Supertuesday. Guia de leitura política
28-02-2016 - 16:52
 • José Bastos

“Trump pode chegar a Cleveland à frente, mas sem maioria”, diz Álvaro Almeida. “Está tudo em aberto”, indica Nuno Garoupa.

Há vitórias que transcendem as suas circunstâncias mais básicas. O triunfo de Hillary Clinton, confirmado na última madrugada, na Carolina do Sul pode pertencer a essa estirpe particular.

No duelo com o senador Bernie Sanders, para a nomeação presidencial do Partido Democrata, Clinton obteve 73,5% dos votos. A vantagem é esmagadora, não só porque é impulso decisivo para a próxima Super Terça-Feira, dia 1 de Março, quando votam 11 estados, mas porque se funda num elemento chave da grelha de leitura eleitoral: o apoio maioritário dos votantes de raça negra e latinos.

Hillary Clinton associou-se ao legado de Obama em fim de mandato reivindicando a sua experiência e décadas de relações com as minorias. Na chamada Supertuesday, a maioria dos estados a votar nas primárias está no sul dos Estados Unidos onde a ex-secretária de estado tem, teoricamente, mais apoio que Sanders na população negra e latina.

No “Conversas Cruzadas” deste domingo, Álvaro Santos Almeida, ex-quadro superior do FMI em Washington, desenhou com Nuno Garoupa, professor da Universidade do Texas A&M, o guia para seguir a jornada eleitoral das primárias, a 1 de Março.

“O indicador decisivo nesta super terça-feira anda à volta de Bernie Sanders. Se Sanders ‘sobreviver’, no sentido de poder continuar, na corrida democrata, aí provavelmente temos Michael Bloomberg a entrar na corrida. Um cenário a mudar radicalmente o quadro eleitoral”, afirma o ex-quadro do FMI em Washington.

“Quanto ao republicano Marco Rubio deve procurar inspiração em António Costa: não é preciso ganhar umas eleições para ser vencedor. Esta leitura aplica-se nas primárias nos Estados Unidos, sustenta o professor de Economia da Universidade do Porto sem recusar um leve traço irónico.

“Trump até pode ganhar as primárias em todos os estados, mas, ao contrário das presidenciais de Novembro, a maior parte das primárias republicanas elegem delegados à Convenção reflectindo os votos de forma proporcional. Outros estados não o fazem. Concedem todos os delegados ao candidato com mais votos”, prossegue Álvaro Santos Almeida.

“A Florida é um dos exemplos do ‘winner takes it all’. A própria Carolina do Sul tem um método semelhante, não exactamente idêntico, e por isso é que Trump possui, neste momento, mais de metade dos delegados eleitos, porque conseguiu ganhar na Carolina do Sul e, aí, obteve quase 50 dos seus 81 delegados”, nota.

“Mas nos outros estados não é assim. O que significa que enquanto Trump continue a ter votações na casa dos 30, 40%, como tem tido, não tem obtido 60% dos delegados. É perfeitamente possível chegar à Convenção do Partido Republicano (18 Julho, Cleveland) com Trump sendo o candidato com mais delegados, mas sem a maioria que lhe permita ser o escolhido para a corrida presidencial”, sustenta Álvaro Santos Almeida.

Nuno Garoupa partilha do essencial desta análise, sublinha que todos os cenários estão em aberto. Professor da Universidade do Texas A&M, o economista sublinha a imprevisibilidade do quadro eleitoral, em particular, à direita do Partido Democrático.

“Estou genericamente de acordo. A questão é saber se, no Partido Democrático, Sanders acaba aqui ou vai continuar o que cria, de facto, uma dinâmica diferente. No Partido Republicano confirmar-se que Trump pode até a estar a ser o candidato mais votado, mas sem a maioria dos delegados”, diz.

“Outro cenário que não descartaria era que, se de facto, na Convenção Republicana houver uma união dos outros candidatos contra Trump que o próprio Trump seja candidato independente. Até é possível que estas eleições presidenciais nos Estados Unidos venham a ser disputadas a três”, admite o economista.

Nuno Garoupa: “Votos em Trump e Sanders são resposta a expectativas criadas por Obama”

Em 2008, os Estados Unidos preparavam-se para escolher o seu primeiro presidente negro. O democrata Barack Obama prometia uma nova atmosfera e o fim de décadas de divisões profundas na sociedade norte-americana. Idealista e prático, Obama desenhava um novo tempo.

Em 2016, oito anos depois, Donald Trump, um empresário polémico com uma incontinência verbal no limite da ofensa xenófoba, tem possibilidades de ser candidato às eleições de Novembro. Até há poucos meses a mera possibilidade de Trump – com uma plataforma mista de propostas ultraconservadoras e improvisação progressista - suceder a Obama estava próxima do irracional. Agora continua a ser muito remota, mas deixou de ser absurda por mera hipótese. A verdade é que a liderança nas primárias não significa que Trump será nomeado candidato pelo Partido Republicano ou sequer que ganhará as presidenciais de 8 de Novembro.

Mas como se chegou até aqui? A eclosão de fenómenos como Donald Trump, no Partido Republicano ou Bernie Sanders, no Partido Democrata dizem-nos exactamente o quê sobre a crise das democracias ocidentais representativas?

Há elementos comuns a Sanders e Trump de discurso anti-sistema, mas também fadiga com a classe politica. Como pano de fundo há uma paisagem de híper mediatização e efeitos da globalização a imprimir no cidadão comum a sensação de que o financeiro se sobrepôs à política.

Nuno Garoupa, sublinha as diferenças Trump/Sanders e coloca Obama no ponto de mira. “O fenómeno decorre, entre outras causas, da insatisfação existente em grandes franjas do eleitorado sobre o facto do eleitorado exercer o seu direito de voto e, depois, esse direito de voto não se repercutir na alteração do que as pessoas entendem ser as políticas públicas”, diz o presidente da comissão executiva da Fundação Francisco Manuel dos Santos.

“É preciso não esquecer que a expressão das votações em Sanders e Trump é, em larga medida, uma resposta às expectativas criadas – e não concretizadas - pela presidência Obama. Mas Sanders e Trump não representam exactamente o mesmo”, assinala Nuno Garoupa.

“Enquanto Sanders é apoiado claramente por um eleitorado urbano, jovem e até de classe média-alta, com o eleitorado tradicional de esquerda ainda largamente fiel ao ‘establishment’ que é Hillary Clinton, à direita, nos últimos 10 anos, o Partido Republicano, mercê da sua incapacidade de responder aos problemas dos Estados Unidos, acabou agora de criar um candidato populista”.

“Um candidato em que metade do Partido Republicano não se consegue rever. Por populista entendo um candidato que tem respostas simples para problemas complexos e que, portanto, a sua possível eleição seria uma grave ameaça aos Estados Unidos e a todo o mundo”, acentua Nuno Garoupa.

Álvaro Almeida. “Trump e Sanders são duas faces da mesma moeda”

Álvaro Santos Almeida defende que os casos de improváveis sínteses ideológicas se multiplicam na política mundial num contexto a favorecer a emergência de populismos.

“Donald Trump não é fenómeno único. Aliás, nos Estados Unidos há dois: Trump e Bernie Sanders são duas faces da mesma moeda. Representam exactamente a mesma coisa: a insatisfação com o sistema. Um fenómeno que se multiplica com ‘irmãos’ noutros sítios, o Bloco de Esquerda em Portugal, por enquanto, o Podemos em Espanha, a Frente Nacional em França.

“Todos com o mesmo elemento comum: a insatisfação face ao sistema, mas sem propor alternativas concretas. Porque nenhum deles propõe uma alternativa directa. Se perguntarem ao Donald Trump que medidas concretas propôs, a única, objectiva e identificável, é a construção do muro a separar os Estados Unidos do México. Se perguntarem a Bernie Sanders é a de apenas taxar o grande capital. Não propõe mais nada”.

“A questão que devia ser objecto de reflexão é porque razão, agora mais que no passado, temos os movimentos anti-sistema a ter uma capacidade de se fixarem no eleitorado que nunca tiveram no passado. Na minha opinião é pelo sistema estar a ser vítima do seu próprio sucesso”, sustenta o professor da Universidade do Porto.

“O sistema criou expectativas irrealistas e a partir do momento em que não são concretizáveis gera-se insatisfação. Não havendo alternativa o populismo encontra terreno para vingar. Com duas versões do mundo contraditórias como na Guerra Fria, um universo capitalista e outro comunista, as pessoas podiam avaliar e comparar. Podiam preferir o menos mau. Agora não. Só conhecem a economia de mercado. Ninguém lhes apresenta uma alternativa”.

“Faz parte do tacticismo eleitoral de todas essas correntes não apresentar alternativas passíveis de escrutínio e comparação e os eleitores acreditam ser possível mudar. E, sobretudo, como essas correntes não são do sistema e, portanto, podem sempre afirmar que se lá estivessem se permitiam fazer melhor têm conseguido convencer franjas do eleitorado”.

Nuno Garoupa: “A questão é saber se o ‘establishment’ vai fingir de novo”

Na campanha para as eleições de Novembro nos Estados Unidos todos se voltam contra o ‘establishment’ essa entidade difícil de definir, mas com influência ilimitada na política e economia comprometendo a coesão social. ‘Establishment’ pode ser o conglomerado financeiro de Wall Street ou a rede de relações oficiais e sociais em que o poder de Washington é exercido ou outra qualquer malha imprecisa e disforme. A derrota de Bush e a subida de Trump são a prova da derrota do ‘establishment’ republicano? Mas a provável vitória de Hillary mostra que a mesma “casta” do Partido Democrata está viva?

Nuno Garoupa defende que, vença quem vencer, o desconforto social não pode ser ignorado pelo ‘establishment’ o que quer que ele seja: Casa Branca, Congresso, lobbies de Washington, tv’s, ou dinastias Kennedy, Bush, ou, agora, Clinton.

“O Partido Republicano foi sistematicamente perdendo eleições nos últimos 10 anos porque estava dominado pelo Tea Party. A actuação do ‘establishment’ foi, depois de cada susto, varrer o problema para debaixo do tapete. A questão que se coloca desta vez é exactamente a mesma”, afirma o professor da Universidade do Texas.

“Mesmo continuando a achar que Hillary Clinton continua a ter a maior probabilidade de vencer em Novembro a questão é saber se o ‘establishment’ norte-americano vai fingir não existiu todo este voto de protesto que nas primárias se sentiu nos dois grandes partidos norte-americanos. Isso é que pode ter sérias consequências a prazo”, faz notar Nuno Garoupa.

“O que está a acontecer hoje é, em parte, consequência desta ideia de varrer para debaixo do tapete aquilo de que não se gosta. Por isso chegámos onde chegámos: aqui”.