A Rússia e a Turquia anunciaram esta quarta-feira um acordo que permite pôr fim ao conflito no nordeste da Síria.
O acordo satisfaz a Ancara, uma vez que prevê a retirada de todas as forças curdas de uma distância de 30 quilómetros ao longo de toda a extensão da fronteira entre a Síria e a Turquia. Em vez de Erdogan controlar todo esse território, contudo, a chamada “zona segura” será garantida por militares russos e soldados fiéis a Bashar al-Assad. A Turquia fica apenas com as cidades e vilas que já tinha tomado desde que atacou o nordeste da Síria.
Não ficou claro se a Turquia poderá prosseguir com o seu plano de construir urbanizações do lado sírio da fronteira para albergar cerca de três milhões de refugiados sírios que estão atualmente na Turquia, criando assim uma comunidade tampão de cidadãos árabes numa zona tradicionalmente habitada por curdos e cristãos.
Bashar al-Assad também sai a ganhar uma vez que vê o regime a ocupar mais terreno, ainda que com o apoio direto de Moscovo. A Rússia já disse que as forças turcas não poderão permanecer na Síria a longo prazo, por isso a perspetiva é de recuperar toda aquela zona. O plano permite ainda obter o reconhecimento tácito da sua legitimidade por parte da Turquia e põe fim, efetivamente, ao sonho de curdos e seus aliados de outras etnias de formar uma zona autónoma no nordeste da Síria, assente no respeito pelas identidades étnicas e religiosas dos seus habitantes ancestrais, incluindo curdos, árabes e cristãos. Este projeto era profundamente desconfortável para Assad, cujo regime ditatorial assenta na ideia de controlo direto e promoção de uma identidade nacionalista, evitando a todo o custo divisões étnicas e religiosas.
Os grandes derrotados, com a implementação deste plano, são as YPG, milícias curdas que compõem as Forças Democráticas da Síria, uma coligação de grupos militares de base étnica, mas da qual os curdos formavam a maior fatia, de longe. O acordo apresentado por Putin e Erdogan, ao fim de uma reunião de mais de seis horas, não refere outras milícias como as árabes e cristãs que combatiam juntamente com a YPG, mas sem os curdos estes grupos perdem força e influência, tornando-se praticamente irrelevantes.
A Rússia já deixou claro que não vai defender os curdos se eles não obedecerem à ordem de retirada. Forças russas e sírias já estão na zona para ajudar a YPG a retirar até ao limite dos 30 quilómetros, mas o porta-voz do Kremlin disse aos jornalistas que, caso os curdos insistam em ficar para trás para combater os turcos, a Rússia e a Síria serão obrigados a retirar da zona para deixar Ancara lidar com as milícias à sua maneira. Embora as forças turcas e as milícias por elas apoiadas tenham revelado grandes dificuldades em avançar contra os curdos desde que começou o ataque, a longo prazo os curdos não têm forma de resistir ao segundo maior exército da NATO.
Durante a reunião com Putin, Erdogan disse que a Turquia não vai permitir que militantes curdos continuem na zona da fronteira “com roupas do regime”, indicando que não aceita que as milícias sejam simplesmente integradas nas Forças Armadas sírias. Já Bashar al-Assad afirmou, num encontro com militares, que todos os curdos que queiram ser integradas nas Forças Armadas do regime beneficiarão de amnistias.
A Turquia considera que as YPG são apenas uma extensão do PKK, um grupo terrorista que atua em solo turco há décadas, levando a cabo uma insurgência contra o Estado a partir de zonas curdas.
Também descontentes ficam as milícias que foram armadas e apoiadas por Ancara para encabeçar o assalto ao nordeste da Síria. Formados sobretudo por combatentes sírios antirregime, que já tinham sido derrotados militarmente pelas forças sírias apoiadas pelos russos em várias partes do país, e empurrados até à fronteira com a Turquia, esses grupos consideram-se agora traídos por um plano que acaba por ceder território anteriormente ocupado pelas SDF ao regime, ficando os opositores a Assad com uma mão cheia de nada.
Por fim, saem derrotados os Estados Unidos, que perdem a pouca influência que ainda tinham na região e vêem a Rússia a consolidar a sua posição hegemónica naquela parte do mundo. Na apresentação do plano à imprensa, o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, não poupou críticas aos Estados Unidos, que acusou de terem traído os curdos que foram aliados de Washington no combate ao Estado Islâmico.
Alemanha propõe zona desmilitarizada
O anúncio do acordo entre a Rússia e a Turquia surge no mesmo dia em que a Alemanha propôs que a comunidade internacional implemente uma zona desmilitarizada no nordeste da Síria.
O plano é bem visto pelos Estados Unidos que, todavia, dizem que este deve ser implementado pelos países europeus, uma vez que Washington não tem interesse em manter uma força militar na zona. Foi precisamente a retirada de forças americanas do nordeste da Síria que permitiu a invasão turca.
Aparentemente, porém, o plano alemão surge demasiado tarde, uma vez que nenhuma das forças que está de facto no terreno tem qualquer interesse em vê-lo implementado.
A incursão da Turquia no nordeste da Síria durou cerca de duas semanas e fez mais de uma centena de mortos do lado sírio da fronteira, e vinte do lado turco. Várias cidades, vilas e infraestruturas foram destruídas e mais de 300 mil pessoas fugiram das suas casas.