação e já está com algumas dificuldades em honrar os pagamentos ou porque está preocupada com as revisões que aí vêm. A maior parte das famílias tem um crédito à habitação com taxa variável indexada à Euribor a seis meses, isso significa que de seis em seis meses a prestação vai ser revista. E estamos numa fase em que as próximas revisões, estas agora e as próximas, hão-de ser de aumento das prestações e as famílias já começam e perceber isso.
Qual é perfil de quem pede ajuda e apoio à Deco? São pessoas da classe média, classe média baixa, já é transversal?
No primeiro semestre deste ano eram, essencialmente, as famílias de menores rendimentos que pediam ajuda. A partir de Setembro/Outubro nós vimos, inclusivamente, um aumento do rendimento médio da família que nos pediu ajuda. Se até ao início de Setembro eram famílias que tinham à volta dos 1000 euros de rendimento líquido mensal, em Setembro e Outubro nós vimos que já se aproxima dos 1500 euros. Isto mostra que também o perfil, em termos de rendimentos, está a aumentar. Isto acontece por causa das causas. Se no início do ano foi muito a questão da inflação aquilo que levou as famílias a terem dificuldades, aquilo que vimos agora nestes últimos tempos é que é o aumento da prestação do crédito à habitação.
E há muitos casos de vários créditos, como noutras alturas?
Sim, até porque nós, olhando para a média dos créditos das famílias que nos pedem ajuda, verificamos que, em regra, têm cinco créditos: há o crédito à habitação, que é aquele que tem maior peso em termos de volume, de montante; depois temos dois créditos pessoais e dois cartões de crédito. É o somatório de todas estas prestações que acaba por ditar as taxas de esforço das famílias que andam a rondar os 70%, pelo menos das famílias que nos pedem ajuda. Por outro lado, nós não nos devemos surpreender pelo número de créditos as famílias têm porque muitas vezes, quando elas contrataram o próprio crédito à habitação, para baixar o valor do spread, foi-lhes aconselhado pela própria instituição de crédito a celebrar um crédito pessoal a mais e a contratar cartões de crédito. Muitas vezes, aquilo que as famílias têm ainda hoje são aqueles créditos que contrataram aquando da celebração do crédito à habitação.
Apesar dos alertas da DECO, a Associação Portuguesa de Bancos tem dito tem desvalorizado um pouco a questão do aumento de pedidos de ajuda. Quem é que tem razão? Ou é no meio que está a virtude?
Nós sabemos que nem todas as famílias vão ter dificuldades em pagar a prestação do crédito à habitação decorrente do aumento da Euribor. Nós estamos cientes disso. Também nunca o dissemos. Mas sabemos que existe uma grande fatia das famílias que tem crédito à habitação, que vai ter muitas dificuldades em honrar o compromisso. Ou seja, também não nos parece que seja legítimo dizer que todas as famílias vão ter dificuldades, mas porque não são todas a ter dificuldades, não podemos deixar de apoiar aquelas que têm menores rendimentos e que vão ter muitas dificuldades. Nós sabemos que os rendimentos em Portugal, pelo menos para uma grande fatia de população, são relativamente baixos. Se estivermos a falar de uma família que tem rendimento correspondente a dois salários mínimos nacionais, por exemplo, ou pouco mais do que isso, e se tiver um aumento da prestação do crédito à habitação de 90 euros, por exemplo, isso acaba por fazer mossa. Não nos podemos esquecer que não são só esses 90 euros, são esses 90 euros a somar ao aumento da fatura do supermercado, ao aumento da electricidade, do gás, dos combustíveis. E tudo isso acaba por provocar ali uma grande derrapagem nos orçamentos das das famílias. E pode não levar logo na primeira revisão da prestação do crédito à habitação a que haja uma rutura, mas daqui a seis meses, a família vai ter um novo aumento e possivelmente aí já esticou tudo aquilo que era possível esticar. E a verdade é que no próximo ano não se antevê que vá haver um grande aumento em termos salariais, de rendimento. Dificilmente o rendimento acompanhará aquilo que vai ser a evolução da própria inflação e da Euribor.
"Olhando para a média dos créditos das famílias que nos pedem ajuda, verificamos que, em regra, têm cinco créditos"
Espera um cenário muito diferente daqui para a frente em relação ao que assistimos em 2008, em que as taxas de juro chegaram aos 5%. O caminho está a ser semelhante?
Em termos de evolução, eu diria que são situações diferentes. Para já, a Euribor está a subir muito mais rápido do que subiu em 2008 e algo que não era expectável porque nós, no início do ano, quando ouvíamos (mesmo os bancos) falar do aumento da Euribor, perspetivava-se que fosse um aumento lento e que desse tempo às famílias para se poderem organizar. Ora, não é isso está a acontecer e não foi isso que aconteceu em 2008. Por outro lado, nós temos uma inflação que, de acordo com os últimos dados, já está nos dois dígitos. Em 2008, não tínhamos estes níveis de inflação. É verdade que tínhamos um desemprego muito superior. Há aqui alguns aspectos que se tocam, nomeadamente a subida da prestação do crédito à habitação e o facto de muitas famílias não estarem preparadas para esta subida, nem perspetivarem que pudesse subir desta forma. Eu diria que, isto sim, é semelhante, mas penso que há aqui algumas grandes diferenças.
Se chegarmos a valores de 5% de taxas de juro, que cenário podemos ter?
Não são todas as famílias, mas vamos ter principalmente aquelas famílias que já têm taxas de esforço muito elevadas ou que têm baixo rendimentos a ter muitas dificuldades em honrar os compromissos. Daí todos os alertas e reivindicações que a Deco tem vindo a fazer. É verdade que, ao contrário daquilo que aconteceu em 2008, o decreto-lei n.º 227 de 2012 veio criar aquilo que todos nós já conhecemos como o PARI e o PERSI, que teve o grande mérito de derrubar uma parede, uma barreira que existia muitas vezes entre as pessoas e os bancos. E agora, por lei, o banco está obrigado a, sempre que detecta uma dificuldade do cliente, entrar em contacto com ele e avaliar qual é a sua situação financeira. Ou sempre que o consumidor, a família, entrar em contacto com o banco, a dar-lhe a conhecer as suas dificuldades, o banco tem obrigação de fazer uma avaliação e verificar se existe ou não viabilidade de reestruturar, de apresentar alguma solução. E essa também é uma grande diferença em relação ao que tínhamos em 2008, porque nós sabemos que a questão da vergonha e da falta de conhecimento por parte das pessoas acabam por ser barreiras que, se ainda hoje colocam, mais colocavam em 2008.
O Governo prepara-se para apertar ainda mais a malha à banca e obrigar a banca a renegociar mesmo os créditos. Isso foi prometido no debate do Orçamento pelo primeiro-ministro. Isto vai chegar para as famílias conseguirem responder à subida das taxas de juro?
Na opinião da Deco, poderá não ser suficiente porque também temos algumas dúvidas sobre se todas as famílias, mesmo reestruturando os créditos, acabam por conseguir cumprir. As nossas reservas têm muito a ver com créditos que já estão contratados no limite, por exemplo, créditos que já estão contratados com a duração de 50 anos, em que a idade das pessoas já vai até aos 80 anos - e nós sabemos que existe uma grande fatia destes créditos nesta situação - ou famílias com taxas de esforço muito elevadas. Temos muitas dúvidas e algumas reservas de que, mesmo reestruturando estes créditos, as famílias os consigam suportar. Daí entendermos que uma das soluções poderia passar por uma linha de financiamento semelhante àquela que houve em 2009, financiamento esse dirigido às famílias que fossem confrontadas com um aumento significativo da sua taxa de esforço por via do aumento da Euribor e que, durante um espaço de tempo, o Estado suportaria parte da prestação.
No fundo, o que está a dizer é que as renegociações não servem para todos os casos.
Não.
O que pode fazer uma família que está nesse limite? Já tem um crédito até aos 80 anos...
É uma resposta extremamente difícil. Nós temos de olhar para toda a situação financeira da família, fazer o seu diagnóstico financeiro, ver quais são os seus rendimentos e todas as suas despesas, desde água, luz, gás àquilo que ela gasta no supermercado, para tentar ver se é possível equilibrar e reduzir algumas destas destas verbas, ver se existem ou não outros créditos que pesem também na taxa de esforço do consumidor, da família. E depois de fazer essa avaliação toda e tentar optimizar ao máximo todas estas rubricas, então é olhar para o crédito habitação e pode eventualmente haver aqui alguma solução. Depende muito também do perfil e da causa das dificuldades. Se a diminuição de rendimentos existiu ou não existiu, se é uma causa temporária ou se se mantém...
Obrigar bancos a renegociar? "Uma das soluções poderia passar por uma linha de financiamento para famílias confrontadas com um aumento significativo da taxa de esforço (...) o Estado suportaria parte da prestação"
A DECO tem contas feitas sobre esta linha de financiamento que propõe, uma média que possa ser atingida?
Não. Nós olhámos para a experiência, já que foi algo que foi feito em Portugal, em 2009, e pareceu-nos que seria, atendendo à situação que estamos a viver e de forma não prejudicar as partes, nomeadamente os consumidores e a própria banca, que a existência de uma linha de financiamento seria uma boa solução, até porque nós ouvimos nos últimos dias a banca dizer aos consumidores que façam a renegociação que devem ter atenção porque depois vão ficar com a informação cinzenta, para não dizer negativa, no seu mapa das responsabilidades de crédito do Banco Portugal.
Ou seja, cadastro?
Cadastro, exactamente, porque todos nós temos, desde que tenhamos acesso a crédito, informação no Banco no Portugal — pode ser positiva ou negativa. Se renegociamos e se renegociamos devido a dificuldades financeiras, essa informação vai figurar no mapa de responsabilidades e, portanto, sempre que nós vamos a um banco pedir um qualquer crédito, ele vai consultar esta informação, e se houver esta informação, possivelmente não temos acesso ao crédito ou, se tivermos, vamos tê-lo com valores elevados.
E uma pessoa que se esforça por pagar é prejudicada no seu cadastro?
É verdade. Poderíamos agora que entrar numa grande discussão, até falar aqui da forma como algum do crédito está a ser concedido em Portugal, mesmo nos dias de hoje. E também, se calhar, devia haver outro zelo por parte de algumas instituições de crédito na avaliação da solvabilidade do consumidor no momento da concessão de crédito.
Mas isso é algo que tem de partir das instituições de crédito ou o Governo pode criar mecanismos para facilitar esse controlo?
A obrigação de fazer a avaliação da solvabilidade já está plasmada na lei e tem de ser devidamente cumprida por parte de toda a banca e com um rigor muito semelhante. Não pode haver maior rigor, por exemplo, no crédito à habitação — e nós sabemos que a concessão de crédito à habitação, pelo menos agora, nos últimos tempos, tem sido feita de forma muito mais responsável — enquanto temos outros sectores e outros tipos de outros tipos de crédito em que não existe todo este rigor. E a verdade é que é o conjunto de todos estes créditos que acaba por ditar a taxa de esforço das famílias e que pode ditar as dificuldades ou não.
Mas apesar desse rigor, nós temos ouvido e lido notícias de que já há outra vez empréstimos a 100% para compra de casa. Isso é uma preocupação ou são casos pontuais?
Eu diria que são casos pontuais. O que nos preocupa a nós na Deco, e até porque já passámos pela crise de 2008/2012 e estamos agora a ver novamente a situação a surgir, é as famílias começarem a utilizar algum crédito pessoal, algumas linhas de financiamento, a utilizarem os cartões de crédito até ao limite dos 'plafonds' para pagar prestações de outros créditos ou para pagar as despesas correntes. Isto acaba por provocar uma bola de neve. Foi algo que já aconteceu na crise anterior e é algo que nós começamos a ver de novamente. Se nós formos olhar para os nossos dados, e nós estamos a apoiar as sinalizar há 22 anos a esta parte, há algo que se mantém ao longo destes anos: aquele crédito que tem o menor incumprimento é sempre o crédito à habitação, porque as famílias vão utilizando as poupanças que têm, as ajudas da família e inclusivamente os cartões de crédito e algum crédito pessoal para pagar estes prestações. Mas a verdade é que estão a aumentar o seu endividamento e a sua taxa de esforço e muitas vezes chega a uma altura em que é insuportável.
A DECO já reuniu com algum elemento do Governo ao longo deste período em que começou a perceber-se que o cenário estava a agravar-se?
Nós enviámos aquilo a que nós chamamos uma carta-lobby, uma carta dirigida a alguns membros do Governo sobre essas questões, sobre a nossa perspetiva daquilo que está a acontecer e sobre algumas medidas que nós achamos que deveriam ser tomadas para ajudar as famílias neste momento.
"Famílias estão a aumentar o seu endividamento e a sua taxa de esforço e muitas vezes chega a uma altura em que é insuportável"
Quer concretizar alguma proposta que tenha sido feita?
As medidas são conhecidas porque aquilo que nós temos vindo a reivindicar é que a reestruturação do crédito à habitação seja feita de forma mais ágil. Eu não gostaria de dizer obrigatória porque eu tenho dificuldades em assumir que ela seja obrigatória para todas as situações, mas pelo menos que a banca fosse obrigada a justificar, sempre que não é feita a reestruturação do crédito à habitação. Por outro lado, além da reestruturação do crédito à habitação, há a questão da linha de financiamento. Estas duas medidas para nós não são únicas, claro, mas seriam fundamentais. Deixe-me voltar um bocadinho atrás e dizer-lhe o porquê de falarmos da questão da reestruturação. É verdade que nós temos o decreto-lei nº 227 de 2012, que já prevê a obrigatoriedade de a banca acompanhar a boa execução dos contratos e, sempre que detecta situações de degradação da situação financeira, integrar a pessoa naquilo que a lei chama o PARI. Mas obriga a que seja integrado, obriga a que seja feita a avaliação, mas não obriga à apresentação de uma proposta sempre que o banco chegue à conclusão de que não há viabilidade económica. O que nós queríamos era mudar precisamente esta parte, dizendo que sim, o banco não é obrigado, mas desde que justifique devidamente a família a razão por que não têm a capacidade financeira de fazer a reestruturação.
E qual é que foi a resposta?
Não tivemos resposta. Também estivemos na semana passada na Assembleia da República, numa audição promovida pelo PSD, em que se abordaram todas estas questões.
Ainda bem que fala do PSD porque o líder parlamentar do Partido Social Democrata, Joaquim Miranda Sarmento, ainda esta semana defendeu o aumento das taxas de juro e a política do Banco Central Europeu como parte da solução de combate à inflação. Como é que vê esta mensagem que está a ser passada pelo poder político e o maior partido da oposição?
Eu não queria muito entrar na questão política. Aquilo que lhe posso dizer é que me parece que todos temos a obrigação de ajudar as famílias que estão confrontadas com o aumento do custo de vida a ajudar principalmente as famílias mais vulneráveis. Por outro lado, em relação ao aumento do crédito à habitação relativamente às famílias, elas também têm de estar muito conscientes e penso que, nesse sentido, há um trabalho que tem que ser feito por todos, por nós Deco, pelo Banco de Portugal, pela própria banca, que é o de sensibilizar, informar muito as famílias do que significa estarem a contratar crédito à habitação com taxas variáveis, têm de estar cientes do que isso significa, os riscos que estão a correr. Agora, também parece que existe aqui todo um trabalho, eventualmente do Banco de Portugal, relativamente a promover que a banca apresente soluções aos consumidores que possam passar por taxas fixas, por exemplo, e por explicar de forma muito evidente aos consumidores, no momento da contratação, a diferença entre uma a outra e os riscos que correm entre estarem a contratar uma taxa fixa ou uma taxa variável.
Esse problema com a taxa fixa diria que é um problema das famílias que não usam porque não sabem ou dos bancos que não têm interesse em que a taxa fixa seja usada?
É dos dois, porque se as famílias também conhecessem e tivessem uma grande informação relativamente às vantagens e pudessem colocar no prato da balança a taxa fixa e a taxa variável, possivelmente havia mais a optar pela taxa fixa e, havendo mais famílias a querer optar pela taxa fixa, se calhar até tornávamos Portugal o produto em Portugal com outras condições diferentes das que tem hoje. Nós temos um exemplo em Espanha, que estava numa situação mais ou menos semelhante à nossa, em que a maior parte do crédito à habitação era com taxa variável, e hoje nós vemos que mais de 60% já é com taxa fixa. Nada impede que em Portugal não aconteça o mesmo. Só não acontece porque a verdade é que muitas vezes não nos é apresentada a taxa fixa ou então, quando nos é apresentada, vamos ver o valor das prestações e vemos que existe uma uma diferença muito significativa entre o valor da prestação da taxa fixa e da variável. É claro que nós queremos a prestação mais baixa. É verdade.