O presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), D. José Ornelas, diz que a luta ideológica não permite a concretização das melhores soluções para o país.
"Não somos capazes de chegar a programas de regime", lamenta o também bispo de Leiria-Fátima, em entrevista à Renascença e à Agência Ecclesia.
“Os nossos discursos, nestes dias, são blá-blá-blá, não trazem soluções”, reforça D. José Ornelas, apontando as dificuldades verificadas no sector da saúde como exemplo de uma disputa ideológica que esquece "os problemas das pessoas".
"O sistema de saúde está a colapsar”, aponta o prelado madeirense, defendendo que seria fundamental a procura dos “consensos necessários para solucionar os problemas" porque “isto não é uma questão de ideologia, mas sim uma questão de humanidade”.
É neste quadro que o presidente da CEP encontra “pouca lógica" na legislação da eutanásia. Para D. José, “as alterações feitas” ao diploma “só alargaram mais o leque de acesso e com formas preocupantes”.
O presidente da CEP diz aguardar com tranquilidade o relatório da Comissão Independente sobre os casos de abusos sexuais na Igreja, considerando que o mais importante é que se conheça a realidade. "É muito importante ter a consciência de que estas coisas não são para calar", defende, apontando o documento cuja divulgação deverá ocorrer em fevereiro como "muito importante para a Igreja".
D. José Ornelas sustenta que mais do que saber os números é fundamental "tirar consequências" e repudiar "a aberração dos abusos".
O bispo recorda que “cuidar de uma criança é precisamente o tema do Natal”, num momento em que “Deus vem para o meio de nós feito criança”, pelo que “a aberração dos abusos é absolutamente o contrário disto”.
Noutro plano, o presidente da CEP diz compreender as reações negativas que provocou o "Relatório de Portugal" para a Assembleia do Sínodo dos Bispos sobre a Sinodalidade e afirma que “faz falta uma Igreja que desperte as qualidades e os sentimentos que as pessoas têm".
D. José Ornelas confessa que o seu maior receio é provocado pelos unanimismos e diz o Sínodo tem como objetivo a criação de "uma Igreja onde todos" possam colaborar e sustenta que não se pode ignorar a realidade.
“Quem preside e quem dirige na Igreja não deve ser antes de mais um domador de leões; antes de domar, é preciso ser criador de leões. Porque isso faz falta”, reforça.
Afirmou na mensagem de Natal dirigida à diocese de Leiria-Fátima que vivemos o Natal num “quadro mundial dos mais dramáticos dos últimos decénios”. A causa está só na guerra na Ucrânia?
A guerra da Ucrânia já de si é uma consequência de processos sociais, políticas e económicas que se vêm a degradar desde há muito. Nós, depois da II Guerra Mundial, começamos a sonhar que o mundo poderia ser melhor, mas foi logo travado pela Guerra Fria. Depois da queda do Muro de Berlim, com tudo o que ele significava, começámos a pensar que era possível uma aliança pela democracia e pelos direitos humanos, por um futuro melhor e sem divisões e sem muros. Mas durou muito pouco e, passados não muitos anos, os muros multiplicaram-se por todo o lado.
Por causa de quê? Por causa, sempre, de uma das causas das tensões e das frustrações da humanidade, que é a miséria, a injustiça, a desigualdade. Ao mesmo tempo que a humanidade foi desenvolvendo processos cada vez mais sofisticados e eficientes para acudir às necessidades das pessoas - com mais capacidade de melhorar na luta à doença, na luta contra a miséria, contra a ignorância - foram também crescendo as divisões e as desigualdades, com o concentrar de tremendas possibilidades económico financeiras de uma parte do mundo - e de uma parte muito reduzida de pessoas em todo o mundo - à custa da miséria de tantos outros.
Durante a pandemia, o Papa referiu que ninguém se salva sozinho e repete-o, agora, na mensagem para o Dia Mundial da Paz. Já o aprendemos?
Isso é o princípio da esperança da construção de um mundo melhor. Quando estamos numa situação destas - de nuvens sombrias na atualidade e no horizonte do futuro - não só por causa da guerra, mas por causa da emergência climática, de todas as situações que nós vivemos, verificamos que não é fácil manter otimismo, manter o sonho do futuro.
Mas é precisamente isso que é preciso. O Natal é precisamente isso. A luz faz falta quando está escuro. Faz falta o calor quando está frio. Faz falta a esperança quando a gente a perdeu totalmente e perdeu a coragem, e perdeu a energia de construir. E o Natal é precisamente para isso. O Natal não tem de ser um tempo simplesmente quentinho e com muitas luzes.
O Natal tem de ser algo de novo. E algo de novo que começa, exatamente, por aquilo que estava a mencionar: eu não estou sozinho. E a dinâmica do Natal, com a acentuação da família, é precisamente isso. Eu faço parte de uma família e este ambiente que nós aprendemos desde pequenos, da atenção que damos particularmente às crianças, com os presentes, com o carinho, com fazer sentir um dia de bem... Para elas, isto é criar o ambiente de transformação e é quando a criança se sente assim que ganha a confiança da vida: "Não estou sozinho. Os meus pais, a minha família cuida de mim e eu tenho futuro".
Isto traduzido em termos da humanidade é o mesmo no mesmo processo. Quando estava em Moçambique, na altura em que tinham começado os campos de concentração - que felizmente duraram pouco -, uma pessoa que foi levada para um campo de concentração onde morreu uma grande parte daqueles que para lá tinham sido levados e apanhados na rua, dizia: "Nós estamos num campo de concentração. Se ao comandante lhe apetecer dar-te um tiro na cabeça, dá-te e não acontece nada. Não há jornais para se queixar. Não há opinião pública. Não há juízes, não há nada. É como cair sozinho numa parede lisa como o vidro onde não tens a que te agarrar.
Isto é uma imagem tremenda do que é estar sozinho. Mas esta é a situação da humanidade. O sozinho pode ser um povo. O sozinho pode ser uma situação de uma minoria étnica, o sozinho pode ser a situação de quem luta por um mundo melhor, como os refugiados que vêm à procura de soluções para si e para a sua família. Encontrar-se sozinho é que não muda.
Uma andorinha só não faz primavera e uma pessoa sozinha não muda o mundo. É preciso criar cultura. É preciso habituar-se a isso e é isso que juntando-nos no Natal, seja na ceia, seja na Missa do Galo, seja naquilo que fazemos em conjunto, permite criar uma cultura de paz.
O Papa Francisco insiste nos apelos à paz. Parece-lhe que que é uma voz sozinha? Porque é que a voz do Papa não é tão ouvida, uma vez que ele repete semanalmente apelos à paz, seja na Ucrânia ou noutras partes do mundo?
Eu penso que a voz do Papa é escutada por muita gente. Sobretudo por aqueles que são vítimas da não paz, da guerra: São aqueles que são vítimas da injustiça que desejam a paz. É, por isso, que uma das Bem-aventuranças é: "Felizes aqueles que têm fome e sede de justiça, porque deles é o Reino dos Céus." São esses que vão lutar pela paz. Aqueles que se aproveitam do sistema, aqueles que beneficiam com a guerra, aqueles que têm a ilusão de se tornarem poderosos com a guerra não estão interessados na paz, não querem a paz. Aqueles que lutam pela paz são aqueles que sofrem as consequências da guerra.
Não podemos dizer que a voz do Papa não é escutada. A voz do Papa cria esperança em tanta gente! Como a dos profetas. Lembro aquela leitura de Natal: "um povo que vivia nas trevas viu uma grande luz e deitaram fora todo o calçado da guerra, as armas estrondosas de combate, porque o menino nos nasceu, para ouvir o choro do menino."
infelizmente, a maioria das pessoas neste mundo conta-se entre esses que têm sede de justiça e de paz e esses escutam.
O ideal da fraternidade permanece esquecido? evoca-se a liberdade e a igualdade... Onde ficou a fraternidade?
A fraternidade começa precisamente por eu sentir que tenho irmãos e sentir a mão, o carinho e o calor desses irmãos. Mas, depois, à medida que vou crescendo, não é só eu ser o beneficiário da fraternidade dos meus irmãos e irmãs. É quando eu começo a ter o gosto e a alegria de fazer com que o outro seja meu irmão.
Por exemplo, quando nós, adultos, fazemos feliz uma criança, nós "engordamos" com isso. Cresce a nossa alegria por fazer a alguém partilhar dessa alegria. A atitude de quem procura, e o equívoco da procura da felicidade, decorre da tendência de concentrarmos a vida em nós. E quanto mais angustiados nos sentimos, mais o nosso problema é o problema principal. Quando somos capazes de nos libertar para dizer que há problemas piores que o nosso, e que também podendo mesmo na nossa necessidade, podemos ir ao encontro dos outros, nós encontramos caminhos de felicidade para nós e para os outros.
O equívoco da felicidade é quando se pensa nela de um modo egocêntrico. Então, são os outros que têm de cuidar de nós, porque nunca vai chegar. A criança começa por um princípio desses. A criancinha pequenina leva tudo à boca porque é a única coisa que ela sabe fazer é o sentir que alguém cuida dela e precisa disso. Agora, à medida que a gente vai crescendo, vai vendo a boca dos outros e vai tentando que a boca dos outros também seja saciada para que todos fiquemos saciados. É uma atitude, é um modo de estar na vida que é importante para fazer Natal.
Falemos de algumas situações que marcam este Natal na sociedade portuguesa, onde são cada vez mais notórios os indicadores de crise social e económica e de descontentamento das populações que se manifestam publicamente, como acontece com a greve de professores. Que sinais estão a ser dados por diferentes classes profissionais, nomeadamente neste contexto de educação?
Os fenómenos sociais são sempre muito complexos. Não se limitam apenas a uma interpretação. Como dizia no início, há coisas que se vieram acumulando, de percursos que em si têm raízes de uma pouca visão global da situação, que fizeram deteriorar a qualidade de vida de muitos profissionais. Esses que estão no campo da saúde, no campo da educação e que chegaram a um beco sem saída, em que o problema não é simplesmente uma questão económica.
Mas é uma questão de apreço e a possibilidade de ter um trabalho digno, muito importante nas situações concretas e fundamentais para a pessoa humana, como são a saúde e a educação e que, no fundo, acabam por ser não só pouco apreciadas, mas também objeto de manipulação de parte a parte.
Falou da questão da saúde e, de facto, agravaram-se também os problemas nos cuidados de saúde, nomeadamente, com tempos crescentes de espera. E também frequentemente somos confrontados com o fecho de urgências. Neste Natal, por exemplo, é mais difícil nascer...
Este é o grande drama. Se há um sinal que é precisamente de como as coisas têm de mudar, têm de mudar culturalmente, é esta situação. Não é simplesmente uma questão de ordenados, é também uma questão de ordenados. Porque, de facto, se os nossos médicos nos quais investimos - o Estado, a nação investiu milhões e milhões para formá-los - depois vão para fora porque aqui não se encontram minimamente remunerados de uma forma condigna, alguma coisa tem de mudar. E tem de mudar na cultura de tudo isto. Mas mais: lembro-me do problema antes da pandemia, pois não é de agora que nós temos listas de espera para intervenções cirúrgicas e para consultas que são de premente necessidade. Discutimos, discutimos, mas não fomos capazes de chegar a programas de regime que sejam de facto capazes de solucionar os problemas.
Nós continuamos a lutar ideologicamente. Os nossos discursos também nestes dias são blá-blá-blá, não trazem soluções. Ninguém discute as soluções concretas. O que é que vai ser preciso para mudar o sistema? Quanto é que vai custar e quais são os passos que temos de dar? O que se diz é: "Isso não presta, vocês no passado não fizeram, vocês hoje não fazem..." É um descarrega-barris, mas não nos sentamos para estudar com racionalidade, longe das ideologias, com o fundamento de servir bem o país.
É isto o que nos está faltando. Se pusermos a situação e os problemas das pessoas em primeiro lugar, se for esse o nosso interesse - e eu duvido que para alguns seja esse o interesse - vamos encontrar sempre caminhos. Se o que nós procuramos é saber quem é que tira mais votos de tudo isto, baralhamos tudo e quem - desculpe a expressão - quem se lixa são aqueles que estão em necessidade.
Foi uma questão ideológica que levou a legislar, nesta altura e neste contexto, sobre a eutanásia? E espera um veto presidencial face à contestação crescente e aos pedidos para que o Presidente intervenha, por exemplo, os vindos das regiões autónomas?
O que o senhor Presidente vai fazer é evidente que é responsabilidade dele e eu respeito. Eu acho que esta lei de agora não ficou melhor. Estas alterações feitas só alargaram mais o leque de acesso e com formas preocupantes. Eu não quero com isto culpabilizar ninguém.
Quero é uma política de bom senso e uma política que sustente a vida e a fragilidade humana que se afirme. E essa não é neste sentido que vai. Eu achei dramático que no auge da pandemia, quando estávamos no auge da pandemia, tenha sido votada no Parlamento a versão anterior do diploma.
Agora, nestes dias - quando a gente vê o sistema de saúde a colapsar, quando há necessidades básicas de pessoas que são vítimas de doenças incuráveis e doenças onde fazem falta cuidados paliativos e a ideia de proteção e de acompanhamento das pessoas se revela com maior necessidade - é que voltamos a legislar. Ou seja, faz-se isso em vez de buscar os tais consensos necessários para solucionar os problemas e que devem ser transversais a todos os partidos, porque isto não é uma questão de ideologia, isto é uma questão de humanidade. Eu encontro pouca lógica nesta lei.
O presidente Marcelo lamentou, há uns dias, a pouca presença dos católicos na sociedade, que torna mais difícil a quem tem de exercer a sua magistratura nestes momentos de decisão, nomeadamente, sobre a lei de eutanásia. Concorda com esta perspetiva do Presidente da República?
O Presidente da República fala bem do seu ponto de vista e acho que, de facto, devíamos estar mais atentos. Por outro lado, nós não usamos os meios políticos, nós usarmos uma voz que é sempre clara. E acho que, neste aspeto, a Igreja em Portugal ao seu mais alto nível, mas também a nível de movimentos da sociedade civil e de ligação com outros elementos da sociedade, tem procurado criar esse consenso. Veja-se a convergência com outras religiões, com outras formas de acreditar. Só que a nossa forma de estar talvez não seja tanto de ganhar as audiências do ponto de vista de quem tem um poder político.
Nós queremos [fazer] uma chamada de atenção. A nossa posição e os temas que levantamos, sem uma carga política e ideológica, são fruto da nossa convicção do que é a base da vivência humana e o respeito pela vida e por todas as pessoas. A nossa missão é dar-lhes condições para que a eutanásia não se torne necessária.
Falemos de alguns aspetos da Igreja Católica em Portugal que marcaram este ano 2022. Desde logo, a investigação sobre os casos de abuso sexual sobre menores. Que alcance vai ter esta decisão da Conferência Episcopal? O que é que vai ser feito com as conclusões?
A primeira coisa: deixemos chegar as conclusões. Acho que eles estão a trabalhar bem. E crescemos todos: cresceu a comissão, crescemos nós, como bispos, com todo este processo. Acho que está a crescer a Igreja, numa consciência clara e transversal de que situações destas não podem ter lugar no seio da Igreja, no seio da sociedade. E para a Igreja é mais grave, porque uma situação dessas é a negação absoluta daquilo que se quer, daquilo que deve ser a Igreja e que devem ser as atitudes daqueles que estão ao seu serviço, particularmente em cargos de responsabilidade.
Isto é o fundamental. Acho também que esta forma de agir é um apelo a toda a sociedade. Sabemos que acontece na Igreja e, como digo, é sempre um drama e é completamente aberrante ter de tratar de questões destas. Mas sabemos que a maior parte destas coisas não se passam no seio da Igreja. Passam-se onde era mais necessário o carinho, o afeto, o respeito, que é no seio da família. Este processo que estamos a fazer, também com os equívocos dos ecos que está a ter na comunicação social, leva sempre - e isso é claro - a uma recusa em considerar como normal que haja situações destas. Isto vai mudando a cultura e espero que isso seja o grande contributo de tudo isto. Para nós, na Igreja, é muito importante termos consciência de que estas coisas não são para calar. E, por mais penoso que seja tratar delas, têm de ser tratadas como se trata de uma doença e de uma doença que, neste caso, é tremendamente injusta para aqueles que sofrem.
O momento da apresentação do relatório será um momento de clarificação ou a presença do Papa em Portugal poderá potenciar ainda mais a discussão à volta do assunto?
Eu não tenho medo do relatório. Tenho medo é do que causa o relatório. Não quero sequer especular sobre isso. Primeiro, deixe ver as conclusões, que eu não conheço. Conheço algumas coisas que têm vindo a público. Mas nós vamos estudá-lo. Pedimos um estudo para conhecer a realidade e para que ela nos permita a conhecer, avaliar, discernir e ver que caminhos novos podemos ter para evitar estas coisas no seio da Igreja e, o mais possível, no seio da sociedade, dar um contributo para toda a sociedade. Portanto, quando chegarem, nós vamos ver. Não tenho medo nenhum e só quero que o trabalho seja bem feito e acho que tem todos os pressupostos para o ser, por aquilo que eu vou vendo. Penso que está a correr bem e o que interessa que isto seja bem feito.
Se este relatório traz números mais ou menos elevados? Não é esse o ponto. O ponto é perceber esta situação e dizer "nem que fosse um só que encontrassem, é mau." Agora, vamos é estudá-los e vamos tirar consequências para que saiamos daqui todos reforçados naquilo que queremos. Veja, e acho que isto é importante: cuidar de uma criança é precisamente o tema do Natal. E cuidar de uma criança porque é o Menino que nos nasce. Deus vem para o meio de nós feito criança, isto é, aprendam a tentar cuidar das crianças e aprenderão a cuidar do projeto de Deus. A aberração dos abusos é em absoluto o contrário disto.
Aconteceu também este ano a conclusão de uma fase do Sínodo, reunindo as opiniões sobre a Igreja, num documento que provocou reações negativas, sobretudo no plano interno. Porquê, na sua opinião? Significa que o Sínodo permitiu escutar novas vozes ou que é difícil ainda o diálogo com quem é diferente?
A primeira questão é esta: o Sínodo não aconteceu, está acontecendo. Não entender isso origina equívocos. Dizer que o Sínodo está em curso, significa que estamos a pôr-nos a caminho. O que disse é verdade: dar voz às pessoas. Tantas vezes as pessoas dizem "vamos à Igreja para dizer amém"... Não é isso que o Sínodo quer ser nem é isso que querem ser as celebrações na Igreja e muito menos que deve ser o ser Igreja.
O ser Igreja é precisamente participar nela. E participar também com aquilo que pensamos, com aquilo que pode ajudar e corrigir eventuais erros, mas sobretudo a construir um mundo e uma Igreja onde todos tenhamos voz e vez, cada um no seu lugar. Isto não é feito para diminuir o poder de alguém. Não se trata de uma questão de poder, trata-se de uma questão de libertar o Espírito e os seus dons na Igreja, para que ela possa realizar a sua missão. Eu digo sempre que, nestas coisas, quem preside e quem dirige na Igreja não deve ser antes de mais um domador de leões. Antes de domar, é preciso ser criador de leões. Porque isso faz falta. Faz falta uma Igreja que desperte as qualidades e os sentimentos que as pessoas têm. No meio disto, vai haver cruzamentos e encruzilhadas um pouco confusas, sim. Vamos concordar mais com umas coisas do que com outras, é verdade. Mas isso não mete medo. Tenho medo de uma unanimidade de cabeças baixas que não se levantam nem para cima, para ver o céu, nem tem ouvidos para ouvir o que se passa. Isso de querer ignorar a realidade não funciona. É preciso que esta Igreja aprenda e seja capaz de integrar, não para relativizar as coisas, não para abandalhar as coisas, mas para criar uma Igreja onde todos tenhamos a possibilidade de colaborar na construção de um mundo melhor.
2023 será o ano da Jornada Mundial da Juventude. Será uma nova era para o catolicismo em Portugal? Sente os jovens mobilizados?
Penso que temos de fazer as contas com a realidade que temos. Hoje, é necessário partir de novo também para o meio dos jovens com a lógica do Natal. “Ah, os nossos jovens estão afastados da Igreja..." Não é verdade. Eu queria saber se, no mundo, há alguma organização que movimenta tantos jovens como a Igreja. Nem de perto nem de longe, não há. E também neste país. Agora, estamos aqui a contar espingardas? Não! Queremos é fazer com que a mensagem do Evangelho chegue ao coração dos jovens. É tão simples como isto. E acreditamos que o Evangelho faz falta na vida das pessoas, particularmente num jovem que está à procura de sentido de vida e que, nesta encruzilhada da história em que nos encontramos, desde que há aquilo que chamamos uma cultura mais transparente e mais universal que liga as pessoas, esta é uma revolução sem precedentes. E, para isso, para pensar o futuro, precisamos desta luz do Natal. Precisamos de assumir a atitude de um Deus todo-poderoso, omnipotente, mas que se faz criança e que diz: Eu preciso de vocês para criar o sonho, o meu sonho, o meu projeto nesta terra. E é isso que é importante que nasça no coração dos jovens.
Esta Jornada Mundial da Juventude, em boa hora criada neste tempo das comunicações por João Paulo II, na altura em que o mundo parecia abrir-se e deitar abaixo muros. Mas quando os muros se multiplicam, termos aqui, neste país jovens de todo o mundo, apesar das dificuldades da pandemia, apesar das dificuldades da crise económica que estamos a viver e da guerra, apesar disso tudo, é um grito que vale a pena arriscar a viver com entusiasmo e com alegria. E isso não é uma questão de saber quantos milhões vêm. É uma questão de saber o que é que levam no coração por terem participado neste caminho que estamos a fazer: levantar-se, como Maria, a Mãe da nova humanidade, e partir ao encontro desse mundo para levar boas notícias.