É certo que o Tribunal Constitucional poderá ainda confrontar-se com a compatibilidade dessa legalização com a claríssima e inequívoca afirmação do artigo que encabeça o catálogo dos direitos fundamentais na Constituição portuguesa: «A vida humana é inviolável» (artigo 24.º, n.º 1). Essa inviolabilidade não tem exceções ou condições e não depende do consentimento do titular. A vida humana é inviolável mesmo que o seu titular possa consentir nessa violação. Por isso, sempre têm sido punidos o homicídio a pedido e o auxílio ao suicídio.
Por outro lado, pode considerar-se que a legalização da eutanásia e do suicídio assistido nos termos propostos (iguais ao de todas as legislações que a admitem) viola também os princípios da dignidade humana (artigo 1º da Constituição) e da igualdade (artigo 13.º desse diploma). Da conjugação desses princípios decorre que todas as vidas, em todas as situações e em todas as suas fases, são igualmente dignas. Não há vidas indignas de ser vividas. Não há vidas que por qualquer motivo deixem de merecer proteção. Ora, a legalização da eutanásia e do suicídio assistido, nos termos propostos, parte da ideia de que há vidas que deixarão de merecer proteção porque são marcadas pela doença e pelo sofrimento. Essas vidas deixariam de merecer proteção porque estariam desprovidas da dignidade que é própria de quaisquer outras vidas (as quais continuariam a merecer proteção).
Por estes motivos, penso que se justifica que o Presidente da República solicite a fiscalização preventiva da constitucionalidade desta Lei.
A legalização da eutanásia e do suicídio assistido contrasta notoriamente com a lição que deveríamos colher da pandemia do coronavírus. Temos redescoberto o valor da vida dos mais velhos, o valor da vida até ao seu terno natural. São das primeiras a ser vacinadas pessoas que se aproximam desse termo (quase centenárias). Para salvaguardar a vida dos mais velhos, aceitamos sacrifícios económicos como nunca sucedera. Repudiamos atitudes de negação de cuidados de saúde a idosos para dar preferência aos mais novos (porque, como disse o Cardeal Tolentino Mendonça, «o valor da vida não tem variações). Legalizar a eutanásia é seguir um caminho inverso, é aceitar que a vida pode deixar de merecer proteção na sua fase final e quando é marcada pela doença e pelo sofrimento.
Invocam os defensores da legalização da eutanásia e do suicídio assistido o respeito pela liberdade de quem pede essas práticas. Será apenas, ou fundamentalmente, esse respeito pela autonomia individual que está em causa. Não têm razão, porém.
Por um lado, porque a vida é o pressuposto de todos os bens e direitos e, portanto, também da liberdade. Só é livre quem está vivo. Pôr termo à vida é pôr termo à liberdade (podemos dizer que é o “suicídio da liberdade”). Também não se respeita a liberdade quando se legaliza o consumo e tráfico de droga (porque a toxicodependência afeta gravemente a própria liberdade). Tal como não teria sentido invocar a liberdade para justificar a escravidão consentida.
Mas importa também salientar que a legalização da eutanásia e do suicídio assistido não diz respeito apenas à pessoa que pede tais práticas, diz respeito a toda a sociedade, compromete a sociedade, os serviços de saúde e o Estado. Representa uma outra resposta da sociedade, dos serviços de saúde e do Estado à doença e ao sofrimento.
Perante um pedido desesperado de quem quer pôr termo à vida, por estar a sofrer, por considerar que a sua vida perdeu sentido e valor, ou por considerar que é um peso para os outros, para a sua família e para a sociedade, duas são as respostas possíveis.
A resposta que a consciência ética comum das nossas sociedades (grandemente influenciada pelo cristianismo, mas que também coincide com a de outras religiões, com a de princípios humanistas e com a ética médica universal) até agora tem dado é a de contrariar esse desespero e dar esperança, é a de tudo fazer para combater e aliviar o sofrimento, é a de afirmar que a vida tem sentido e valor até ao seu fim natural e nunca é um peso de que nos devamos desembaraçar.
A resposta que é dada pela eutanásia e pelo suicídio assistido é outra. É a de confirmar esse desespero. É a de confirmar que a vida perderá sentido e valor quando é marcada pela doença e pelo sofrimento. É a de desistir de combater e aliviar o sofrimento, porque para este a resposta será a morte provocada (que não elimina o sofrimento, elimina a pessoa que sofre). É a de admitir (ainda que não explicitamente) que uma vida marcada pela doença pode ser, para os outros, um peso difícil de suportar.
Por isso, a legalização da eutanásia e do suicídio não pode equiparar-se a uma qualquer outra opção legislativa. Contêm uma mensagem cultural que representa uma profunda mutação e que deverá ser considerada um grave retrocesso. Que vai exatamente no sentido contrário ao que deveríamos colher da lição da pandemia do coronavírus.
As consequências que podem advir dessa mutação cultural vão muito para além dos casos de prática da eutanásia e do suicídio assistido que possam vir a ocorrer. Hão de refletir-se na forma de encarar o sofrimento, a doença e a deficiência. Admitir que a morte provocada possa ser resposta nessas situações (porque é a própria lei a admiti-lo e os serviços de saúde a admiti-lo) faz crescer o perigo de desistir de combater e aliviar o sofrimento dessas pessoas e o perigo de as encarar como um peso.
Daqui para o futuro e para além da política legislativa, há que ter consciência dessa profunda mutação cultural e desses perigos e tudo fazer para os contrariar.
Pedro Vaz Patto, presidente da Comissão Nacional de Justiça e Paz