"Europa privilegia segurança das fronteiras a salvar pessoas"
18-01-2015 - 09:00
 • Cristina Nascimento

Director do Serviço Jesuíta aos Refugiados lamenta discurso securitário cada vez mais frequente na Europa e pede coragem para se dizer "não" ao medo.

Da vaga de imigração de brasileiros e cidadãos do Leste a um grupo de refugiados vindos de Marrocos. Em 23 anos, o Serviço Jesuíta aos Refugiados já ajudou muitas pessoas a conseguirem plena integração na sociedade portuguesa e europeia.

O director do serviço, André Costa Jorge, vê os recentes atentados em Paris como uma ameaça à cultura de acolhimento. Este domingo é o Dia Mundial dos Refugiados e Migrantes.

O Serviço Jesuíta aos Refugiados tem 23 anos de existência. O que é que mudou nestes anos?
São 23 anos que não tiveram sempre a mesma intensidade de trabalho e a mesma disponibilidade de meios e de recursos. Tivemos um trabalho muito forte na primeira fase com o "boom" da imigração no final dos anos 90. Depois, toda a década seguinte no acompanhamento sobretudo da população que não tinha referenciais culturais próximos à cultura portuguesa. Os imigrantes de Leste foram um desafio tremendamente difícil, mas fantástico. Recordo os projectos que desenvolvemos no âmbito da integração profissional destas pessoas, muitas traziam qualificações elevadas, por exemplo, médicos, enfermeiros, engenheiros, profissionais com qualificações que era um desperdício Portugal não estar a aproveitar.

Mais recentemente, os migrantes que vamos acompanhando são sobretudo de origem africana, concretamente guineenses e são-tomenses, zonas mais próximas culturalmente de nós, aparentemente. Mas estas pessoas trazem problemas sociais gravíssimos, muitas delas requerem um trabalho para a inclusão que passa também pela aprendizagem do contexto cultural onde estão.

O SJR tornou-se num dos parceiros do estado português, do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) e da União Europeia no acolhimento a refugiados reinstalados em Portugal. Estamos a executar um primeiro projecto, recebemos cerca de 14 pessoas, entre elas seis crianças que estavam ao abrigo do ACNUR em Marrocos.

E como tem estado a correr esse trabalho?
Estas pessoas representaram um desafio novo, estamos a trabalhar com população refugiada, gente que vem de várias paragens, nenhuma delas próximas do contexto cultural português. São pessoas vítimas de violência, de perseguição, são refugiados e não imigrantes económicos e que merecem de todos nós, e do Estado português e da União Europeia, uma atenção especial.

Deste grupo, que chegou a Portugal em Julho, em seis meses, todos já têm conhecimentos de português que lhes permite ter conversações simples e já tiveram experiências de trabalho e alguns já estão a trabalhar. Por exemplo: um dos refugiados tem formação em arqueologia, é oriundo de um país do Médio Oriente e vai desenvolver um estágio nesta área numa autarquia na Grande Lisboa. Isto é altamente motivador para todos, representa alguém que tem uma competência que pode emprestá-la a sociedade portuguesa.

Como tem corrido a integração das pessoas que apoiam?
Cada caso é um caso. Muitos deles têm histórias traumáticas, mas também têm uma enorme vontade de vencer e de participar, de serem incluídos. Essa vontade esbarra às vezes numa dificuldade que é a sua própria história, a história dos seus familiares – muitos deles não sabem onde estão os familiares, marido, filhos. Mas diria que, no total de migrantes e refugiados que vamos recebendo, o saldo é altamente positivo. Temos uma taxa de empregabilidade muito boa para o público que estamos a falar (pessoas que não estão preparadas, nem formadas com as habilitações necessárias que o mercado de trabalho oferece), mas denotam todos uma enorme tenacidade e uma enorme capacidade de integração. Cerca de metade das pessoas que atendemos são casos de sucesso de integração na sociedade portuguesa, o que, aliás, vê-se... Os portugueses receberem aqui milhares e milhares de cidadãos de Leste e boa parte deles estão perfeitamente integrados.

A maioria das histórias tem, então, um final feliz…
É uma felicidade que dá trabalho. A nossa experiência é que os portugueses são um povo acolhedor, mas na sociedade portuguesa é difícil haver oportunidades que permita que as pessoas se tornem autónomas e que aqui vivam e trabalhem. Até para os portugueses é difícil.

As migrações são uma realidade que veio para ficar, há uns que vêm para cá e há outros de cá que vão para outras paragens. Há neste momento mais portugueses em Angola do que angolanos em Portugal, só para dar um exemplo. Há cidades europeias onde há mais portugueses do que em algumas cidades em Portugal. As migrações não podem ser só tratadas pela metade.

Podemos dizer que Portugal é um "paraíso" da integração?
Os portugueses não são propriamente dados a um racismo demasiado explícito, mas todos nós somos racistas. Todos nós temos uma tendência para a exclusão, para a diferenciação, até discriminatória. Os portugueses e a sociedade civil tiveram uma atitude positiva perante as migrações. A resposta a isto talvez esteja no facto de os portugueses, de há 500 anos a esta parte, terem uma relação com o mundo mais aberta. Por outro lado, também os portugueses sempre foram um povo de emigração - há 10 milhões de portugueses em Portugal e mais cinco milhões espalhados pelo mundo inteiro.

Da minha experiência de trabalho, eu só faço uma excepção relativamente à população cigana. Calcula-se que há cerca de 50 mil ciganos em Portugal e aí há, no território português, situações de exclusão, de racismo muito flagrante, situações muito preocupantes do ponto de vista de desigualdade.

Não há um partido político com representação parlamentar e com aspirações a governar, com um discurso xenófobo, de fechamento cultural ou contra a imigração, ao contrário do que acontece noutros países da Europa. Em Portugal não há, mas pode haver. A Suécia, que tem uma enorme tradição no acolhimento de refugiados, neste momento tem um partido de extrema-direita anti-imigração. No Reino Unido há o surgimento de um partido nacionalista. Na Holanda, em Itália, na Grécia, há partidos de cariz nacionalista com um discurso contra o emigrante.

Receia que os atentados de Paris possam vir a pôr um travão na capacidade de acolhimento?
Temo o pior do ponto de vista daquilo que é a responsabilidade da protecção humanitária. A Europa vai estar mais preocupada com as suas fronteiras do que em proteger aqueles que tentam chegar e salvar a sua vida, vítimas de violência. Enquanto estes acontecimentos prevalecerem na memória dos decisores políticos, que têm preocupações eleitorais e procuram falar para o eleitorado (que acaba por ficar com medo), a resposta dos políticos não será muito diferente senão tomar decisões num sentido de proteccionismo.

A operação "Mare Nostrum" que a Itália desenvolveu em 2014 permitiu a salvação de 140 mil pessoas. Esta operação, que era coordenada por Itália, terminou e passou para a União Europeia, para a Agência Europeia de Gestão das Fronteiras Externa (Frontex), recebendo o nome Triton. Ora, esta operação tem um terço do orçamento da operação que salvou 140 mil pessoas e opera apenas a 56 quilómetros da costa. A Europa desistiu de uma parte do mar, desistiu de uma parte da protecção das pessoas. A Europa privilegia a necessidade de defender as suas fronteiras, numa lógica securitária, do que salvar a vida das pessoas, pelo menos as que estão mais longe, as que ainda não chegaram a 56 quilómetros da costa.

A Europa não pode renegar aquilo que são os seus valores fundamentais. Passamos a vida a falar em valores, da necessidade de olhar outra vez para os nossos valores... mas quais é que são os nossos valores?