A Comissão Independente para a Descentralização defende a criação de regiões administrativas em Portugal, para o que prevê a realização de um novo referendo.
A proposta consta do relatório entregue na terça-feira ao presidente da Assembleia da República, Eduardo Ferro Rodrigues, e ao chefe de Estado, Marcelo Rebelo de Sousa, tendo sido divulgado nesta quarta-feira.
Liderada pelo antigo ministro socialista João Cravinho, a comissão foi criada em 2018 na dependência do Parlamento para "promover um estudo aprofundado sobre a organização e funções do Estado aos níveis regional, metropolitano e intermunicipal" em Portugal continental e centrou a sua análise "nos níveis compreendidos entre a administração central e os municípios e freguesias".
O relatório agora conhecido indica “que o grau de centralismo das decisões públicas” se “acentuou de forma significativa em Portugal, com a crescente debilitação das entidades da administração central presentes nas regiões", o que "tem elevados custos do ponto de vista da eficácia, eficiência e equidade das políticas e da provisão de serviços aos cidadãos e às empresas".
Por outro lado, alimentou "um perigoso sentimento de abandono por parte de populações que se sentem esquecidas e cada vez mais longe de decisores políticos".
Por isso, e depois de analisados os argumentos a favor e contra a regionalização, a comissão defende que "apenas a descentralização administrativa (criação e instituição de regiões administrativas) permite responder de forma integrada" a objetivos como racionalizar o processo de tomada de decisões organizativas, aprofundar a democracia e a governação democrática, políticas públicas mais ajustadas à diversidade territorial existente e melhoria da prestação de serviços públicos aos cidadãos.
O processo deve iniciar-se com o referendo previsto na Constituição, mas com "aperfeiçoamentos", suprimindo a necessidade da "segunda pergunta, de alcance regional, no sentido de eliminar a possibilidade de flagrante enviesamento antidemocrático".
Em 1998, o "não" ganhou o referendo à criação de regiões e a Constituição obriga à realização de nova consulta para a sua concretização.
“Somos pelo referendo, consideramos o referendo muito importante, mas pensamos que o referendo tem um enviesamento antidemocrático: ao pôr duas questões a referendo, uma referente ao mapa das regiões para o país em geral e outra referente ao mapa da região do próprio eleitor. Permite que baste o voto negativo de uma região sobre o mapa da sua região para bloquear todo o sistema. Supondo, por exemplo, que há uma vasta maioria em quatro regiões a favor da regionalização e há uma maioria numa região pequena contra a regionalização, dá-se a completa inversão dos princípios democráticos, porque como as coisas estão é obrigatório recusar à maioria, em benefício da opinião da minoria, a regionalização. É a inversão do principio democrático, que em democracia quem vence são as democracias, respeitados os direitos fundamentais das minorias”, afirma João Cravinho.
Na opinião do grupo liderado por João Cravinho, "o mapa das regiões administrativas deve coincidir com as atuais regiões de planeamento" - Algarve, Alentejo, Lisboa e Vale do Tejo, Norte e Centro -, "por razões de conhecimento acumulado, continuidade e custos menos elevados".
João Cravinho, que liderou esta comissão constituída a pedido do Parlamento, apresentou esta quarta-feira as conclusões que incluem também mudanças no sistema eleitoral.
“Somos por cinco regiões, identificadas com a geografia das regiões plano existentes. Pensamos num sistema eleitoral, dentro do sistema de Governo, que reúna círculos uninominais, círculos plurinominais, eleitos indiretamente por colégios de assembleias municipais. Somos pelo princípio da paridade, aplicável no máximo de condições possíveis.”
A Comissão Independente para a Descentralização sublinha que "um mapa com regiões mais pequenas, algumas das quais localizadas exclusivamente no interior, não garante que todas tenham, já hoje e sobretudo no futuro, a escala e a massa crítica necessárias para poder cumprir com eficácia e eficiência a sua missão".
Realça ainda que os processos de descentralização e desconcentração a favor dos níveis da administração de âmbito regional e sub-regional em Portugal continental "não podem ser concebidos e concretizados como se o país fosse internamente homogéneo" e devem ter em conta as assimetrias e a diversidade de âmbito regional existentes no país.
O processo de criação de regiões administrativas proposto "é gradual, programado, faseado e com metas de transferência de atribuições e competências para as regiões administrativas, sujeito a uma permanente monitorização e avaliação".
É apresentado um cronograma de execução referencial com os passos legislativos necessários para este processo, desde a consulta referendária até às primeiras eleições, que recomenda "que sejam fixadas com uma antecedência mínima de 120 dias", e à "necessidade de comissões instaladoras, que cessarão as suas funções com a posse dos titulares dos órgãos".
Um Banco de Desenvolvimento Regional
A criação de um Banco de Desenvolvimento Regional é uma das recomendações da Comissão Independente para a Descentralização, que defende também a constituição de um grupo de trabalho interministerial para a reforma da administração desconcentrada do Estado.
Na última parte do "sumário executivo" do relatório, considera-se "imprescindível a criação de instrumentos inovadores" para atrair recursos externos a cada região, recorrendo a novos métodos de promoção do investimento para a expansão das empresas e atração de novas que criem postos de trabalho sem precariedade.
Contudo, é referido que "as tendências recentes da banca nacional não favorecem o desenvolvimento de atividades promocionais viradas para o médio/longo prazo".
Assim, é proposta a criação de um Banco de Desenvolvimento Regional para apoiar o desenvolvimento tecnológico, a competitividade de empresas que reforcem o desenvolvimento económico regional e do país, bem como infraestruturas e equipamentos complementares.
Esta instituição deve ser direta e integralmente detida pelo Estado, mas deve ser excluída do "perímetro da administração pública, obedecendo às exigências do Eurostat, com relativa autonomia de decisão expressa no modelo de governança e elevados padrões éticos".
O Banco de Desenvolvimento Regional deve ser dotado de um capital social de três mil milhões de euros (1,5% do Produto Interno Bruto), para apoiar o desenvolvimento da instituição nos primeiros cinco anos de atividade, findos os quais deverá ser feita uma apreciação da atividade desenvolvida, da eficácia do financiamento e das necessidades futuras de capital.
Esta instituição deve atuar como "banco de missão" nas áreas apoiadas pelo Fundo InvestEU da Comissão Europeia – nomeadamente Investigação Científica e Desenvolvimento Tecnológico (I&D), inovação e digitalização, pequenas e médias empresas, e infraestruturas sustentáveis – e ter como referência o Scottish National Investiment Bank e o Banco Europeu Reconstrução e o Desenvolvimento (BERD).
Grupo de apoio à reforma administrativa
Por a desconcentração e deslocalização dos serviços públicos ser uma matéria vasta, "dada a orgânica própria de cada Ministério e a necessidade de assegurar a continuidade dos serviços públicos e do acesso a esses serviços sem perturbações por parte da população, das instituições e das empresas", a comissão “recomenda a criação, na dependência direta do primeiro-ministro, de um Grupo de Trabalho interministerial”.
No início de cada legislatura, este grupo “deve apresentar propostas sobre a matéria de desconcentração e deslocalização", lê-se no sumário do relatório.
A comissão alerta ainda para a necessidade de assegurar, "de forma coerente, a presença do Estado no território" e defende a adequação da área geográfica de atuação dos organismos desconcentrados às fronteiras propostas para as regiões administrativas.
Prioridade na gestão de fundos europeus
As futuras regiões administrativas devem, numa primeira fase, dar prioridade à gestão de fundos europeus estruturais e de investimento, apesar de poderem também assumir competências na cultura, agricultura e educação.
A Comissão Independente para a Descentralização considera que na fase de arranque – que prevê de quatro anos – o governo das futuras regiões administrativas deve centrar-se na decisão e coordenação de "políticas de âmbito transversal, reforçando a capacidade de intervenção nos domínios de ação das atuais Comissões de Coordenação de Desenvolvimento Regional" (CCDR), ou seja, no desenvolvimento regional, ordenamento do território e cidades, ambiente e cooperação regional transfronteiriça.
Nesta primeira fase, as regiões também poderão receber atribuições e competências nos domínios da cultura, da agricultura, da educação e da saúde, desde que "se comprove que as alterações institucionais que terão de ocorrer aos níveis nacional (serviços centrais) e regional (serviços desconcentrados) não contribuem para diminuir a capacidade efetiva de as regiões administrativas desempenharem com eficácia e eficiência" a sua intervenção na gestão dos fundos comunitários.
"No quinto ano de funcionamento, e levando em conta quer os resultados de uma avaliação de desempenho e de impacto relativa aos quatro anos anteriores (primeiro mandato dos órgãos eleitos) quer as capacidades existentes em cada Região, estas poderão vir a acolher novas atribuições e competências provenientes da administração desconcentrada ou de serviços centrais da administração, por iniciativa da Região e como resultado de um processo de negociação com as respetivas tutelas", indica a comissão presidida por João Cravinho.
Diz o grupo que "é indispensável que o primeiro-ministro e o Governo assumam todas as responsabilidades que a Constituição lhes atribui no que se refere à regionalização", pelo que defende uma nova Lei-Quadro das Regiões Administrativas que atribua ao Governo a verificação do "cumprimento da legalidade" e que, em casos graves, o poder de "destituir o órgão executivo das regiões administrativas – a Junta Regional” – ou até "dissolver os órgãos das regiões administrativas, seguindo-se, obrigatoriamente, a convocação de eleições".
A Comissão considera que, por razões práticas, a localização das futuras Juntas Regionais deve coincidir com a das atuais CCDR e a localização das Assembleias Regionais "deverá ter em conta a configuração geográfica de cada uma das regiões numa ótica de equidade territorial, podendo ser tendencialmente fixa ou rotativa".
No relatório salienta-se que a regionalização não anula o processo em curso de descentralização de competências do Estado central para os municípios e freguesias, sendo a criação de regiões "uma das componentes do processo de descentralização", que pode transferir "atribuições e competências para as regiões administrativas, para as entidades intermunicipais (áreas metropolitanas e comunidades intermunicipais), para os municípios e para as freguesias".
Salienta-se que as regiões administrativas não se confundem com as regiões político-administrativas autónomas dos Açores e da Madeira, que detém "poderes que as regiões administrativas não poderão ter".
A comissão sugere a manutenção das Comunidades Intermunicipais (CIM) e das áreas metropolitanas, estas últimas "como realidades com identidade específica e com um modelo de gestão distinto do adotado para as demais áreas urbanas, para resolver os problemas que lhes são próprios".
[notícia atualizada às 20h53]