Sobrecarregadas com trabalho, dentro e fora de casa, as mulheres em idade activa são as principais vítimas do envelhecimento da memória, sobretudo quando começam a chegar à menopausa. Este número está a aumentar e a grande maioria não tem acesso aos cuidados de saúde de que precisam, alerta, em entrevista à Renascença, a neurologista Belina Nunes.
A diretora da Clínica de Memória, no Porto, sublinha ainda que perdas de memória são normais, em qualquer idade, mas não são todas iguais, algumas são mesmo alertas de problemas mais graves, que exigem atenção imediata, e que começam a surgir cada vez mais entre os jovens.
Na sociedade atual, em que se vive de olhos colados ao ecrã quase desde o berço, já há dados estatísticos, recolhidos em investigações médicas, que provam que estamos a perder características humanas pela redução da sociabilização.
Na véspera do Dia da Mãe, Belina Nunes destaca ainda o papel das progenitoras no desenvolvimento saudável do cérebro do bebé, e os cuidados a ter, desde a infância, com este órgão. Conselhos também incluídos no livro “Memória de Ferro”, da Manuscrito.
A partir de quando é que devemos começar a cuidar da memória?
A pergunta está na génese do próprio livro, porque as pessoas jovens e de meia-idade se queixam cada vez mais da memória. Por isso abarca todas as fases da vida.
Mas, normalmente, aquelas "brancas" ou a necessidade de começar a apontar aquilo que não queremos mesmo esquecer começa a surgir com o avançar da idade?
Nós podemos esquecer em qualquer idade. E esquecemos, e temos problemas em qualquer idade. É o caso do adolescente que leva o computador para a escola e não leva o carregador, os professores comentam muito isto. Há aqui uma falha de programação do próprio adolescente, as funções executivas dependentes do lobo frontal ainda não estão bem desenvolvidas e ele não se consegue programar.
Mas a nossa programação é a memória prospetiva. Quando o adolescente se esquece do carregador, é um esquecimento! Só que o adolescente aos 15, 16 anos, ao esquecer o carregador não tem o mesmo significado que alguém com 80 ou 75 anos, que começa a esquecer sistematicamente as tarefas do dia a dia e não consegue recordar eventos, mesmo do dia anterior.
Nas duas situações os sistemas de memória falham, e pode acontecer em qualquer momento da nossa vida, mas têm significados e consequências diferentes.
Saltou a idade ativa.
Na meia idade, quando estamos sobrecarregados profissionalmente, o que falha mais é a memória de trabalho.
Estamos a pensar em muitas coisas ao mesmo tempo e não conseguimos prestar atenção. O sistema de atenção é fundamental para fixarmos e podermos planear as nossas tarefas e esquecemos fatos muito importantes: agendas que temos para fazer, perdemos objetos, etc.
Isso pode acontecer em qualquer momento da vida. Ficamos sempre com mais medo quando estamos a envelhecer, porque as falhas são mais repetidas, têm consequências na função do dia a dia e já representam, muitas vezes, doenças que estão a afetar o cérebro e não propriamente uma disfunção transitória da memória.
Já enumerou três tipos de falhas de memória diferentes. Há mais ou estas são as principais?
Há bastantes mais!
As falhas mais comuns podem ser de várias naturezas. Uma das mais frequentes, que as pessoas se queixam muito, é a falha de nomes, só aparecem quando já não interessa!
Até existe a expressão "está na ponta da língua".
É universal! "On the tip of the tongue". Mas não é relevante. Pode ocorrer em qualquer idade, não pensemos logo que temos problemas neurológicos.
Depois há outros tipos de falhas de memória. Podemos pensar que recordamos perfeitamente um evento ou uma passagem de um livro, e não é verdade. Essas recordações podem estar completamente adulteradas.
Existem muitas diferentes possibilidades da memória nos atraiçoar.
Há também os episódios que marcam de forma negativa.
São as memórias emocionais traumáticas, que ficam connosco e que nós bem gostaríamos de esquecer e que não conseguimos.
Estas traições ou falhas da memória tanto podem acontecer por elas escaparem e esquecermos, completamente, ou por não esquecermos e ficarem fixadas.
A partir de quando ou em que situações nos devemos preocupar com estas falhas de memória?
Voltamos aos tempos da vida.
No envelhecimento, nas últimas décadas da vida, nos setentas, oitentas, noventas, é mais comum a memória falhar-nos, termos lapsos. Apenas temos que nos preocupar, nós e quem nos rodeia, se esses lapsos forem muito repetidos e com implicações na função do dia-a-dia.
Aí é um problema, seja em que idade fôr. Pode ser uma pessoa na meia idade, que está muitíssimo deprimida, por exemplo, ou que anda com uma sobrecarga profissional imensa, ou que anda sem dormir, e começa a falhar repetidamente.
É justamente essa a próxima pergunta: que fatores ou doenças têm implicações e prejudicam a memória?
O envelhecimento é obviamente um fator que prejudica o normal funcionamento da memória, temos de contar que vamos envelhecer também em termos cerebrais e podemos envelhecer melhor ou pior. No livro, tento explicar acerca da reserva cognitiva e da reserva cerebral, o que podemos fazer para minorar esses fatos.
Também podemos tentar minorar todos os outros fatores: a insónia e as outras doenças de sono, principalmente a apneia de sono, que é extremamente prejudicial à saúde do cérebro; a depressão, a ansiedade, o stresse crónico; nos adolescentes e jovens adultos, o abuso de substâncias.
Em termos de doenças, dediquei bastante atenção à diabetes, porque é menos conhecido que a diabetes é um fator de grande prejuízo da saúde do cérebro. A maioria dos doentes e familiares não têm noção de que a diabetes pode implicar muitíssimo com a saúde do cérebro e, nomeadamente, com o funcionamento da memória e com implicações realmente funcionais no dia-a-dia.
Há ainda as doenças associadas à perda de memória, como a demência e outras.
São as doenças que causam a perda de memória e que as pessoas mais associam à perda de memória, que inclui também a doença de Alzheimer.
Tento desmistificar isso: que a memória interessa em todas as fases da vida, não importa só no envelhecimento, e a perda não é causada só por doença de Alzheimer. A própria doença de Alzheimer não é apenas perda de memória, atinge muito mais funções.
Em termos estatísticos, quais são os problemas relacionados com a memória com mais incidência no país?
A depressão, com ansiedade, é muito mais comum do que a doença de Alzheimer. É evidente que nem todas as depressões causam disfunção da memória, mas muitas causam.
A pessoa deprimida aceita quase como natural não estar a funcionar em pleno, o que talvez devemos contrariar. A doença de Alzheimer tem uma prevalência que vai aumentando à medida que envelhecemos. Entre nós, também a demência cardiovascular, causada por acidente vascular cerebral, é muito frequente, mas afeta os grupos etários mais envelhecidos.
Quando temos queixas de memória que estão a implicar com a nossa função, com a nossa capacidade de estar no melhor possível das nossas funções de áreas cognitivas, temos de tentar avaliar porquê. É muito importante tentarmos perceber qual é a causa.
Já exerce há algum tempo, nota um aumento de doentes ou de queixas entre pessoas mais novas, em relação à memória?
Sim!
Clinicamente, não surgem mais pessoas jovens porque não atribuímos grande importância às queixas da memória quando somos mais jovens. Não quer dizer que não aconteçam e não devessem ser avaliadas e até, por vezes, intervencionadas.
O grupo da meia-idade, principalmente nas mulheres, é muitíssimo sobrecarregado do ponto de vista familiar e profissional, e tem muita quebra cognitiva, por exemplo, à volta da idade da menopausa, que por vezes não é bem acompanhada e não é bem aconselhada.
A mulher está em perda, em depressão, em ansiedade, por não estar a funcionar no seu pleno, e não tem o acompanhamento necessário.
Há aqui uma falha no sistema de saúde? São necessários mais mecanismos de apoio ou alertas para estas situações?
Tem sido repetidamente falada a saúde mental e tem havido um grande esforço para chegar cada vez a um maior número de pessoas.
É evidente que as sociedades actuais e a pressão laboral, as pressões sociais, fragilizam muito o indivíduo e é possível que o número esteja a aumentar e que não haja resposta suficiente. É uma abordagem que tem de ser feita, mais abrangente. Tenho a perceção de que haveria mais pessoas ainda a precisar de orientação, de ajuda e de apoio, quer psicoterapêutico, quer farmacológico, do que realmente as que conseguem obtê-lo.
Como se podem prevenir estas situações? Pode deixar alguns conselhos práticos?
Eu insisto muito que b porque o cérebro começa-se a formar muito cedo, o sistema nervoso central, e é para a vida, é um investimento.
As dificuldades que tem havido recentemente acerca dos nascimentos mostram que ainda temos algumas fragilidades em cuidar dos novos seres. Os primeiros anos de vida são fundamentais, a alimentação é fundamental.
Os ecrãns, a falta de interação, que se vê cada vez mais, com as crianças largadas, a educação apenas através de ecrãs, sem interação com os pais, com os irmãos, com outros seres. Nós somos um animal social. Nós sempre vivemos em grupo, sempre interagimos, aprendemos sendo ensinados. Se perdermos tudo isto que faz com que o nosso cérebro seja diferente, que tenha capacidades extraordinárias, podemos estar em perda e não em ganho!
Estão a aumentar as preocupações ambientais, a defesa da sustentabilidade e a promoção do slow living, mas ainda estamos a fazer a transição da sociedade de consumo e do fast food. Vivemos cada vez mais presos aos ecrãns, como mencionou. Este modo de vida deverá agravar os problemas de mémória, no futuro?
Não só de memória. Creio que sim. Os dados que começam a surgir não são otimistas, dados em investigação em neurociências. E não tem só a ver com a memória, abrange as capacidades verbais, as capacidades de raciocínio, de funcionamento executivo, de planeamento, de interação social, de empatia.
Existem já algumas evidências que mostram que estamos a perder algumas das nossas peculiaridades enquanto humanos e não sabemos bem se estamos a substituí-las por funções melhores ou piores.
Nas crianças, em particular, tem maior impacto?
A interação com ecrãs é muito, muito precoce e vê-se cada vez mais crianças praticamente ainda em cadeirinha com o seu ecrã. É uma estimulação visual contínua, estimula apenas os centros da recompensa.
A criança fica "viciada" desde muito cedo em estímulos visuais, não desenvolve outras capacidades: a linguagem, interagir com o outro, controlar os impulsos - uma das maiores dificuldades do ser humano.
Todas as características fundamentais para vivermos em sociedade, poderão não estar a ser desenvolvidas da melhor maneira, nos enquadramentos sociais da atualidade.