“A morte saiu à rua num dia assim…”
02-03-2021 - 06:00

O tempo da História surpreende e coloca em causa o que temos por garantido. No último ano, foi o tempo da Covid-19 e da pandemia. Quem, há um ano, imaginava estarmos a viver uma das maiores crises das nossas vidas? Precisávamos de ter sido melhores.

A História é uma paixão antiga e sempre me surpreendeu, não pela cadência normal, mas pelos saltos com que ao longo da vida nos confronta - os momentos de revolução.

Quem imaginava, em 1985, no momento da chegada de Mikhail Gorbachov a Moscovo, que a União Soviética desapareceria em 1991? Quem imaginava, em 1984, nos Jogos Olímpicos de Inverno, em Sarajevo, que dez anos depois a capital da Bósnia estaria cercada e em plena guerra civil?

O tempo da História surpreende e coloca em causa o que temos por garantido. No último ano, foi o tempo da Covid-19 e da pandemia. Quem, há um ano, imaginava estarmos a viver uma das maiores crises das nossas vidas?

Tudo acontece “num dia assim”. Quando menos esperamos, o sobressalto surge e a cadência normal é interrompida. No caso, a morte saiu à rua. Desta vez, atingiu prioritariamente os mais velhos – os avós, os pais, os tios, os irmãos. Na pandemia, a morte foi severa com os mais velhos.

A morte ou nós? Tenho uma dúvida desde o início da pandemia: se em vez de atingir de uma forma mais violenta os mais velhos, imaginemos que o vírus atacava com maior veemência a faixa etária, por exemplo, dos 30 aos 50 anos. E a minha dúvida é a seguinte: as medidas teriam sido as mesmas? Teríamos sido tão condescendentes na imposição das regras a cumprir e no seu respeito?

Estou convencido que, em parte, todos nós deixamos os mais velhos morrer: o Estado não foi célere e falhou nas medidas de proteção aos lares, algumas famílias renderam-se à circunstância e à falta de condições para os proteger, a sociedade esqueceu-se que “a vida humana é inviolável”, tal como sublinha a Constituição, e que a defesa da vida não se faz apenas na luta contra o aborto e a eutanásia – faz-se em toda a sua extensão.

Fomos ao longo do último ano iguais a nós próprios, pequeninos, mesquinhos, reativos, heróis e extraordinários. Somos tudo isto, num misto emocional que nos confunde a razão. Otimistas, pessimistas, condescendentes, severos. Não reparamos que o tempo da História pode ser construído por nós, mas não se confunde com os nossos desejos e não se verga às nossas vontades. Faltou-nos racionalidade coletiva. Sublinho o “faltou-nos” – não foi só ao político A, ao cientista B, ao jornalista C, ao comentador D, ao partido X ou ao vizinho do 4º Esquerdo – foi a quase todos.

Um comportamento comum à maioria dos países atingidos pela pandemia. Na maior parte reativos e surpreendidos pelo agravamento da Covid-19.

Precisávamos de ter sido melhores, mais abnegados como foram os profissionais de saúde: a comunicação social com um olhar mais focado e menos repetitivo; o Estado com mais estrutura e menos voluntarismo – com mais competência e menos “boys”; com mais verdade e menos propaganda; a classe política com menos clichés de esquerda vs direita e mais racionalidade no debate; as ordens profissionais menos deslumbradas com os “Zooms” desta vida no horário nobre da TV; a comunidade científica mais focada numa mensagem coerente e não contraditória para o cidadão comum; a sociedade com uma voz mais exigente e mais racional e menos viciada nos “posts” das redes sociais; e cada um nós menos rápidos nos “bitaites” ignorantes e mais ativos na reflexão.

Temos de ser melhores hoje e para o que aí vem: no combate aos efeitos da crise na economia, no apoio às famílias atingidas pelo desemprego, no apoio às empresas desesperadas com quebras abruptas de receita, nas medidas contra a pobreza, nos salários dos mais desfavorecidos, a quem apenas se prolonga o estado de pobreza, na natalidade, na educação, na literacia, na saúde e, por fim, muito melhores na aplicação do dinheiro da “bazuca” europeia que vai chegar – os tais 14 mil milhões de euros de subvenções europeias, sem contar com a verba disponível em empréstimos.

O sermos melhores não significa sermos unânimes. Exige-se é menos propaganda e mais estudo e uma conceção do Estado menos centrada na corte. Não me refiro à geografia e à velha guerra Porto vs. Lisboa. Refiro-me à necessidade de se intervir onde for mais e estrategicamente necessário, utilizando-se os melhores critérios de análise, sejam geográficos, sociais ou económicos. Evite-se é que o investimento siga os critérios de apoiar as estruturas de sempre, no reforço da corte económica, financeira e política. Evite-se é que os decisores sobre a “bazuca” encontrem mais tarde abrigo nas empresas que vierem a ser beneficiadas. Proteja-se a transparência e criem-se instrumentos de verificação claros e compreensíveis para todos.

Evite-se, por fim, falhar um outro salto histórico que pode estar mesmo à nossa frente. Falhar de novo o país e, mais tarde, sermos surpreendidos por um outro salto da História, que nos conduza a uma nova “Troika”, que condene um conjunto de gerações de novo à emigração e a salários de miséria.

PS: No último ano muito se falou dos “novos heróis” - os médicos e enfermeiros que estiveram na chamada “linha da frente”. É inquestionável. Muito, e justamente, já se falou deles. Mas, por vezes, esquecemo-nos dos outros que também lá estão: os auxiliares de ação médica. Só quem passou por uma enfermaria ou uma urgência percebe a importância destes profissionais naqueles momentos de maior fragilidade humana. Azar o deles que não têm ordens profissionais.