O antigo jornalista, colunista, analista, comentador e director agiu inesperadamente e lançou o debate sobre como viabilizar o futuro da comunicação social.
Na cerimónia dos prémios Gazeta 2017 o Presidente da República disse existir uma “situação de emergência” nos meios nacionais que “já constitui um problema democrático e de regime”.
“A grande interrogação que tenho formulado a mim mesmo é a seguinte: até que ponto o Estado não tem a obrigação de intervir?”, questionou Marcelo Rebelo de Sousa, explicando que tem reflectido sobre “se não será possível uma forma de intervenção transversal, no plano parlamentar, que correspondesse a um acordo de regime”.
O cenário do Estado "intervir" e apoiar a comunicação social é um tema sempre desconfortável numa sociedade madura. A tese da subsidiação directa de um sector tão sensível retro-alimenta sempre cenários de subserviência e perda de criatividade.
Mas, se como diz Marcelo, “a crise nos media é a crise da liberdade e da democracia” não deve o Estado assumir responsabilidades até que se encontre um novo modelo de negócio para reverter o cenário em que o digital transformou o sector? Agiu bem o presidente ao colocar o assunto na agenda?
Nuno Garoupa é crítico da intervenção do presidente num tema que o país só deve discutir quando resolver “as portas-giratórias estiverem devidamente fechadas”. Afinal são esses os acessos por onde transitam, nos dois sentidos, jornalistas e políticos. Uma porta-giratória que o presidente bem conhece, insiste o professor da George Mason Scalia Law da Virginia, EUA.
“Lamento ter de o dizer, mas vou dizer: choca-me que o sr. Presidente da República entre neste discurso. Porque o presidente tem um conflito de interesses monumental. Ele foi uma pessoa que durante dez anos precisamente andou nestas portas-giratórias”, diz Nuno Garoupa no Conversas Cruzadas.
“Se há pessoa que se deveria abster completamente de ter intervenções nesta matéria é o actual Presidente da República. O presidente não pode fazer intervenções nesta matéria sem colocar em causa, enfim o seu percurso na televisão e como a televisão alicerçou evidentemente a sua candidatura presidencial. Devo dizer que me chocou pessoalmente a intervenção do sr.presidente”, observa.
“As portas-giratórias criam um problema imenso”
Mas não deve o Estado ter uma ideia clara do que fazer para deter a profunda crise para que o digital arrastou o sector em Portugal?
“A questão da entrada do Estado no financiamento da comunicação social pelas mais variadas vias é complexa. Aliás, devia ser feita por uma via criativa, porque o Estado não pode patrocinar a comunicação social directamente na forma como alguns comentadores têm vindo a referir porque viola o direito europeu. Portanto o veículo a utilizar para esse financiamento até teria de ser bastante criativo”, indica Nuno Garoupa.
“Mas, pondo esse ponto de lado, se vamos discutir a comunicação social desse ponto de vista então vamos discutir as portas-giratórias. São as porta-giratórias que criam um problema imenso”, diz.
“Vamos discutir a quantidade de jornalistas que passam pelos gabinetes ministeriais, empresas públicas e pelas sinecuras do regime e, portanto, o que estamos a dizer é que os jornalistas vão e regressam do governo e das sinecuras do regime que estariam a decidir quem financiar. Como é que se vai resolver essa porta-giratória?”, pergunta o professor universitário.
“90% do comentário político é feito por políticos. Caso único e escandaloso”
“E temos a outra porta-giratória em que Portugal é um caso único, escandaloso e que ninguém debate. 90% do comentário político - principalmente televisivo - é feito por políticos”, afirma Nuno Garoupa.
“Então o Estado vai financiar a comunicação social que, por sua vez, está a contratar políticos para comentar a actualidade? Como contribuinte que garantia tenho eu que o Estado não está simplesmente a financiar directamente a classe política com um reforço de salários que não quer discutir no parlamento porque é demagógico e cria populismo?”, interroga o professor universitário.
“Portanto, o debate não faz sentido, enquanto essas duas portas-giratórias não estiverem fechadas e claramente fechadas. A porta-giratória do jornalismo que anda pelas sinecuras do regime, pelas fundações, pelos gabinetes ministeriais e pelas empresas públicas”, prossegue Nuno Garoupa.
“Por outro lado, a porta-giratória da classe política a fazer análise nas televisões, rádios e jornais que, recordo, começou por ser constituída pelos políticos que não estavam no activo, depois passou a ser os políticos no activo e, agora até, os políticos que não estando activos passam a activos”.
Nuno Botelho: “Imagine-se José Sócrates a aplicar o apoio aos media”
“É um tema muito complicado”, reconhece Nuno Botelho.”Há aqui riscos de grandes promiscuidades a ter de ser acautelados. Lembro só o que seria se fosse o primeiro-ministro José Sócrates a aplicar este plano/sugestão de Marcelo Rebelo de Sousa. O que teríamos aqui em Portugal? Basta este exemplo para perceber quão perigosa pode ser esta ideia”, alerta o jurista e empresário.
“Não acredito que um governante resista à tentação de pressionar um jornal depois de lá meter dinheiro. Não acredito. Acho impossível. Quem paga manda. É uma máxima incontornável”, afirma Nuno Botelho.
“Tenho reflectido sobre a crise da comunicação e só há um caminho: haver empresários que tentem montar projectos viáveis e que possam inverter o cenário de crise”, aponta o presidente da influente Associação Comercial do Porto.
“Mais do que o modelo de financiamento directo que existe em França ou Espanha eu veria com melhores olhos - e até com a minha visão mais liberal do mundo e da economia - que os anunciantes em determinados media, por exemplo regionais, tivessem benefícios fiscais. Seria um modelo muito mais interessante e não aplicaria a obrigatoriedade do financiamento”, faz notar Nuno Botelho.
“O modelo espanhol não é comparável, porque lá há regiões autonómicas e aqui não. Ia-se buscar o dinheiro onde? À Comissão de Coordenação, a uma SIM qualquer, à Câmara Municipal? E se não fosse transmitida a conferência de imprensa do autarca? À ERC, ao Ministério da Cultura? Portanto, eu defenderia muito mais depressa um regime de benefícios fiscais do que propriamente um regime de ajudas directas”, remata o empresário e jurista.
Luís Aguiar-Conraria: “Estado nos jornais é meio caminho andado para não haver escrutínio”
Luís Aguiar Conraria também rejeita qualquer ajuda directa do Estado. “À partida sou contra. Só quando vir isso muito bem concretizado é que poderei mudar de opinião. Há já várias experiências de interferência na área. Tenho algumas dúvidas de que não haja crise que não seja provocada pelos próprios agentes da informação”, diz o professor de economia da Universidade do Minho.
“Em Portugal já temos vários orgãos de comunicação social que são financiados pelo Estado. Não o Estado na forma como António Costa o definiu a semana passada, mas, o Estado via autarquias locais. Há muitos orgãos de comunicação locais que são essencialmente financiados pelas autarquias. O que vemos quando passeamos pelos cafés e lemos esses jornais é a total ausência de escrutínio aos poderes locais”, defende Luís Aguiar-Conraria.
“Ter o Estado a intervir directamente no financiamento dos jornais - e é essa a interpretação que devemos dar ao discurso do presidente Marcelo - é meio caminho andado para não haver escrutínio”, sustenta Aguiar-Conraria.
“É claro que sempre que se fala disto se usa o argumento da BBC e do facto de ser financiada pelo Estado e, mesmo assim, ser um orgão de contrapoder no Reino Unido. É a verdade. O problema é que não somos britânicos. Não temos as características de independência dos britânicos que nos permitam pensar ser possível replicar aqui a BBC. Aliás se assim fosse a RTP não seria o que é”, remata Luís Aguiar-Conraria.
Nuno Garoupa: “Temos pessoas nos media e na política a dificultar a transparência”
Já Nuno Garoupa volta à questão que mina o desafio presidencial: a das portas-giratórias qualquer que seja o ângulo de análise. “Há, de facto, países onde há financiamento público à comunicação social. Ainda esta semana circulava no Canadá a proposta de um generoso pacote de mil milhões de dólares de financiamento. Agora essa discussão não pode ser afastada da regulação, das portas-giratórias e das promiscuidades”, diz o especialista na relação entre a economia e justiça.
“Em Portugal o que temos é um regulador completamente inepto. Se foi ou não concebido para ser inepto é outra discussão. O facto é que a ERC é uma estrutura completamente inepta, incapaz e não tem influência alguma e, se calhar, ainda bem”, ironiza.
“Dito isto, não é possível o estado fazer financiamentos directos ao sector sem antes resolver cabalmente o problema da regulação e das portas-giratórias. Ora o que vejo nesta conversa é que a questão nunca está em debate”, indica o professor da Universidade George Mason Scalia Law, nos Estados Unidos.
“Nenhum partido tem uma proposta para acabar com as portas-giratórias, regular a circulação entre a comunicação social que escrutina e o poder público que é escrutinado”, insiste Nuno Garoupa.
“Temos as pessoas nos dois lados (nos media e na política) a dificultar imenso a transparência já para não falar dos jornalistas que estão do lado da comunicação social e das empresas e que depois também cria problemas”.