“Quero divertir-me”. “Eu quero dormir”. A nova lei do ruído resolverá este conflito em Lisboa?
10-03-2017 - 18:51
 • João Carlos Malta

Começou esta semana a ser aplicada a nova regulamentação que proíbe música na rua a partir das 23h00. Moradores, donos de bares e noctívagos concordam que é preciso dar descanso a quem ali mora. Mas há quem tema que se perca a magia da noite lisboeta em que a rua é o sal da diversão.

Bairro Alto e música na rua são sinónimos há décadas. Mas esta ligação dura há quase tanto tempo como as queixas de quem vive naquela zona de Lisboa.

No novo regulamento que limita o ruído, aprovado no ano passado e que entrou em vigor na última quarta-feira, a autarquia da capital reconhece que a “exposição a fontes de ruído e a impossibilidade de repouso (…) pode degradar de forma assinalável a qualidade de vida pessoal e familiar”.

Os bares estão agora proibidos de lançar decibéis das colunas para a rua, a partir das 23h00. Os empresários estão obrigados a comprar um sistema de controlo de som, que custa mais de dois mil euros, e está ligado à Polícia Municipal permitindo fazer leituras em tempo real.

Tiago Pires, de 26 anos, está sentado com mais dois amigos no lancil do passeio numa das ruas de maior movimento do Bairro Alto a beber umas cervejas. Tiago também mora no bairro e diz que já se nota a diferença. “Os volumes estão mais baixos e isto está mais calmo do que é normal”, anuncia.

A lei deve ser para todos

Na Rua do Diário de Notícias está Isabel Gonçalves, dona de três espaços no Bairro Alto, e que não podia estar mais de acordo com a implementação da nova lei.

Para ela, assegura, nada se vai ter alterar. Já o fez há muito. Lembra que não foram os moradores a queixarem-se dela, foram antes os concorrentes que, através de queixas, a obrigaram a mudar.

“Tive de meter portas em acrílico, insonorizar e criar antecâmaras”, enumera. Agora espera que todos cumpram. “Não pode haver filhos e enteados”, critica.

Nos últimos dias tem havido queixas por parte dos comerciantes de que os aparelhos de controlo são muito caros. Uma falsa questão para Isabel. “Não posso dizer que isso seja verdade. Todos se queixam do que gastam, mas não do que ganham. O Bairro Alto é um mundo, está cheio de Janeiro a Dezembro. Não posso dizer que isso seja verdade”, afirma.


O que motiva a nova lei? A incomodidade sentida pela população relativamente ao ruído provocado pelo funcionamento dos estabelecimentos, devido a música, com som elevado, audível da via pública, bem como nas habitações circundantes.

Esta incomodidade coloca em causa o descanso dos moradores. O excesso de ruído e as dificuldades no repouso inerentes estão associadas a um conjunto de patologias.

Quem é obrigado a limitar o som? Os estabelecimentos que funcionem após as 23h00 e disponham de música ao vivo, amplificada ou acústica, ou de aparelho emissor de som ou mesa de mistura, devem cumprir os seguintes requisitos: a) Insonorização do espaço, nos termos legais aplicáveis; b) Colocação de limitador de som com registo; c) Avaliação acústica comprovativa do cumprimento da legislação sobre ruído; d) Funcionamento do estabelecimento com portas e janelas fechadas.

Quem fiscaliza? Os serviços de fiscalização municipal, à Guarda Nacional Republicana, à Polícia de Segurança Pública, à Autoridade de Segurança Alimentar e Económica, à Polícia Municipal de Lisboa e à Polícia Florestal de Lisboa.

Quais são as coimas? Vão dos 150 aos 15 mil euros.


No antigo Frágil, agora Cheers, na Rua da Atalaia, Armando Costa concorda com a nova regulamentação, mas lança uma suspeita. ”É uma lei para beneficiar certas pessoas em Lisboa”. E deixa uma questão. “Por que é que temos de comprar os reguladores de som se conseguirmos de outra forma assegurar de que não emitimos som para o exterior?”.

Já passa das 23h00 e uma volta pelo Bairro Alto mostra ruas mais silenciosas do que é normal. Claro que há excepções e há bares que não deixam de ter som a bombar.

Interesses conflituantes

Um pouco mais abaixo, dois estudantes universitários ainda não tinham ouvido falar da nova lei de funcionamento dos bares. Mas logo formulam uma opinião. Fábio Silva, estudante de Direito com 21 anos, fala de interesses conflituantes.

“Os residentes merecem o direito ao descanso e poderem dormir quando no dia a seguir trabalham. No entanto, o Bairro Alto tem uma componente histórica e a limitação de som é importante, mas as pessoas têm direito a divertir-se”, acredita o jovem.

Joana está ali ao lado e fala de uma situação muito difícil para se encontrar um equilíbrio que satisfaça todos. Ela tenta colocar-se na pele de quem ali reside.

“Gostava muito de morar por aqui, mas eu tenho o sono leve e aqui nem sequer adormecia”, declara. Mas reconhece que fica muito decidida porque é a rua e a música que a levam a trocar as discotecas pelo Bairro Alto.

Muito perto da zona de maior azáfama da noite vive João Fernandes há quatro anos. O segundo andar em que mora não o protege do ruído. Ainda assim, mostra-se compreensivo. “A animação é o que traz para aqui muita gente. Mas, de facto, há noites em que não se dorme aqui. E o nosso vizinho, o dono do bar aqui debaixo, é um bocado abusador. Mas não quero que os comerciantes sejam prejudicados. Acho que devemos poder viver todos em comunhão”, confidencia.

Há um problema bem maior que preocupa este jovem de 35 anos, nos últimos tempos. “Tenho aqui as imobiliárias todos os dias à porta para ver se quero sair. Há um plano para que os poucos portugueses que aqui vivem tenham de sair e transformar isto num ‘Big Erasmus’”, assegura.

E os que fazem barulho na rua?

Descendo até à Rua da Bica, outro dos lugares de eleição da noite de Lisboa, não há muita gente fora dos bares. Alguns grupos juntam-se a falar nas escadinhas da subida até ao Largo do Calhariz. Dos bares pouco som passa para fora.

A meio da rua está Samuel Sequeira, que gere várias unidades de alojamento local. Para ele, o principal problema nem é o ruído na rua. É outra manifestação do som. “Nem é tanto o som que vem para fora. Há muitos bares que têm pouco isolamento e, quando a música tem mais graves, as paredes dos prédios à volta tremem”, explica.

Samuel diz que, mesmo que o som dos bares baixe, há outro que haverá mais dificuldade em reduzir. “Há dois tipos de barulho, aquele que vem dos bares e o que é feito pelas pessoas na rua. E esse é impossível de controlar.”

Há calma no Cais

A viagem pela noite termina já quase junto ao Tejo, no Cais do Sodré. Na Rua Nova do Carvalho, principal centro da “movida” da zona, quase só se ouvem as pessoas que nas esplanadas conversam enquanto bebem.

O gerente dos míticos Jamaica e Tokyo conta que este problema já se discute há cinco anos, entre moradores, autarquia, polícia e proprietários de espaços nocturnos. Fernando Pereira garante que a necessidade resulta de colegas que “nunca respeitam nada”.

Fernando defende que a nova lei não retirará a magia da diversão nas ruas de Lisboa. E aos que dizem que, mesmo retirando o som dos bares da rua, ficará sempre o barulho das conversas dos milhares que se aglomeram fora dos espaços fechados, responde: “Se adicionarmos uma fonte de som, as pessoas que estão na rua vão ter de falar mais alto e o barulho vai aumentar.”

A nova lei que agora começa a ser aplicada promete trazer já consequências concretas para os incumpridores: as multas fixadas no novo regulamento vão desde a 150 aos 15 mil euros. No entanto, só mais lá para a frente se saberá se vais satisfazer os moradores e os noctívagos.