A vida na Venezuela: esperar, esperar, esperar
15-04-2016 - 15:56
 • Margarida Queirós

Espera-se por tudo: medicamentos, água, comida. E espera-se uma mudança no rumo do país. A sociedade responde à crise, dentro ou fora da lei.

Na Venezuela, espera-se em longas filas para poder comprar os produtos básicos subsidiados pelo Estado. Espera-se que haja medicamentos nas farmácias. Espera-se não se ser assaltado, raptado ou assassinado. Espera-se que o racionamento da água seja cumprido pelo Estado. Espera-se que a electricidade não seja cortada. E uma parte do país espera que Nicolás Maduro renuncie ao cargo.

Depois de tempos sangrentos em 2014, que se pautaram pela morte de jovens em protestos estudantis e pela prisão de um dos líderes da oposição, a situação acalmou. Os protestos são mais pacíficos, mas mais generalizados: quase todos vivem tempos difíceis, logo quase todos têm protestado.

As eleições para a Assembleia Nacional, em Dezembro do ano passado, foram consideradas um momento histórico no país. O Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), de Nicolás Maduro, conseguiu apenas 46 assentos na Assembleia Nacional. Ao fim de 16 anos de chavismo, o PSUV foi derrotado pela coligação da oposição, a Mesa Unidade Democrática. Dos 145 lugares disponíveis na Assembleia a oposição tem agora 99 para tentar fazer frente ao Presidente Maduro.

Valentina Valente, de 25 anos, nasceu na Venezuela e é filha de um português. Aos cinco anos, a família veio para Portugal, mas, em 2012, Valentina decidiu voltar ao seu país. “Quando cheguei, a Venezuela ainda era presidida pelo Presidente Hugo Chávez. Quando ele morreu, o país começou a ficar um pouco instável a todos os níveis: a nível económico, a nível social… Começaram a desaparecer as garantias que existiam, de alguma maneira, e a situação começou a ficar realmente grave.”

Agora, pondera sair do país. “Temos uns dirigentes políticos e governamentais que deram cabo da Venezuela. Não posso permanecer num país sem garantias, num país onde é difícil conseguir medicamentos, onde existe repressão aos meios de comunicação, onde os valores se têm perdido porque se tem implementado a violência, num país onde não posso manter uma alimentação saudável devido à escassez de alimentos”.

O momento em que “isto rebentou”

A escassez de alimentos e outros bens essenciais é um dos grandes problemas da Venezuela, cuja economia depende de um produto, o petróleo. A queda dos preços do petróleo deixou a Venezuela numa situação difícil.

"Aqui a gasolina é grátis. Até se aumentou, mas continua a ser baratíssima. O Governo subsidiava isto tudo por populismo, para as pessoas pensarem ‘que bom é o Governo’. Mas houve um momento em que isto rebentou. O petróleo baixou. E nós já não tínhamos quase receitas porque não se exportava quase nada”, conta Maria (nome fictício), 43 anos, uma dona de casa venezuelana que não quer ser identificada.

Segundo Valentina, encher um depósito de 38 litros de gasolina custa mais ou menos 230 bolívares, menos de metade do que custa um pequeno-almoço de um café e um salgado, 500 bolívares.

Como o Governo controla o acesso aos dólares e poucos fornecedores internacionais aceitam o bolívar, muitos têm que recorrer a um mercado negro de câmbio da moeda. Resultado: uma enorme inflação, também no preço dos produtos do dia-a-dia.

A alternativa aos produtos inflacionados são os produtos regulados pelo Estado. Para se comprar os produtos regulados, tem que se esperar em filas de quatro, cinco ou seis horas. E compra-se o que há, explica Kevin Faria, 21 anos, estudante de Línguas Modernas: “Eu não faço filas. Nós preferimos trabalhar mais e pagar um pouco mais pela comida a fazer filas. Só se pode ir às compras um dia da semana, consoante o número do BI. Então é muito difícil, porque dá para uma pessoa comprar um pacote de arroz, um pacote de manteiga – só um produto por pessoa. Tem que se trabalhar mais para comprar mais comida. Se fizermos fila e comprarmos só os produtos regulados, não dá para comer.”

A economia dos “bachaqueros”

Quando Kevin diz que trabalha mais para poder comprar comida mais cara, refere-se aos produtos inflacionados, mas também aos que os “bachaqueros” vendem.

Os “bachaqueros” são traficantes de produtos legais, “pessoas que já conhecem quem trabalha nos supermercados. Eles não fazem filas, compram o que eles quiserem, e depois vendem na rua mais caro”.

As opiniões sobre estes “bachaqueros” dividem-se: há quem não perca tempo nas filas e admita recorrer a estes traficantes de bens essenciais; outros preferem ir para as filas e só lhes recorrer se for absolutamente necessário (quando os produtos estão indisponíveis); e há ainda quem se recuse a compactuar com este mercado negro. Estes compram só o que conseguem nas lojas cujos produtos não são regulados.

Valentina Valente explica à Renascença que é a mãe, que vive em Portugal, que lhe envia produtos de saúde como a pílula contraceptiva. Conta que é impossível encontrar preservativos nas farmácias da Venezuela.

Opõe-se ao mercado negro e já nem lê as mensagens que recebe dos “bachaqueros”. Já foi obrigada a comprar-lhes uma embalagem de pensos higiénicos – custou-lhe o equivalente a três euros (em Portugal, uma embalagem igual de marca branca pode custar menos de um euro).

Sociedade mexe-se nas redes sociais

Maria também já recorreu ao mercado negro. Mas diz que há um problema mais grave, a escassez de medicamentos: “Já tive de fazer pedidos no Twitter para conseguir os medicamentos porque não há nas farmácias. O meu pai foi operado e a operação atrasou-se porque não havia soro, que é algo tão comum em todo lado. A escassez de medicamentos é mais desesperante do que os alimentos. Porque comer, uma pessoa come qualquer coisa”.

As redes sociais estão transformadas em mercados “online”: Twitter e Instagram servem para os venezuelanos se organizarem, pedirem doações e comprarem bens essenciais ou medicamentos. Já começaram até a usar as “bitcoins” – uma moeda virtual – como moeda de compra de bens essenciais.

Ao mesmo tempo que se organizam para adquirir bens primários, os venezuelanos têm tentado travar a onda de violência que o país vive através de manifestações que apelam à paz.

Insegurança

O Observatório Venezuelano de Violência, um organismo independente do Governo, determinou, no seu relatório de 2015, que uma em cada cinco pessoas que morre assassinada na América Latina é venezuelana. A taxa de homicídios do país atingiu um número histórico: em 2015, 90 pessoas foram assassinadas por cada 100 mil habitantes.

“Ainda há uns dias um senhor foi assassinado à porta do aeroporto e as pessoas passavam e tiravam uma foto. É mais um caso, mais uma pessoa morta, já é normal neste país", conta Carolina Alves, de 26 anos, uma luso-venezuelana que vive em Portugal de férias na Venezuela.

A situação é antiga e Valentina explica que também é culpa do governo, que é acusado de espalhar a insegurança para manter a população oprimida e em casa, através dos colectivos.

"São pessoas que defendem a revolução do ex-líder Hugo Chávez. São grupos criados por ele: se houvesse algum tipo de revolta das pessoas, eles iam sair em defesa dos seus ideais. Actualmente, quando se fala de um colectivo, as pessoas têm medo, pois, pelo que se diz, andam armados. E é com esse armamento que defendem aquilo que eles pensam que está certo. A única maneira de obter essas armas é mediante quem tem o poder, de outra maneira é quase impossível”.

O Observatório Venezuelano de Violência chama à atenção para a ausência total de informação oficial sobre homicídios e como esta ausência se tem convertido numa política estatal e numa forma de controlo.

O cumprimento das leis e da Constituição tem sido substituído pelo uso da força e das armas, conclui o Observatório.

Guardar água

Recentemente, o Presidente Maduro deu mais três dias de férias aos venezuelanos. A administração pública e os serviços estatais vão estar fechados: o objectivo, diz Maduro, é poupar água e a electricidade, recursos que são racionados.

“No caso da água, ainda se consegue e é regulada. Na zona onde eu moro chega duas vezes por semana: as pessoas têm tanques e guardam a água”, diz Valentina. O que a preocupa é o colapso de energia eléctrica. A barragem de Guri, que pertence a Central Hidroeléctrica Simón Bolívar, a terceira maior do mundo, está seca. “Não só por causa do El Niño, mas também por não terem sido tomadas medidas necessárias e preventivas para os cuidados da barragem." Na Venezuela faz muito calor e ficar sem electricidade é preocupante.

Enquanto o governo e os apoiantes de Maduro tentam manter o espírito de Chávez vivo – o ex-líder morreu há três anos – , o descontentamento de uma outra parte da população aumenta, numa sociedade que parece dividida e confusa.

Como contaram à Renascença Valentina e Kevin, as faculdades estão fechadas porque os professores não ganham o suficiente para continuar a dar aulas. As saídas à noite são quase impossíveis. Muitos tentam emigrar para países vizinhos.

Nas manifestações estudantis de 2014 uma das frases ouvidas era: "Que todo o mundo saiba que aqui vivemos numa ditadura!". Num país onde ninguém vê perspectivas de melhoras, ainda há alguma esperança a longo prazo.

O Presidente da Assembleia Nacional da Venezuela e líder da oposição a Maduro disse em Janeiro que nos próximos seis meses iria acontecer uma mudança de paradigma. A ideia era testar a governabilidade durante estes meses, e esse prazo acaba em Abril.

Valentina, Maria, Kevin e Carolina continuam à espera.